1 O que compreendemos por liturgia?
Liturgia é serviço do povo, realizado em benefício deste. Numa análise filológica, vem da raiz grega Laos= povo e Ergon= ação. É ação, trabalho, serviço. Ação esta que antes do Vaticano II, o povo apenas assistia como meros espectadores sem compreender o que era feito. A partir do Vaticano II, o conceito de liturgia voltou ao seu sentido primeiro: ação do povo. Hoje se fala em participação, celebração, porque todo povo batizado faz parte do sacerdócio real de Cristo, chamados à transformação e santificação da vida e da história.
Esta ação não é feita sozinha. É feita em parceria com o próprio Deus, e através da fé percebemos a sua presença amorosa e sua ação permanente a serviço da vida. A ação de Deus se dá através de Cristo, seu Filho amado que se fez irmão e servidor com sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição. Nesse sentido, afirmamos que Cristo é o liturgo por excelência.
Em linhas gerais, a liturgia é a ação de Deus realizada em Jesus Cristo, e através do seu espírito, em nós a favor de toda humanidade.
É também o memorial do mistério pascal de Cristo celebrado na Igreja. A cada rito[1] celebrado fazemos memória[2] do ressuscitado na vida de cada pessoa e da comunidade.
2.1 O mistério celebrado no primeiro milênio da nossa era
É importante termos presente que para compreendermos LITURGIA devemos, antes de tudo, fazer uma análise do que aconteceu nos primeiros séculos da Igreja, isto é, como a LITURGIA era celebrada pelos primeiros cristãos, para que ao chegarmos na nossa era, compreendamos, à luz do Vaticano II, o significado deste mistério[3] celebrado, que por sua vez significa experimentar a presença de Deus na nossa vida. É a ação de Deus na qual Ele entra em comunhão com o mundo e com os homens. De um lado Deus se revela e se comunica ao homem, e de outro, o homem entra em comunhão com Deus. Deus é mistério em si mesmo porque é comunhão de vida, de amor e felicidade em si mesmo. Para a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja e a Liturgia, mistério é o plano de Deus de fazer o ser humano participante de sua vida, de salvar a humanidade. Além disso, é visto sob o aspecto divino da salvação. Neste caso, o mistério de Deus é revelado em seu Filho Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, isto é, que se fez humano para a nossa salvação. Ao se revelar em Jesus Cristo, Ele comunicou a sua vida eterna mais íntima ao ser humano. Para compreendermos o mistério é necessário termos fé, pois este brota da nossa espiritualidade. Depois deste ensaio, vamos estudar a liturgia nas suas origens.
2.2 A liturgia nos primórdios do cristianismo
Na era apostólica, mais conhecida como tempo dos apóstolos, Jesus e seus seguidores praticavam a religião judaica. Participavam das celebrações litúrgicas (templo, sinagoga, oração e festas). Jesus era um homem muito piedoso, assim como seus seguidores (apóstolos) e participavam assiduamente da religião de seu povo.
Jesus e os apóstolos não vieram romper com a liturgia antiga, pelo contrário, vieram dar pleno cumprimento (Mt 5,17), aperfeiçoá-la. Assim sendo, deu uma nova orientação aos ritos judaicos já existentes. Portanto, a nossa liturgia cristã é uma continuidade da liturgia hebraica. O nosso referencial é Jesus de Nazaré. A partir do mistério de Cristo, aconteceu uma cristianização dos elementos ritualizados herdados, surgindo daí a liturgia cristã. Os elementos rituais são:
ELEMENTOS JUDAICOS X ELEMENTOS CRISTÃOS
Judaísmo Cristianismo
ÚLTIMA CEIA
A ceia pascal judaica é uma rememoração da libertação do povo hebreu da escravidão para a terra prometida.
Fazemos memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A sua passagem deste mundo para o Pai.
LITURGIA DA PALAVRA
A liturgia judaica é celebrada aos sábados na sinagoga e é feita a leitura da Torá ( Os 5 primeiros livros da Bíblia).
Leituras bíblicas, cantos dos salmos, homilias. Na liturgia cristã celebra-se todos os dias, de modo particular no domingo, dia consagrado ao Senhor.
ORAÇÃO DOS FIÉIS
Dezoito bênçãos com a qual se iniciava a liturgia sinagogal
Os pedidos das orações dos fiéis na missa após a profissão de fé.
A SEMANA
Sábado (sabático) considerado o dia de descanso e também reservado para a reunião litúrgica na sinagoga
Os cristãos deslocaram para o domingo, em memória da Ressurreição
ORAÇÃO COTIDIANA
Oração da manhã e da tarde (laudes e vésperas) e o ternário das horas (terça, sexta, noa)
IDEM
COSTUME DE INICIAR AS ORAÇÕES
Iniciar as orações litúrgicas com a fórmula invitatória: Corações ao alto, Oremos e Demos graças.
IDEM
DOXOLOGIA
Breve louvor a Deus no final das orações: Glória ao Pai; Santo, santo, santo
IDEM
ACLAMAÇÕES LITÚRGICAS
Amém, Aleluia, Hosana, Pelos séculos dos séculos.
IDEM
São elementos rituais riquíssimos que demonstram como a nossa liturgia está enraizada na cultura do Antigo Testamento. Em contrapartida, há aspectos de rupturas entre a liturgia cristã e a liturgia judaica. Em alguns aspectos, Jesus mantém uma crítica em relação à ordem cultual da religião judaica. Jesus quer resgatar o fundamento do culto, a saber, o amor que se desdobra na prática da justiça, da misericórdia, do perdão (cf. Mt 9,13). Também os discípulos de Jesus, após a ascensão, continuavam participando do templo, porém, não participavam dos sacrifícios rituais. Como judeus cristianizados, eram convictos de que a morte-ressurreição de Jesus havia superado o sacrifício da lei antiga. O templo passou a ser o verdadeiro Templo que agora é Cristo. A partir de então, a Igreja apostólica começou a organizar-se criando formas próprias de culto. Uma das características desse novo grupo era a reunião (aspecto comunitário): É a liturgia dos primeiros cristãos (cf. Mt 18,20, At 4,31; 20,7-8).
Em At 2, 46 narra-se o momento da refeição, onde partiam o pão e comiam com simplicidade e alegria. Junto da reunião tinha o momento da oração da benção (oração eucarística: ação de graças) e o ensinamento dos apóstolos.
Outro aspecto interessante é que costumavam realizar as reuniões no primeiro dia da semana. A este dia, deram o nome de “dia do Senhor” (domingo), por ser o dia em que se recorda a ressurreição do Senhor. Mais tarde surgiu a festa anual da Páscoa, quando Paulo dizia: “Cristo nossa Páscoa foi imolado” (1 Cor 5,7). A imolação do Cristo substituiu a do cordeiro da Páscoa anual hebraico. Mais tarde surge também o batismo que já havia sido prefigurado por João Batista (batismo no Espírito no nome de Jesus).
Embora não tendo uma regulamentação estável da liturgia, a comunidade apostólica já dispunha de algumas formas litúrgicas próprias: oração, batismo e eucaristia.
2.3 A era dos mártires
Neste período, séc. II e III, os cristãos procuravam manter-se no âmbito da tradição judaica. Também foi institucionalizada a prática apostólica de fazer reuniões para a fração do pão em casas particulares. Eram casas de famílias nobres que cediam o espaço para as reuniões das comunidades cristãs.
Os cristãos, herdeiros do monoteísmo judaico (único Deus), eram contrários aos rituais pagãos. Por causa disso sofriam perseguições violentas pelo fato de exaltarem a superioridade do cristianismo frente ao paganismo[4]. Eram acusados de ateus e sem religião por não terem templo, altar, nem sacrifícios e nem sacerdotes. O templo para a comunidade cristã era o próprio Cristo e nele, a comunidade cristã forma um só corpo.
Já podemos falar de uma liturgia inculturada, porque o mundo cristão estava em contato com o mundo pagão, chamados helênicos. A liturgia vai se adaptando aos povos do mundo mediterrâneo com sua cultura própria. O mistério de Cristo passa a ser celebrado com elementos da cultura local. Um exemplo é o testemunho de Justino, filósofo convertido ao cristianismo. No ano 150, ele escreve uma apologia em favor dos cristãos, defendendo como era celebrada a missa na comunidade cristã em meados do séc. II. No relato ela apresenta as seguintes partes da missa: Reunião no dia do sol (domingo), escuta da Palavra, homilia, oração dos fiéis, preparação das oferendas, oração eucarística, comunhão e socorro aos necessitados.
