A
conduta das três pessoas da Santíssima Trindade, na encarnação e primeira vinda
de Jesus Cristo, é a mesma de todos os dias, de um modo visível, na Igreja, e
esse procedimento há de perdurar até à consumação dos séculos, na última vinda
de Cristo.
Deus
Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as graças e
chamou-as Maria10.
Este grande Deus tem um tesouro, um depósito riquíssimo, onde encerrou tudo que
há de belo, brilhante, raro e precioso, até seu próprio Filho; e este tesouro
imenso é Maria, que os anjos chamam o tesouro do Senhor11, e de cuja plenitude os homens se enriquecem.
Deus
Filho comunicou a sua Mãe tudo que adquiriu por sua vida e morte: seus méritos
infinitos e suas virtudes admiráveis. Fê-la tesoureira de tudo que seu Pai lhe
deu em herança; é por ela que ele aplica seus méritos aos membros do corpo
místico, que comunica suas virtudes, e distribui suas graças; é ela o canal
misterioso, o aqueduto, pelo qual passam abundante e docemente suas
misericórdias.
Deus
Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel esposa, seus dons inefáveis,
escolhendo-a para dispensadora de tudo que ele possui. Deste modo ela distribui
seus dons e suas graças a quem quer, quanto quer, como quer e quando quer, e
dom nenhum é concedido aos homens, que não passe por suas mãos virginais. Tal é
a vontade de Deus, que tudo tenhamos por Maria e assim será enriquecida,
elevada e honrada pelo Altíssimo, aquela que, em toda a vida, quis ser pobre,
humilde e escondida até ao nada. Eis a opinião da Igreja e dos Santos Padres.12
Se
eu me dirigisse aos espíritos fortes desta época, tudo isso, que digo simplesmente,
poderia prová-lo pela Sagrada Escritura, pelos Santos Padres, citando longas
passagens em latim e aduzindo os mais fortes argumentos, que o Padre Poiré
deduz e desenvolve em sua Tríplicecoroa
da Santíssima Virgem. Falo, porém, aos pobres e aos simples que,
por serem de boa vontade e terem mais fé que a maior parte dos sábios, crêem
com mais simplicidade e mérito, e, portanto, contento-me de lhes simplesmente a
verdade, sem me preocupar em citar todos os textos latinos, embora mencione
alguns, mas sem os rebuscar muito. Continuemos.
*
* *
Pois
que a graça aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é certo que
Nosso Senhor continua a ser, no céu, tão Filho de Maria, como o foi na terra.
Por conseguinte, ele conserva a submissão e obediência do mais perfeito dos
filhos para com a melhor das mães. Cuidemos, porém, de não atribuir a essa
dependência o menor abaixamento ou imperfeição em Jesus Cristo. Maria está
infinitamente abaixo de seu Filho, que é Deus, e, portanto, não lhe dá ordens, como
uma mãe terrestre as dá a seu filho. Maria, porque está toda transformada em
Deus pela graça e pela glória que, em Deus, transforma todos os santos, não
pede, não quer, não faz a menor coisa contrário à eterna e imutável vontade de
Deus. Quando se lê, portanto, nos escritos de São Bernardo, São Bernardino, São
Boaventura, etc., que no céu e na terra tudo, o próprio Deus, está submisso à
Santíssima Virgem13,
devemos entender que a autoridade, que Deus espontaneamente lhe conferiu, é tão
grande que ela parece ter o mesmo poder que Deus, e que suas preces e rogos são
tão eficazes que se podem tomar como ordens junto de sua Majestade, e ele não
resiste nunca às súplicas de sua Mãe, porque ela é sempre humilde e conformada
à vontade divina.