Hipólito de Roma (ano 215) também nos apresenta um importante documento dizendo como era organizada e celebrada a missa nessa época. Refere-se ao batismo, havia um itinerário de iniciação cristã, a eucaristia, uma oração eucarística e as ordenações (bispos, presbíteros e diáconos com uma oração de consagração para cada um desses graus. As bênçãos e as orações. Não havia livros litúrgicos e o presidente improvisava as orações.
2.4 A liturgia em fase de estruturação plena (séc. IV a VIII)
Nesse período, a liturgia chega ao seu apogeu, ou seja, atinge sua fase de estruturação.
No ano de 313, o imperador Constantino concede liberdade total para a Igreja. Fim das perseguições! Em todo o império, o número de cristãos se multiplica pelo fato de ser uma honra, o que equivale a ser um cidadão do império. A liturgia passa por profunda transformação em sua forma e compreensão. Por estar em contato direto com a cultura romana, as celebrações passam a assumir um caráter imponente e suntuoso. A celebração da eucaristia passa a ser presidida pelo bispo e os cristãos passam a se reunir em locais amplos, nas basílicas construídas pelo imperador.
A liturgia passa a receber também na cultura romana, elementos da própria cultura. Dentro de um contexto político, social e eclesial, os paramentos adotados são semelhantes ao da corte imperial. As liturgias se transformam em suntuosas cerimônias pontificais. Os ministros ordenados são revestidos de uma dignidade de honras igual aos mais altos dignitários do império. Tudo isso é representado pelo mistério de Cristo, que visto como esplendor passa a ser expresso exteriormente na forma esplendida dos cerimoniais da corte.
A Bíblia continua sendo a principal fonte de inspiração na composição dos textos litúrgicos e na explicação dos mistérios cristãos. Elementos pagãos foram introduzidos na religião cristã, como por exemplo, a prática de construir igrejas voltadas para o oriente, o nascer do sol; a festa do natal que entrou no lugar da festa do nascimento do deus sol da religião pagã.
2.5 A formação das grandes famílias litúrgicas
Existem várias formas de celebrar o rito litúrgico devido à inculturação da liturgia cristã nas diversas culturas. Eis os dados cronológicos dessa evolução:
Séculos I e II: Unidade litúrgica. Na formação das comunidades cristãs precisava-se garantir o essencial da tradição recebida.
Séculos III e IV: Começa uma multiplicidade de formas celebrativas. Cada comunidade vai fixando seus ritos, costumes e orações.
Século V: Com a liberdade religiosa concedida por Constantino, é o momento da criação das diversas famílias litúrgicas ou ritos litúrgicos no oriente e no ocidente.
Entendemos que o mistério de Cristo é um só, mas as formas de celebrações são diferentes. Durante a história foram organizados diferentes ritos que constituem as famílias litúrgicas originadas dos antigos e influentes patriarcados: Antioquia[5], Alexandria e Roma. A ação missionária permitiu a esses grupos se expandissem para outras terras, formando assim novos ramos litúrgicos, porém não perdendo a essência que é o mistério de Cristo. [6]
Para ilustrar melhor, apresentamos a seguinte distinção: existem as liturgias orientais e ocidentais.
As liturgias orientais (do oriente) se distinguem em dois grupos, por causa dos seus patriarcados de origem (Antioquia e Alexandria): o grupo antioqueno e o grupo alexandrino. O grupo antioqueno se subdivide em siríaco ocidental (que compreende o siríaco de Antioquia, o maronita, o bizantino e o armeno) e siríaco oriental (que compreende o rito nestoriano, o caldeu, na Mesopotâmia, e o malabar, na Índia). O grupo alexandrino abrange o rito copta e o etiópico.
As liturgias ocidentais (do ocidente) são: a romana (da diocese de Roma), a ambrosiana (própria da diocese de Milão), a hispânica (peculiar da Espanha), a galicana (das Gálias) e a celta (elaborada entre os povos celtas, no ambiente geográfico que compreende a Irlanda, a Escócia e País de Gales). Atualmente, na prática, conserva-se apenas um rito ocidental: o romano. Dos outros, restaram apenas vestígios, ou estão limitados a lugares bem determinados (como é o caso dos ritos ambrosiano e hispânico)[7].
2.6 A formação da liturgia romana clássica
Entre os séc. IV ao VIII foi o tempo em que a Igreja romana foi organizando sua liturgia de forma esplêndida e rica do ponto de vista teológico. Posteriormente, esta liturgia sofrerá influência dos povos francos-germânicos, sofrendo numerosas modificações: ela deixa de ser liturgia romana pura.
Após 313, como já vimos, a liturgia sai das catacumbas e passa a ser celebrada nas basílicas. A partir daí, surge a necessidade de organizar as celebrações litúrgicas de forma mais fixa e rígida. Assim, os bispos de Roma começam a compilar inúmeras orações, introduzem novos ritos. Surge neste período, o primeiro livro litúrgico chamado sacramentário. É um livro que contém as orações presidenciais tanto para as celebrações eucarísticas como dos demais sacramentos. Também para proclamar a palavra de Deus na liturgia, fez-se uma seleção de textos bíblicos de forma ordenada segundo o correr do ano litúrgico. Nasce assim o Lecionário que era dividido em dois livros: Evangeliário (para uso dos diáconos) e Epistolário (para uso dos leitores).
Devida a amplidão das basílicas, foram introduzidas três grandes procissões:
· A solene procissão de entrada do presidente com seus ministros ( introduziu-se a oração da coleta)
· A procissão levando ao altar o pão e o vinho (introduziu-se a oração sobre as oferendas)
· A procissão em direção ao altar para receber a comunhão sob duas espécies. (introduziu-se a oração após a comunhão)
As orações introduzidas no final de cada uma das três procissões variam no decorrer do ano litúrgico. A proclamação do evangelho também foi ritualizada, reservada ao diácono e a procissão era acompanhada de luzes, incenso e aclamação do Aleluia. A oração eucarística é a única, com variadas orações do prefácio. Mais tarde foram acrescentados o glória e o cordeiro de Deus.
É importante ressaltarmos que as orações introduzidas na missa (coleta, prefácio, sobre as oferendas, após a comunhão) possuem uma forma literária elegante. São orações dirigidas ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo.
2.7 A passagem da liturgia romana para as Igrejas franco-germânicas
A partir do séc. VII os ritos litúrgicos do ocidente e do oriente já haviam adquirido suas características fundamentais. Ao longo do séc. VIII e início do séc. IX acontece o fenômeno de imigração da liturgia romana para as terras franco-germânicas. Este fator será importante para compreendermos a cultura religiosa brasileira e latino-americana.
Por ela, a liturgia romana foi adaptada à liturgia galicana para depois retornar à Roma como fundamento da liturgia romana da idade média. Tudo isso aconteceu pelo fato dos bispos e abades franco-germânicos terem simpatizado pelo ritual romano e terem demonstrado insatisfação com os ritos franco-germânicos. Ficaram admirados pela suntuosidade da liturgia, ao mesmo tempo simples e pelos textos litúrgicos romano.
Dado o apreço, o imperador franco-germânico, Carlos Magno, com o intuito de uniformizar a liturgia em todo o império, pediu ao papa Adriano I uma cópia do sacramentário romano. Carlos Magno, ao instituir o rito percebeu que o mesmo estava incompleto, não havendo os vários formulários de missa e bênçãos, que o povo galicano prezava muito. A solução foi incorporar vários elementos próprios da liturgia galicana, tais como: benção do círio pascal, orações para ordenações, bênçãos, dedicações de Igrejas e exorcismos. Daí surgiu uma liturgia romana-franco germânica.
A liturgia galicana se caracterizava pela dramaticidade das orações e das ações litúrgicas, caracterizada pelo pavor diante da divindade, uma forte consciência de pecado, um inquietante sentimento de culpa e um grande individualismo religioso.
A missa passa a ser uma devoção privada do sacerdote e não mais comunitária. Começa-se a perder o caráter pascal da celebração cristã e passa-se para uma espiritualidade fortemente individualista. Dá-se mais importância aos aspectos sentimentais da meditação da paixão de Cristo do que o mistério da fé na ressurreição.
Em contrapartida, surge na liturgia franco-germânica o famoso hino Veni Creator Spiritus. E surgem nesse período, as magníficas Igrejas românicas na França, Alemanha e Espanha. Apesar de esta liturgia ser pouco eclesial-comunitária, mais tarde Roma a adotará como liturgia romana obrigatória para todas as liturgias do ocidente, tornando-se uma liturgia devocionista e individualista.
3 O mistério celebrado no segundo milênio da era cristã
3.1 A liturgia romana em nova fase ou a liturgia romana da idade média (Sec. X a XIV)
A partir do final do séc. IX a liturgia romana inicia uma nova fase que durará por muitos séculos. A maior parte do segundo milênio é caracterizada por uma liturgia romana totalmente distanciada da tradição antiga. Roma adota a liturgia romano-franco-germânica[8]. A vida litúrgica e espiritual passa por uma terrível decadência. Os papas deste período foram considerados indignos de assumir o governo da Igreja católica. Tanto os papas como o clero manifestavam pouco interesse pela vida litúrgica da Igreja. É um fato assustador, pois Roma elaborou e viveu dos séculos IV a VIII uma liturgia bastante suntuosa.
Os imperadores Otâo I e Otão II, em suas viagens a Roma, ficam horrorizados pelos caos religioso e cultual que proliferava na cidade eterna. Eles mesmos decidiram promover a vida litúrgica na cidade eterna, insistindo no uso dos livros litúrgicos romano-franco-germânicos trazidos da Alemanha. Estes livros foram adotados no norte dos Alpes alemães a partir do séc. VIII. Com a contribuição dos povos franco-germânicos, a vida litúrgica e espiritual em Roma assume um novo sentido.
Superada esta decadência, os papas voltam a assumir com responsabilidade a liturgia romana, até então dominada pelos soberanos e bispos dos Alpes. O Papa Gregório VII (1073-1085) propõe uma ampla e profunda reforma na Igreja. Seu objetivo era recuperar as fontes antigas, zelar pela disciplina moralizando o clero e elevar a dignidade do sacerdócio. Neste sentido havia um interesse específico pela liturgia. Quem celebra a liturgia deve ter dignidade, respeito, coerência de vida e santidade. Como se vê, a moralização do clero gerou um monopólio clerical da liturgia. Começa-se aqui o individualismo religioso por parte dos padres. Gregório VII não recupera o caráter comunitário da liturgia romana clássica dos séc. IV a VIII.
A reforma gregoriana não obteve sucesso pelo fato de ter ocorrido uma centralização romana. Em se tratando especificamente do culto, todas as Igrejas do Ocidente foram obrigadas a seguir o modelo de liturgia da cúria romana estabelecida pelo Papa Gregório VII, e que, no fundo, manteve a mesma estrutura da liturgia romano-franco-germânica.
O Papa Inocêncio III (1198-1216) dedicou-se à reforma dos livros litúrgicos. Na liturgia romana clássica, como vimos, para cada ator da celebração havia um livro. Naquela época, a celebração litúrgica expressava o caráter bem comunitário. Com o tempo, a participação ativa dos fiéis diminuiu e tudo acabou sendo confiado ao sacerdote. Este se tornou o único ator da celebração e a assembléia se tornou meros espectadores.
Para tornar mais prática a celebração, ao invés de usar os variados livros litúrgicos ao mesmo tempo (Sacramentário, Lecionário, Antifonário etc), tudo era reunido num único volume o qual chamamos de Missal. Nasce então o Missal, usado pelos sacerdotes quando celebravam missas sozinhos. Um livro que não contemplava a presença da assembléia. Este livro será imposto para todas as igrejas.
Ocorreu o mesmo com o livro de oração eclesial. Por motivo de comodidade e para a oração privada, inclui-se num único livro contendo tudo o que é necessário para o ofício divino, chamado mais tarde de Breviário[9].
1 O que compreendemos por liturgia?
Liturgia é serviço do povo, realizado em benefício deste. Numa análise filológica, vem da raiz grega Laos= povo e Ergon= ação. É ação, trabalho, serviço. Ação esta que antes do Vaticano II, o povo apenas assistia como meros espectadores sem compreender o que era feito. A partir do Vaticano II, o conceito de liturgia voltou ao seu sentido primeiro: ação do povo. Hoje se fala em participação, celebração, porque todo povo batizado faz parte do sacerdócio real de Cristo, chamados à transformação e santificação da vida e da história.
Esta ação não é feita sozinha. É feita em parceria com o próprio Deus, e através da fé percebemos a sua presença amorosa e sua ação permanente a serviço da vida. A ação de Deus se dá através de Cristo, seu Filho amado que se fez irmão e servidor com sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição. Nesse sentido, afirmamos que Cristo é o liturgo por excelência.
Em linhas gerais, a liturgia é a ação de Deus realizada em Jesus Cristo, e através do seu espírito, em nós a favor de toda humanidade.
É também o memorial do mistério pascal de Cristo celebrado na Igreja. A cada rito[1] celebrado fazemos memória[2] do ressuscitado na vida de cada pessoa e da comunidade.
2.1 O mistério celebrado no primeiro milênio da nossa era
É importante termos presente que para compreendermos LITURGIA devemos, antes de tudo, fazer uma análise do que aconteceu nos primeiros séculos da Igreja, isto é, como a LITURGIA era celebrada pelos primeiros cristãos, para que ao chegarmos na nossa era, compreendamos, à luz do Vaticano II, o significado deste mistério[3] celebrado, que por sua vez significa experimentar a presença de Deus na nossa vida. É a ação de Deus na qual Ele entra em comunhão com o mundo e com os homens. De um lado Deus se revela e se comunica ao homem, e de outro, o homem entra em comunhão com Deus. Deus é mistério em si mesmo porque é comunhão de vida, de amor e felicidade em si mesmo. Para a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja e a Liturgia, mistério é o plano de Deus de fazer o ser humano participante de sua vida, de salvar a humanidade. Além disso, é visto sob o aspecto divino da salvação. Neste caso, o mistério de Deus é revelado em seu Filho Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, isto é, que se fez humano para a nossa salvação. Ao se revelar em Jesus Cristo, Ele comunicou a sua vida eterna mais íntima ao ser humano. Para compreendermos o mistério é necessário termos fé, pois este brota da nossa espiritualidade. Depois deste ensaio, vamos estudar a liturgia nas suas origens.
Na era apostólica, mais conhecida como tempo dos apóstolos, Jesus e seus seguidores praticavam a religião judaica. Participavam das celebrações litúrgicas (templo, sinagoga, oração e festas). Jesus era um homem muito piedoso, assim como seus seguidores (apóstolos) e participavam assiduamente da religião de seu povo.
Jesus e os apóstolos não vieram romper com a liturgia antiga, pelo contrário, vieram dar pleno cumprimento (Mt 5,17), aperfeiçoá-la. Assim sendo, deu uma nova orientação aos ritos judaicos já existentes. Portanto, a nossa liturgia cristã é uma continuidade da liturgia hebraica. O nosso referencial é Jesus de Nazaré. A partir do mistério de Cristo, aconteceu uma cristianização dos elementos ritualizados herdados, surgindo daí a liturgia cristã. Os elementos rituais são:
ELEMENTOS JUDAICOS X ELEMENTOS CRISTÃOS
Judaísmo Cristianismo
ÚLTIMA CEIA
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A ceia pascal judaica é uma rememoração da libertação do povo hebreu da escravidão para a terra prometida.
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Fazemos memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A sua passagem deste mundo para o Pai.
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LITURGIA DA PALAVRA
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A liturgia judaica é celebrada aos sábados na sinagoga e é feita a leitura da Torá ( Os 5 primeiros livros da Bíblia).
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Leituras bíblicas, cantos dos salmos, homilias. Na liturgia cristã celebra-se todos os dias, de modo particular no domingo, dia consagrado ao Senhor.
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ORAÇÃO DOS FIÉIS
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Dezoito bênçãos com a qual se iniciava a liturgia sinagogal
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Os pedidos das orações dos fiéis na missa após a profissão de fé.
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A SEMANA
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Sábado (sabático) considerado o dia de descanso e também reservado para a reunião litúrgica na sinagoga
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Os cristãos deslocaram para o domingo, em memória da Ressurreição
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ORAÇÃO COTIDIANA
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Oração da manhã e da tarde (laudes e vésperas) e o ternário das horas (terça, sexta, noa)
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COSTUME DE INICIAR AS ORAÇÕES
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Iniciar as orações litúrgicas com a fórmula invitatória: Corações ao alto, Oremos e Demos graças.