Se
Moisés, pela força de sua oração, conseguiu sustar a cólera de Deus contra os
israelitas, e de tal modo que o altíssimo e infinitamente misericordioso Senhor
lhe disse que o deixasse encolerizar-se e punir aquele povo rebelde, que
devemos pensar, com muito mais razão, da prece da humilde Maria, a digna Mãe de
Deus, que tem mais poder junto da Majestade divina, que as preces e
intercessões de todos os anjos e santos do céu e da terra?14
No
céu, Maria dá ordens aos anjos e aos bem-aventurados. Para recompensar sua
profunda humildade, Deus lhe deu o poder e a missão de povoar de santos os
tronos vazios, que os anjos apóstatas abandonaram e perderam por orgulho.15 E
a vontade do Altíssimo, que exalta os humildes (Lc 1, 52), é que o céu, a terra
e o inferno se curvem, de bom ou mau grado, às ordens da humilde Maria16, pois ele a fez soberana do céu e da terra, general de seus
exércitos, tesoureira de suas riquezas, dispensadora de sua graças, artífice de
suas grandes maravilhas, reparadora do gênero humano, medidora para os homens,
exterminadora dos inimigos de Deus e a fiel companheira de sua grandezas e de
seus triunfos.
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Por
meio de Maria, Deus Pai quer que aumente sempre o número de seus filhos, até a
consumação dos séculos, e diz-lhes estas palavras: In Iacob inhabita – Habita em Jacob (Ecli 24, 13), isto
é, faze tua morada e residência em meus filhos e predestinados, figurados por
Jacob e não nos filhos do demônio e nos réprobos, que Esaú figura.
Assim
como na geração natural e corporal há um pai e uma mãe, há, na geração
sobrenatural, um pai que é Deus e uma mãe, Maria Santíssima. Todos os
verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por pai, e Maria por
mãe; e quem não tem Maria por mãe, não tem Deus por pai. Por isso, os réprobos,
os hereges, os cismáticos, etc., que odeiam ou olham com desprezo ou
indiferença a Santíssima Virgem, não têm Deus por pai, ainda que disto se
gloriem, pois não têm Maria por mãe. Se eles a tivessem por Mãe, haviam de
amá-la e honrá-la, como um bom e verdadeiro filho ama e honra naturalmente sua
mãe que lhe deu a vida.
O
sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um
réprobo, de um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam desprezo e
indiferença pela Santíssima Virgem17 e buscam por suas palavras e exemplos,
abertamente e às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e
amesquinhar o culto e o amor a Maria. Ah! Não foi nestes que Deus Pai disse a
Maria que fizesse sua morada, pois são filhos de Esaú.
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* *
O
desejo de Deus Filho é formar-se e, por assim dizer, encarnar-se todos os dias,
por meio de sua Mãe, em seus membros. Ele lhe diz: “In Israel hereditare – Possui tua herança em Israel” (Ecli
24, 13), como se dissesse: Deus, meu Pai, deu-me por herança todas as nações da
terra, todos os homens bons e maus, predestinados e réprobos. Eu os conduzirei,
uns com a vara de ouro, outros com a vara de ferro; serei o pai e advogado de
uns, o justo vingador para outros, o juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe,
só tereis por herança e possessão os predestinados, figurados por Israel. Como
sua boa mãe vós lhes dareis a vida, os nutrireis, educareis; e, como sua
soberana, os conduzireis, governareis e defendereis.
“Um
grande número de homens nasceu nela”, diz o Espírito Santo: Homo et homo natus est in ea.
Conforme a explicação de alguns Santos Padres o primeiro homem nascido em Maria
é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um homem puro, filho de Deus e de
Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o chefe dos homens, nasceu nela, os
predestinados, que são os membros deste chefe, devem também nascer nela, por
uma conseqüência necessária. Não há mãe que dê à luz a cabeça sem os membros ou
os membros sem a cabeça: seria uma monstruosidade da natureza. Do mesmo modo,
na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da mesma mãe, e, se um membro
do Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, um predestinado, nascesse de outra
mãe que Maria, que produziu a cabeça, não seria um predestinado, nem membro de
Jesus Cristo, e sim um monstro na ordem da graça.