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Breve louvor a Deus no final das orações: Glória ao Pai; Santo, santo, santo
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ACLAMAÇÕES LITÚRGICAS
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Amém, Aleluia, Hosana, Pelos séculos dos séculos.
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São elementos rituais riquíssimos que demonstram como a nossa liturgia está enraizada na cultura do Antigo Testamento. Em contrapartida, há aspectos de rupturas entre a liturgia cristã e a liturgia judaica. Em alguns aspectos, Jesus mantém uma crítica em relação à ordem cultual da religião judaica. Jesus quer resgatar o fundamento do culto, a saber, o amor que se desdobra na prática da justiça, da misericórdia, do perdão (cf. Mt 9,13). Também os discípulos de Jesus, após a ascensão, continuavam participando do templo, porém, não participavam dos sacrifícios rituais. Como judeus cristianizados, eram convictos de que a morte-ressurreição de Jesus havia superado o sacrifício da lei antiga. O templo passou a ser o verdadeiro Templo que agora é Cristo. A partir de então, a Igreja apostólica começou a organizar-se criando formas próprias de culto. Uma das características desse novo grupo era a reunião (aspecto comunitário): É a liturgia dos primeiros cristãos (cf. Mt 18,20, At 4,31; 20,7-8).
Em At 2, 46 narra-se o momento da refeição, onde partiam o pão e comiam com simplicidade e alegria. Junto da reunião tinha o momento da oração da benção (oração eucarística: ação de graças) e o ensinamento dos apóstolos.
Outro aspecto interessante é que costumavam realizar as reuniões no primeiro dia da semana. A este dia, deram o nome de “dia do Senhor” (domingo), por ser o dia em que se recorda a ressurreição do Senhor. Mais tarde surgiu a festa anual da Páscoa, quando Paulo dizia: “Cristo nossa Páscoa foi imolado” (1 Cor 5,7). A imolação do Cristo substituiu a do cordeiro da Páscoa anual hebraico. Mais tarde surge também o batismo que já havia sido prefigurado por João Batista (batismo no Espírito no nome de Jesus).
Embora não tendo uma regulamentação estável da liturgia, a comunidade apostólica já dispunha de algumas formas litúrgicas próprias: oração, batismo e eucaristia.
Neste período, séc. II e III, os cristãos procuravam manter-se no âmbito da tradição judaica. Também foi institucionalizada a prática apostólica de fazer reuniões para a fração do pão em casas particulares. Eram casas de famílias nobres que cediam o espaço para as reuniões das comunidades cristãs.
Os cristãos, herdeiros do monoteísmo judaico (único Deus), eram contrários aos rituais pagãos. Por causa disso sofriam perseguições violentas pelo fato de exaltarem a superioridade do cristianismo frente ao paganismo[4]. Eram acusados de ateus e sem religião por não terem templo, altar, nem sacrifícios e nem sacerdotes. O templo para a comunidade cristã era o próprio Cristo e nele, a comunidade cristã forma um só corpo.
Já podemos falar de uma liturgia inculturada, porque o mundo cristão estava em contato com o mundo pagão, chamados helênicos. A liturgia vai se adaptando aos povos do mundo mediterrâneo com sua cultura própria. O mistério de Cristo passa a ser celebrado com elementos da cultura local. Um exemplo é o testemunho de Justino, filósofo convertido ao cristianismo. No ano 150, ele escreve uma apologia em favor dos cristãos, defendendo como era celebrada a missa na comunidade cristã em meados do séc. II. No relato ela apresenta as seguintes partes da missa: Reunião no dia do sol (domingo), escuta da Palavra, homilia, oração dos fiéis, preparação das oferendas, oração eucarística, comunhão e socorro aos necessitados.
Hipólito de Roma (ano 215) também nos apresenta um importante documento dizendo como era organizada e celebrada a missa nessa época. Refere-se ao batismo, havia um itinerário de iniciação cristã, a eucaristia, uma oração eucarística e as ordenações (bispos, presbíteros e diáconos com uma oração de consagração para cada um desses graus. As bênçãos e as orações. Não havia livros litúrgicos e o presidente improvisava as orações.
Nesse período, a liturgia chega ao seu apogeu, ou seja, atinge sua fase de estruturação.
No ano de 313, o imperador Constantino concede liberdade total para a Igreja. Fim das perseguições! Em todo o império, o número de cristãos se multiplica pelo fato de ser uma honra, o que equivale a ser um cidadão do império. A liturgia passa por profunda transformação em sua forma e compreensão. Por estar em contato direto com a cultura romana, as celebrações passam a assumir um caráter imponente e suntuoso. A celebração da eucaristia passa a ser presidida pelo bispo e os cristãos passam a se reunir em locais amplos, nas basílicas construídas pelo imperador.
A liturgia passa a receber também na cultura romana, elementos da própria cultura. Dentro de um contexto político, social e eclesial, os paramentos adotados são semelhantes ao da corte imperial. As liturgias se transformam em suntuosas cerimônias pontificais. Os ministros ordenados são revestidos de uma dignidade de honras igual aos mais altos dignitários do império. Tudo isso é representado pelo mistério de Cristo, que visto como esplendor passa a ser expresso exteriormente na forma esplendida dos cerimoniais da corte.
A Bíblia continua sendo a principal fonte de inspiração na composição dos textos litúrgicos e na explicação dos mistérios cristãos. Elementos pagãos foram introduzidos na religião cristã, como por exemplo, a prática de construir igrejas voltadas para o oriente, o nascer do sol; a festa do natal que entrou no lugar da festa do nascimento do deus sol da religião pagã.
Existem várias formas de celebrar o rito litúrgico devido à inculturação da liturgia cristã nas diversas culturas. Eis os dados cronológicos dessa evolução:
Séculos I e II: Unidade litúrgica. Na formação das comunidades cristãs precisava-se garantir o essencial da tradição recebida.
Séculos III e IV: Começa uma multiplicidade de formas celebrativas. Cada comunidade vai fixando seus ritos, costumes e orações.
Século V: Com a liberdade religiosa concedida por Constantino, é o momento da criação das diversas famílias litúrgicas ou ritos litúrgicos no oriente e no ocidente.
Entendemos que o mistério de Cristo é um só, mas as formas de celebrações são diferentes. Durante a história foram organizados diferentes ritos que constituem as famílias litúrgicas originadas dos antigos e influentes patriarcados: Antioquia[5], Alexandria e Roma. A ação missionária permitiu a esses grupos se expandissem para outras terras, formando assim novos ramos litúrgicos, porém não perdendo a essência que é o mistério de Cristo. [6]
Para ilustrar melhor, apresentamos a seguinte distinção: existem as liturgias orientais e ocidentais.
As liturgias orientais (do oriente) se distinguem em dois grupos, por causa dos seus patriarcados de origem (Antioquia e Alexandria): o grupo antioqueno e o grupo alexandrino. O grupo antioqueno se subdivide em siríaco ocidental (que compreende o siríaco de Antioquia, o maronita, o bizantino e o armeno) e siríaco oriental (que compreende o rito nestoriano, o caldeu, na Mesopotâmia, e o malabar, na Índia). O grupo alexandrino abrange o rito copta e o etiópico.
As liturgias ocidentais (do ocidente) são: a romana (da diocese de Roma), a ambrosiana (própria da diocese de Milão), a hispânica (peculiar da Espanha), a galicana (das Gálias) e a celta (elaborada entre os povos celtas, no ambiente geográfico que compreende a Irlanda, a Escócia e País de Gales). Atualmente, na prática, conserva-se apenas um rito ocidental: o romano. Dos outros, restaram apenas vestígios, ou estão limitados a lugares bem determinados (como é o caso dos ritos ambrosiano e hispânico)[7].
2.6 A formação da liturgia romana clássica
Entre os séc. IV ao VIII foi o tempo em que a Igreja romana foi organizando sua liturgia de forma esplêndida e rica do ponto de vista teológico. Posteriormente, esta liturgia sofrerá influência dos povos francos-germânicos, sofrendo numerosas modificações: ela deixa de ser liturgia romana pura.
Após 313, como já vimos, a liturgia sai das catacumbas e passa a ser celebrada nas basílicas. A partir daí, surge a necessidade de organizar as celebrações litúrgicas de forma mais fixa e rígida. Assim, os bispos de Roma começam a compilar inúmeras orações, introduzem novos ritos. Surge neste período, o primeiro livro litúrgico chamado sacramentário. É um livro que contém as orações presidenciais tanto para as celebrações eucarísticas como dos demais sacramentos. Também para proclamar a palavra de Deus na liturgia, fez-se uma seleção de textos bíblicos de forma ordenada segundo o correr do ano litúrgico. Nasce assim o Lecionário que era dividido em dois livros: Evangeliário (para uso dos diáconos) e Epistolário (para uso dos leitores).
Devida a amplidão das basílicas, foram introduzidas três grandes procissões:
· A solene procissão de entrada do presidente com seus ministros ( introduziu-se a oração da coleta)
· A procissão levando ao altar o pão e o vinho (introduziu-se a oração sobre as oferendas)
· A procissão em direção ao altar para receber a comunhão sob duas espécies. (introduziu-se a oração após a comunhão)
As orações introduzidas no final de cada uma das três procissões variam no decorrer do ano litúrgico. A proclamação do evangelho também foi ritualizada, reservada ao diácono e a procissão era acompanhada de luzes, incenso e aclamação do Aleluia. A oração eucarística é a única, com variadas orações do prefácio. Mais tarde foram acrescentados o glória e o cordeiro de Deus.
É importante ressaltarmos que as orações introduzidas na missa (coleta, prefácio, sobre as oferendas, após a comunhão) possuem uma forma literária elegante. São orações dirigidas ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo.
A partir do séc. VII os ritos litúrgicos do ocidente e do oriente já haviam adquirido suas características fundamentais. Ao longo do séc. VIII e início do séc. IX acontece o fenômeno de imigração da liturgia romana para as terras franco-germânicas. Este fator será importante para compreendermos a cultura religiosa brasileira e latino-americana.
Por ela, a liturgia romana foi adaptada à liturgia galicana para depois retornar à Roma como fundamento da liturgia romana da idade média. Tudo isso aconteceu pelo fato dos bispos e abades franco-germânicos terem simpatizado pelo ritual romano e terem demonstrado insatisfação com os ritos franco-germânicos. Ficaram admirados pela suntuosidade da liturgia, ao mesmo tempo simples e pelos textos litúrgicos romano.
Dado o apreço, o imperador franco-germânico, Carlos Magno, com o intuito de uniformizar a liturgia em todo o império, pediu ao papa Adriano I uma cópia do sacramentário romano. Carlos Magno, ao instituir o rito percebeu que o mesmo estava incompleto, não havendo os vários formulários de missa e bênçãos, que o povo galicano prezava muito. A solução foi incorporar vários elementos próprios da liturgia galicana, tais como: benção do círio pascal, orações para ordenações, bênçãos, dedicações de Igrejas e exorcismos. Daí surgiu uma liturgia romana-franco germânica.
A liturgia galicana se caracterizava pela dramaticidade das orações e das ações litúrgicas, caracterizada pelo pavor diante da divindade, uma forte consciência de pecado, um inquietante sentimento de culpa e um grande individualismo religioso.
A missa passa a ser uma devoção privada do sacerdote e não mais comunitária. Começa-se a perder o caráter pascal da celebração cristã e passa-se para uma espiritualidade fortemente individualista. Dá-se mais importância aos aspectos sentimentais da meditação da paixão de Cristo do que o mistério da fé na ressurreição.
Em contrapartida, surge na liturgia franco-germânica o famoso hino Veni Creator Spiritus. E surgem nesse período, as magníficas Igrejas românicas na França, Alemanha e Espanha. Apesar de esta liturgia ser pouco eclesial-comunitária, mais tarde Roma a adotará como liturgia romana obrigatória para todas as liturgias do ocidente, tornando-se uma liturgia devocionista e individualista.
3 O mistério celebrado no segundo milênio da era cristã
A partir do final do séc. IX a liturgia romana inicia uma nova fase que durará por muitos séculos. A maior parte do segundo milênio é caracterizada por uma liturgia romana totalmente distanciada da tradição antiga. Roma adota a liturgia romano-franco-germânica[8]. A vida litúrgica e espiritual passa por uma terrível decadência. Os papas deste período foram considerados indignos de assumir o governo da Igreja católica. Tanto os papas como o clero manifestavam pouco interesse pela vida litúrgica da Igreja. É um fato assustador, pois Roma elaborou e viveu dos séculos IV a VIII uma liturgia bastante suntuosa.
Os imperadores Otâo I e Otão II, em suas viagens a Roma, ficam horrorizados pelos caos religioso e cultual que proliferava na cidade eterna. Eles mesmos decidiram promover a vida litúrgica na cidade eterna, insistindo no uso dos livros litúrgicos romano-franco-germânicos trazidos da Alemanha. Estes livros foram adotados no norte dos Alpes alemães a partir do séc. VIII. Com a contribuição dos povos franco-germânicos, a vida litúrgica e espiritual em Roma assume um novo sentido.
Superada esta decadência, os papas voltam a assumir com responsabilidade a liturgia romana, até então dominada pelos soberanos e bispos dos Alpes. O Papa Gregório VII (1073-1085) propõe uma ampla e profunda reforma na Igreja. Seu objetivo era recuperar as fontes antigas, zelar pela disciplina moralizando o clero e elevar a dignidade do sacerdócio. Neste sentido havia um interesse específico pela liturgia. Quem celebra a liturgia deve ter dignidade, respeito, coerência de vida e santidade. Como se vê, a moralização do clero gerou um monopólio clerical da liturgia. Começa-se aqui o individualismo religioso por parte dos padres. Gregório VII não recupera o caráter comunitário da liturgia romana clássica dos séc. IV a VIII.
A reforma gregoriana não obteve sucesso pelo fato de ter ocorrido uma centralização romana. Em se tratando especificamente do culto, todas as Igrejas do Ocidente foram obrigadas a seguir o modelo de liturgia da cúria romana estabelecida pelo Papa Gregório VII, e que, no fundo, manteve a mesma estrutura da liturgia romano-franco-germânica.
O Papa Inocêncio III (1198-1216) dedicou-se à reforma dos livros litúrgicos. Na liturgia romana clássica, como vimos, para cada ator da celebração havia um livro. Naquela época, a celebração litúrgica expressava o caráter bem comunitário. Com o tempo, a participação ativa dos fiéis diminuiu e tudo acabou sendo confiado ao sacerdote. Este se tornou o único ator da celebração e a assembléia se tornou meros espectadores.
Para tornar mais prática a celebração, ao invés de usar os variados livros litúrgicos ao mesmo tempo (Sacramentário, Lecionário, Antifonário etc), tudo era reunido num único volume o qual chamamos de Missal. Nasce então o Missal, usado pelos sacerdotes quando celebravam missas sozinhos. Um livro que não contemplava a presença da assembléia. Este livro será imposto para todas as igrejas.
Ocorreu o mesmo com o livro de oração eclesial. Por motivo de comodidade e para a oração privada, inclui-se num único livro contendo tudo o que é necessário para o ofício divino, chamado mais tarde de Breviário[9].
3.2 Algumas características da liturgia romana da Idade Média
Mesmo diante das reformas de Gregório VII e Inocêncio III, a liturgia continua distante do povo e cada vez mais clerical, ou seja, reservada ao sacerdote.
· Enquanto o padre reza a missa no altar distante, o povo se entretém com as devoções particulares. A comunhão é substituída pela adoração da hóstia. Ver a hóstia de longe, adorando-a, tornou-se uma forma de comungar. Por isso que na consagração, os padres adotaram o costume de elevar a hóstia e mais tarde o cálice. Este era o ponto mais importante da missa. Era um momento importante para os fiéis. Para tal, introduziram o uso da campainha para chamar atenção do povo e enfatizar este momento.
· A adoração eucarística substituiu o verdadeiro sentido da eucaristia vivido nas comunidades primitivas (assembléia, caridade, comunhão e sacrifício). Surge também no séc. XIII a festa de Corpus Christi[10], tornando-se a festa mais importante do ano litúrgico, estando acima da festa da Páscoa.
· É muito forte o costume devocional das missas privadas pelos defuntos, em honra aos santos e por diferentes intenções particulares. Conseqüentemente cresce o número de padres ordenados somente para rezar missa (altaristas) e a dramatização dos gestos litúrgicos durante a missa[11] (sinal da cruz constante, genuflexões e movimentos de um lado para o outro). A liturgia era um teatro religioso medieval.
· Os sacramentos perderam a sua originalidade, ou seja, como celebração do mistério pascal e passou a serem vistos como remédio que cura, purifica, previne e fortalece.