além
disso, pois que Jesus é agora, mais do que nunca, o fruto de Maria, como lhe
repetem mil e mil vezes diariamente o céu e a terra: “…e bendito é o fruto do
vosso ventre”, é certo que Jesus Cristo, para cada homem em particular, que o
possui, é tão verdadeiramente o fruto e obra de Maria como pra todo o mundo em
geral. Deste modo, se qualquer fiel tem Jesus Cristo formado em seu coração,
pode atrever-se a dizer: “Mil graças a Maria! este Jesus que eu possuo é, com
efeito, seu fruto, e sem ela eu jamais o teria”. Pode-se aind aplicar-lhes, com
mais propriedade que São Paulo aplica a si próprio, as palavras: “Quos iterum
parturio, donec formetur Christus in vobis” (Gal 4, 19): Dou à luz todos os
dias os filhos de Deus, até que Jesus Cristo seja nele formado em toda a
plenitude de sua idade. Santo Agostinho, sobrepujando a si mesmo, e tudo o que
acabo de dizer, confirma que todos os predestinados, para serem conformes à
imagem do Filho de Deus, são, neste mundo ocultos no seio da Santíssima Virgem,
e aí guardados, alimentados, mantidos e engrandecidos por esta boa Mãe, até que
ela os dê à glória, depois da morte, que é propriamente o dia de seu
nascimento, como qualifica a Igreja a morte dos justos. Ó mistério de graça,
que os réprobos desconhecem e os predestinados conhecem muito pouco.
*
* *
É
vontade de Deus Espírito Santo que nela e por ela se formem eleitos. “In
electis meis mitte radices” (Ecli 24, 12), lhe diz ele: Minha bem-amada e minha
esposa, lança em meus eleitos as raízes de todas as virtudes, a fim de que eles
cresçam de virtude em virtude e de graça em graça. Tive tanta complacência em
ti, quando vivias na terra, praticando as mais sublimes virtudes, que desejo
ainda encontrar-te sobre a terra sem que deixes de estar no céu. Reproduze-te,
portanto, em meus eleitos. Que eu veja neles com complacência as raízes de tua
fé invencível, de tua humildade profunda, de tua mortificação universal, de tua
oração sublime, de tua caridade ardente, de tua firmíssima esperança e de todas
as tuas virtudes. É sempre a minha esposa tão fiel, tão pura e tão fecunda como
nunca: que tua fé me dê fiéis, que tua pureza me dê virgens, que tua
fecundidade me dê eleitos e templos.
QUANDO
MARIA LANÇA SUAS RAÍZES EM UMA ALMA, maravilhas de graça se produzem, que só
ela pode produzir, pois é a única Virgem fecunda que não teve jamais, nem terá
semelhante em pureza e fecundidade.
Maria
produziu, com o Espírito Santo, a maior maravilha que existiu e existirá – um
Deus-homem; e ela produzirá, por conseguinte, as coisas mais admiráveis que hão
de existir nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos, que
aparecerão no fim do mundo, lhe está reservada, pois só esta Virgem singular e
milagrosa pode produzir, em união com o Espírito santo, as obras singulares e
extraordinárias.
Quando
o Espírito Santo, seu esposo, a encontra numa alma, ele se apodera dessa alma,
penetra-a com toda a plenitude, comunicando-se-lhe abundantemente e na medida
que lhe concede sua esposa; e uma das razões por que, hoje em dia, o Espírito
Santo não opera, nas almas, maravilhas retumbantes, é não encontrar ele uma
união bastante forte entre as almas e sua esposa fiel e inseparável. Digo
esposa inseparável porque, depois que este Amor substancial do Pai e do Filho
desposou Maria para produzir Jesus Cristo, o chefe dos eleitos, e Jesus Cristo
nos eleitos, nunca a repudiou, pois ela tem sido sempre fiel e fecunda
Tratado da Verdadeira Devoção à
Santíssima Virgem – São
Luiz Maria Grignon de Montfort
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10)
Appellvit eam Mariam, quasi mare gratiarum (S. Antonino, Summa, p. IV, tit. 15,
cap. 4, § 2).
11)
Ipsa est thesaurus Domini (Idiota, In contemplatione B.M.V.).
12)
Ver, entre outros, São Bernardo e São Bernardino de Sena, que S. Luís Maria
cita mais adiante (141-142).
13)
Ver adiante a citação (nº 76).
14)
S. Agostinho, Sermo 208 in Assumpt., nº 12.
15)
Per Mariam ab hominibus Angelorum chori reintegrantur (São Boaventura –
Speculum B.V., lect. XI, § 6).
16)
In nomine tuo omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum (São
Boaventura – Psalter. maius B.V., Cantic. Instar “Cantici trium puerorum”).
17)
Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est ut teneat de Maria firmam fidem
(São Boaventura, Psalter. maius B.V., Symbol. Instar Symboli Athanasii).
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