3.3 Reforma litúrgica do Concílio de Trento
O Concílio[12], celebrado na cidade de Trento nos anos de 1545-1563, foi de grande importância para a vida da Igreja, pois o séc. XVI foi um período muito conturbado na Igreja. Em 1517 eclodiu-se a reforma protestante liderada por Martinho Lutero, rompendo-se com a Igreja e fundando a igreja luterana, e mais tarde, na Inglaterra, o rei Henrique VIII também rompe com Roma e funda o Anglicanismo. Um novo cisma abalou as estruturas internas e externas da Igreja Católica. Lutero questionava os abusos existentes dentro da Igreja, também no que diz respeito à liturgia. O Concílio de Trento promoveu algumas reformas litúrgicas importantes, porém parcial, pois não havia tempo para fazer a reforma completa da liturgia.
Os reformadores reivindicavam uma renovação na Igreja, sobretudo na liturgia. Para eles havia uma falta de espírito evangélico e exigia o uso da língua de cada nação, a participação ativa de todos, a recitação das orações em voz alta, comunhão sob duas espécies, abolir o uso exclusivo de celebrações privadas. Estas práticas não foram assumidas por Trento e veremos que acontecerá somente com Vaticano II.
O Concílio de Trento teve um caráter mais doutrinário do que pastoral, portanto, dos assuntos discutidos, afirmou-se o caráter sacrifical da missa e a presença real de Jesus na eucaristia. Por falta de tempo, o Concílio não aprofundou o aspecto litúrgico da Igreja, mas manteve a liturgia romana que perdurou por quatro séculos e confiou ao Papa a publicação dos livros litúrgicos[13], que passaram a ser de uso obrigatório para toda a Igreja, menos as dioceses e ordens religiosas com tradições próprias de mais de dois séculos.
Em resposta à reforma protestante, surge um movimento cultural que expressava bem o espírito da contra-reforma. A este chamamos de barroco. Foi um período de superação das crises provocadas pelo protestantismo, onde a Igreja Católica se sentiu vitoriosa, segura e forte. A Igreja assume um caráter triunfalista acentuando a presença real de Cristo na eucaristia e insistindo cada vez mais na dignidade dos sacerdotes. Continua-se o modelo de separação entre o padre e o povo.
As celebrações são brilhantes, com caráter triunfalista, porém fora do verdadeiro espírito da liturgia. Nas igrejas os altares laterais se multiplicam, como também a imagem dos santos e de Maria. A homilia se torna sermão e era feita no púlpito. Os sacrários são luxuosos, se desenvolve a música sacra e a missa era apenas ouvida. A festa por excelência no período do barroco foi a de Corpus Christi com a solene procissão em honra ao rei eucarístico.
Sendo a missa animada pela orquestra e o coro em voz alta, a participação do povo foi quase zero. Muitos aproveitavam a ocasião para recitar o rosário e se entregar às suas devoções populares.
3.4 A Liturgia que o Brasil e a América Latina Herdaram
O conhecimento da liturgia no período tridentino e pós-tridentino é importante para compreendermos as raízes históricas de nossa própria cultura religiosa brasileira e latino-americana. Queremos dar ênfase à liturgia que herdamos, sobretudo no período colonial, e “para algumas adaptações desta liturgia no nosso contexto social e religioso.
A liturgia que herdamos foi a liturgia do período medieval e pós-tridentino, que os colonizadores e os missionários portugueses e espanhóis trouxeram para o continente latino americano a partir de 1492. Uma liturgia de índole romano-franco-germânica e de língua única e obrigatória (latim) para todos os povos do ocidente. Uma liturgia igual para todos, porém com o passar do tempo houve adaptações, o que hoje chamamos de inculturação.
Ainda estava muito longe de ter uma liturgia, cuja finalidade seria a celebração do mistério pascal comunitariamente celebrado sob a presidência de seus pastores. Permanecia o ritual meio mágico celebrado pelo clero, distante do povo. Herdamos uma liturgia feita apenas para o clero, e o povo assistia passivamente as cerimônias feitas pelos padres lá no altar.
A devoção popular tomou fôlego neste período. O povo se dedicava mais à devoção aos santos, novenas, reza do terço, etc. Os sacramentos eram vistos como remédio espiritual para curar os males e manter uma boa relação de amizade com Deus e não como a celebração do mistério pascal em nossa vida. Foi uma liturgia que predominava o individualismo religioso. Cada pessoa cuidava da sua vida espiritual sem nenhum compromisso eclesial e de transformação social, sem sentir-se irmão uns dos outros e membros do corpo místico de Cristo. Em síntese, não se contemplava o valor da assembléia.
Esta é a liturgia católica que herdamos durante cinco séculos, o que formou neste continente uma cultura tipicamente religiosa. Por um lado, o catolicismo popular teve seus elementos positivos (solidariedade, hospitalidade, piedade, gosto pela festa, espírito jovial, etc) e negativos (superstição, idolatria do poder, falta de formação, sincretismo, redução da fé a um contrato com Deus, individualismo religioso, etc).
A liturgia teve que se adaptar no contato com os povos desta terra (negros, índios, colonizadores e mestiços). Um exemplo é a tentativa de adaptação da celebração do batismo entre os índios do Brasil. Os missionários fizeram a tradução dos textos para a língua tupi.
Uma das adaptações mais interessantes é a que aparece na organização do espaço das celebrações nas igrejas no Brasil. O espaço era dividido em seis recintos:
· Recinto clerical: presbitério
· Recinto central: reservado às mulheres
· Recintos laterais: num plano mais elevado, reservado para os homens bons, livres e simbolizava a superioridade, tanto diante do clero quanto das mulheres.
· O espaço em torno das portas: reservado aos negros e escravos
· Um lugar de destaque entre a nave central e o presbitério era reservado para pessoas mais importantes.
· O coro, sobre a porta da Igreja, era reservado para os cantores e a orquestra.
No Brasil colônia existia igrejas para os escravos e os negros e igrejas para os homens brancos, como é visível nas antigas cidades mineiras do Brasil colônia (Ouro Preto, Mariana, etc). As casas, normalmente tinham seus oratórios para a liturgia familiar. Eles se reuniam para rezar o terço e a oração da noite. O rezador geralmente era pessoa muito simples e mesmo se houvesse um padre, ele presidia as orações. As missas eram celebradas com grande pompa barroca adaptada ao ambiente social do Brasil colônia. No séc. XVI, os jesuítas permitiam o uso de instrumentos musicais indígenas nas celebrações. Era uma grande festa e faziam uso de recursos da liturgia barroca para atrair os índios: músicas, procissões, cruz alçada, paramentos, multicores, bandeiras, batinas, folhas de palmeiras a serem agitadas nas procissões, imagens teatros, dramatizações, etc.
São exemplos de adaptações da liturgia medieval e pós-tridentina no contexto do Brasil colônia. No seu espírito ela permanecia a mesma, ao passo que o essencial continuava em segundo plano.
3.5 O caminho da renovação: O movimento litúrgico
No início do séc. XX inicia-se um grande movimento de renovação litúrgica na Igreja do ocidente. É o chamado movimento litúrgico, que teve a sua pré-história no período do iluminismo (séc. XVIII) e da restauração católica (séc. XIX).
O movimento litúrgico aparece na Europa por volta do séc. XVIII com o intuito de se contrapor ao barroco: o iluminismo. Teve grande influência na liturgia. Desencadeou um processo contra a centralidade tridentina e a exagerada exteriorização barroca. Os católicos exigiam uma liturgia mais simples, que se adequasse à realidade do povo e fosse por eles compreendida. O problema é que os católicos viam a liturgia mais como função educadora do povo do que celebração do mistério de Cristo. O que comprometeu o trabalho de reforma. Em todo caso, este movimento se culminará com a reforma litúrgica do Vaticano II. E a partir daí compreenderemos que a liturgia é a fonte primordial da vida cristã.
No Brasil, o movimento litúrgico surge em 1933 e teve como expoente o monge beneditino Martinho Micheler. Foi muito bem aceito nos movimentos de Ação Católica e divulgado em quase todo país, pois pregava o retorno às fontes. As propostas do movimento, às vezes não foram colocadas de modo feliz por seus divulgadores e acabou formando um antagonismo com os católicos tradicionais brasileiros. Por um lado os liturgistas e por outro os devocionistas. Os devocionistas eram mais reacionários e acusavam o movimento de tentar abolir as devoções populares (culto aos santos,bao papa, à Virgem Maria e ao Santíssimo Sacramento).
Graças ao movimento litúrgico, o Concílio Vaticano II pôde concretizar a reforma litúrgica.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
O Vaticano II (1962-1965) foi um Concílio de cunho mais pastoral. Era urgente uma reforma no interior da Igreja e o beato Papa João XXII considerou como um “Novo Pentecostes para a Igreja”. O primeiro documento aprovado foi a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. No artigo 1°, o documento afirma que o Concílio deseja fomentar sempre mais a vida cristã dos fiéis e favorecer para que tudo se convirja para os que crêem em Cristo.
Trata-se de um Concílio que vem de encontro com a realidade sócio cultural do séc. XX, dialogando com o homem moderno. A liturgia a partir do Vaticano II foi um verdadeiro retorno às fontes. Procurou adaptar-se à realidade cultural de cada nação. Um dos grandes méritos foi a missa celebrada de frente para o povo, tornando assim uma celebração comunitária em que o centro da celebração é o Cristo.
Texto elaborado pelo Cl. Geovani dos Santos Pereira
[1] É o conjunto das cerimónias litúrgicas. Nelas se atualiza a ação salvadora de Jesus Cristo realizada de uma vez por todas.
[2] Memória significa recordar um fato acontecido no passado. Ao mesmo tempo, temos a certeza de participarmos deste mesmo acontecimento e de seus efeitos salvíficos.
[3] O mistério é algo oculto que podemos conhecê-lo aos olhos da fé. Toda liturgia é um mistério celebrado porque narra toda a história da salvação e nos coloca diante do grande mistério que é Deus, revelado no seu Filho Jesus Cristo. Neste sentido, o mistério é a presença de Deus. O mistério deve ser entendido como uma vontade salvífica de Deus em salvar a humanidade. Sem dúvida alguma, este deve brotar da nossa espiritualidade. Deus é mistério em si mesmo porque é comunhão de vida, de amor e de fidelidade em si mesmo.
[4] O paganismo significa a adoração a vários deuses (politeísmo). Era muito comum entre os gregos nos primeiros séculos.
[5] Local onde as primeiras comunidades receberam o nome de cristãos pela primeira vez.
[6] Ler o Catecismo da Igreja Católica nn. 1200 – 1202.
[7] BUYST, Ione. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas. p. 35.
[8] É uma junção da liturgia de Roma e dos impérios franco e germânicos.
[9] O Breviário é um livro que contem as orações da Igreja distribuídas seis momentos ao longo do dia. É o livro oficial das comunidades religiosas e todo povo de Deus (leigos e leigas) é convidado a seguir esta prática.
[10] Corpus Christi surgiu com o intuito de exaltar a realeza de Jesus, atribuindo à ele todas as pompas reais, até então ostentada pelos homens terrenos. Tornou-se uma festa devocional e até hoje nas procissões as vias são ornadas com tapetes luxuosos. Ainda é muito presente esta prática em Minas Gerais.
[11] O clero celebrava frequentemente as missas votivas e faziam da Igreja um comércio espiritual.
[12] O Concílio é uma assembléia da Igreja que reúne os bispos com o objetivo de tratar de assuntos referentes à vida da Igreja.
[13] Pio V publicou o breviário (1568) e o missal romano (1570). Clemente VIII publicou o pontifical romano (1596) e o cerimonial dos bispos (1600).
http://www.orionitas.com.br/liturgia__historia_da_liturgia.php
DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
Ensinamentos sobre a liturgia do Santo Padre Francisco
Liturgia e beleza
Amados irmãos e irmãs,
Com alegria, celebro pela primeira vez a Missa Crismal como Bispo de Roma. Saúdo com afecto a todos vós, especialmente aos amados sacerdotes que hoje recordam, como eu, o dia da Ordenação
As Leituras e o Salmo falam-nos dos «Ungidos»: o Servo de Javé referido por Isaías, o rei David e Jesus nosso Senhor. Nos três, aparece um dado comum: a unção recebida destina-se ao povo fiel de Deus, de quem são servidores; a sua unção «é para» os pobres, os presos, os oprimidos… Encontramos uma imagem muito bela de que o santo crisma «é para» no Salmo 133: «É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes» (v. 2). Este óleo derramado, que escorre pela barba de Aarão até à orla das suas vestes, é imagem da unção sacerdotal, que, por intermédio do Ungido, chega até aos confins do universo representado nas vestes.
As vestes sagradas do Sumo Sacerdote são ricas de simbolismos; um deles é o dos nomes dos filhos de Israel gravados nas pedras de ónix que adornavam as ombreiras do efod, do qual provém a nossa casula actual: seis sobre a pedra do ombro direito e seis na do ombro esquerdo (cf. Ex 28, 6-14). Também no peitoral estavam gravados os nomes das doze tribos de Israel (cf. Ex 28, 21). Isto significa que o sacerdote celebra levando sobre os ombros o povo que lhe está confiado e tendo os seus nomes gravados no coração. Quando envergamos a nossa casula humilde pode fazer-nos bem sentir sobre os ombros e no coração o peso e o rosto do nosso povo fiel, dos nossos santos e dos nossos mártires, que são tantos neste tempo.
Depois da beleza de tudo o que é litúrgico – que não se reduz ao adorno e bom gosto dos paramentos, mas é presença da glória do nosso Deus que resplandece no seu povo vivo e consolado –, fixemos agora o olhar na acção. O óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, não se limita a perfumá-lo a ele, mas espalha-se e atinge «as periferias». O Senhor dirá claramente que a sua unção é para os pobres, os presos, os doentes e quantos estão tristes e abandonados. A unção, amados irmãos, não é para nos perfumar a nós mesmos, e menos ainda para que a conservemos num frasco, pois o óleo tornar-se-ia rançoso... e o coração amargo.
Liturgia e vida
O bom sacerdote reconhece-se pelo modo como é ungido o seu povo; temos aqui uma prova clara. Nota-se quando o nosso povo é ungido com óleo da alegria; por exemplo, quando sai da Missa com o rosto de quem recebeu uma boa notícia. O nosso povo gosta do Evangelho quando é pregado com unção, quando o Evangelho que pregamos chega ao seu dia a dia, quando escorre como o óleo de Aarão até às bordas da realidade, quando ilumina as situações extremas, «as periferias» onde o povo fiel está mais exposto à invasão daqueles que querem saquear a sua fé. As pessoas agradecem-nos porque sentem que rezámos a partir das realidades da sua vida de todos os dias, as suas penas e alegrias, as suas angústias e esperanças. E, quando sentem que, através de nós, lhes chega o perfume do Ungido, de Cristo, animam-se a confiar-nos tudo o que elas querem que chegue ao Senhor: «Reze por mim, padre, porque tenho este problema», «abençoe-me, padre», «reze para mim»… Estas confidências são o sinal de que a unção chegou à orla do manto, porque é transformada em súplica – súplica do Povo de Deus. Quando estamos nesta relação com Deus e com o seu Povo e a graça passa através de nós, então somos sacerdotes, mediadores entre Deus e os homens. O que pretendo sublinhar é que devemos reavivar sempre a graça, para intuirmos, em cada pedido – por vezes inoportuno, puramente material ou mesmo banal (mas só aparentemente!) –, o desejo que tem o nosso povo de ser ungido com o óleo perfumado, porque sabe que nós o possuímos. Intuir e sentir, como o Senhor sentiu a angústia permeada de esperança da hemorroíssa quando ela Lhe tocou a fímbria do manto. Este instante de Jesus, no meio das pessoas que O rodeavam por todos os lados, encarna toda a beleza de Aarão revestido sacerdotalmente e com o óleo que escorre pelas suas vestes. É uma beleza escondida, que brilha apenas para aqueles olhos cheios de fé da mulher atormentada com as perdas de sangue. Os próprios discípulos – futuros sacerdotes – não conseguem ver, não compreendem: na «periferia existencial», vêem apenas a superficialidade duma multidão que aperta Jesus de todos os lados quase O sufocando (cf. Lc 8, 42). Ao contrário, o Senhor sente a força da unção divina que chega às bordas do seu manto.
É preciso chegar a experimentar assim a nossa unção, com o seu poder e a sua eficácia redentora: nas «periferias» onde não falta sofrimento, há sangue derramado, há cegueira que quer ver, há prisioneiros de tantos patrões maus. Não é, concretamente, nas auto-experiências ou nas reiteradas introspecções que encontramos o Senhor: os cursos de auto-ajuda na vida podem ser úteis, mas viver a nossa vida sacerdotal passando de um curso ao outro, de método em método leva a tornar-se pelagianos, faz-nos minimizar o poder da graça, que se activa e cresce na medida em que, com fé, saímos para nos dar a nós mesmos oferecendo o Evangelho aos outros, para dar a pouca unção que temos àqueles que não têm nada de nada.
O sacerdote, que sai pouco de si mesmo, que unge pouco – não digo «nada», porque, graças a Deus, o povo nos rouba a unção –, perde o melhor do nosso povo, aquilo que é capaz de activar a parte mais profunda do seu coração presbiteral. Quem não sai de si mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um gestor. A diferença é bem conhecida de todos: o intermediário e o gestor «já receberam a sua recompensa». É que, não colocando em jogo a pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres tristes, e transformados numa espécie de coleccionadores de antiguidades ou então de novidades, em vez de serem pastores com o «cheiro das ovelhas» – isto vo-lo peço: sede pastores com o «cheiro das ovelhas», que se sinta este –, serem pastores no meio do seu rebanho, e pescadores de homens. É verdade que a chamada crise de identidade sacerdotal nos ameaça a todos e vem juntar-se a uma crise de civilização; mas, se soubermos quebrar a sua onda, poderemos fazer-nos ao largo no nome do Senhor e lançar as redes. É um bem que a própria realidade nos faça ir para onde, aquilo que somos por graça, apareça claramente como pura graça, ou seja, para este mar que é o mundo actual onde vale só a unção – não a função – e se revelam fecundas unicamente as redes lançadas no nome d’Aquele em quem pusemos a nossa confiança: Jesus.
Amados fiéis, permanecei unidos aos vossos sacerdotes com o afecto e a oração, para que sejam sempre Pastores segundo o coração de Deus.
Amados sacerdotes, Deus Pai renove em nós o Espírito de Santidade com que fomos ungidos, o renove no nosso coração de tal modo que a unção chegue a todos, mesmo nas «periferias» onde o nosso povo fiel mais a aguarda e aprecia. Que o nosso povo sinta que somos discípulos do Senhor, sinta que estamos revestidos com os seus nomes e não procuramos outra identidade; e que ele possa receber, através das nossas palavras e obras, este óleo da alegria que nos veio trazer Jesus, o Ungido. Amen.
Culto ed Eucaristia
Cari fratelli e sorelle,
nel Vangelo che abbiamo ascoltato, c’è un’espressione di Gesù che mi colpisce sempre: «Voi stessi date loro da mangiare» (Lc 9,13). Partendo da questa frase, mi lascio guidare da tre parole: sequela, comunione, condivisione.
1. Anzitutto: chi sono coloro a cui dare da mangiare? La risposta la troviamo all’inizio del brano evangelico: è la folla, la moltitudine. Gesù sta in mezzo alla gente, l’accoglie, le parla, la cura, le mostra la misericordia di Dio; in mezzo ad essa sceglie i Dodici Apostoli per stare con Lui e immergersi come Lui nelle situazioni concrete del mondo. E la gente lo segue, lo ascolta, perché Gesù parla e agisce in un modo nuovo, con l’autorità di chi è autentico e coerente, di chi parla e agisce con verità, di chi dona la speranza che viene da Dio, di chi è rivelazione del Volto di un Dio che è amore. E la gente, con gioia, benedice Dio.
Questa sera noi siamo la folla del Vangelo, anche noi cerchiamo di seguire Gesù per ascoltarlo, per entrare in comunione con Lui nell’Eucaristia, per accompagnarlo e perché ci accompagni. Chiediamoci: come seguo io Gesù? Gesù parla in silenzio nel Mistero dell’Eucaristia e ogni volta ci ricorda che seguirlo vuol dire uscire da noi stessi e fare della nostra vita non un nostro possesso, ma un dono a Lui e agli altri.
2. Facciamo un passo avanti: da dove nasce l’invito che Gesù fa ai discepoli di sfamare essi stessi la moltitudine? Nasce da due elementi: anzitutto dalla folla che, seguendo Gesù, si trova all’aperto, lontano dai luoghi abitati, mentre si fa sera, e poi dalla preoccupazione dei discepoli che chiedono a Gesù di congedare la folla perché vada nei paesi vicini a trovare cibo e alloggio (cfr Lc 9,12). Di fronte alla necessità della folla, ecco la soluzione dei discepoli: ognuno pensi a se stesso; congedare la folla! Ognuno pensi a se stesso; congedare la folla! Quante volte noi cristiani abbiamo questa tentazione! Non ci facciamo carico delle necessità degli altri, congedandoli con un pietoso: “Che Dio ti aiuti”, o con un non tanto pietoso: “Felice sorte”, e se non ti vedo più… Ma la soluzione di Gesù va in un’altra direzione, una direzione che sorprende i discepoli: «Voi stessi date loro da mangiare». Ma come è possibile che siamo noi a dare da mangiare ad una moltitudine? «Non abbiamo che cinque pani e due pesci, a meno che non andiamo noi a comprare viveri per tutta questa gente» (Lc 9,13). Ma Gesù non si scoraggia: chiede ai discepoli di far sedere la gente in comunità di cinquanta persone, alza gli occhi al cielo, recita la benedizione, spezza i pani e li dà ai discepoli perché li distribuiscano (cfr Lc 9,16). E’ un momento di profonda comunione: la folla dissetata dalla parola del Signore, è ora nutrita dal suo pane di vita. E tutti ne furono saziati, annota l’Evangelista (cfr Lc 9,17).
Questa sera, anche noi siamo attorno alla mensa del Signore, alla mensa del Sacrificio eucaristico, in cui Egli ci dona ancora una volta il suo Corpo, rende presente l’unico sacrificio della Croce. E’ nell’ascoltare la sua Parola, nel nutrirci del suo Corpo e del suo Sangue, che Egli ci fa passare dall’essere moltitudine all’essere comunità, dall’anonimato alla comunione. L’Eucaristia è il Sacramento della comunione, che ci fa uscire dall’individualismo per vivere insieme la sequela, la fede in Lui. Allora dovremmo chiederci tutti davanti al Signore: come vivo io l’Eucaristia? La vivo in modo anonimo o come momento di vera comunione con il Signore, ma anche con tutti i fratelli e le sorelle che condividono questa stessa mensa? Come sono le nostre celebrazioni eucaristiche?
3. Un ultimo elemento: da dove nasce la moltiplicazione dei pani? La risposta sta nell’invito di Gesù ai discepoli «Voi stessi date…», “dare”, condividere. Che cosa condividono i discepoli? Quel poco che hanno: cinque pani e due pesci. Ma sono proprio quei pani e quei pesci che nelle mani del Signore sfamano tutta la folla. E sono proprio i discepoli smarriti di fronte all’incapacità dei loro mezzi, alla povertà di quello che possono mettere a disposizione, a far accomodare la gente e a distribuire – fidandosi della parola di Gesù - i pani e pesci che sfamano la folla. E questo ci dice che nella Chiesa, ma anche nella società, una parola chiave di cui non dobbiamo avere paura è “solidarietà”, saper mettere, cioè, a disposizione di Dio quello che abbiamo, le nostre umili capacità, perché solo nella condivisione, nel dono, la nostra vita sarà feconda, porterà frutto. Solidarietà: una parola malvista dallo spirito mondano!
Questa sera, ancora una volta, il Signore distribuisce per noi il pane che è il suo Corpo, Lui si fa dono. E anche noi sperimentiamo la “solidarietà di Dio” con l’uomo, una solidarietà che mai si esaurisce, una solidarietà che non finisce di stupirci: Dio si fa vicino a noi, nel sacrificio della Croce si abbassa entrando nel buio della morte per darci la sua vita, che vince il male, l’egoismo e la morte. Gesù anche questa sera si dona a noi nell’Eucaristia, condivide il nostro stesso cammino, anzi si fa cibo, il vero cibo che sostiene la nostra vita anche nei momenti in cui la strada si fa dura, gli ostacoli rallentano i nostri passi. E nell’Eucaristia il Signore ci fa percorrere la sua strada, quella del servizio, della condivisione, del dono, e quel poco che abbiamo, quel poco che siamo, se condiviso, diventa ricchezza, perché la potenza di Dio, che è quella dell’amore, scende nella nostra povertà per trasformarla.
Chiediamoci allora questa sera, adorando il Cristo presente realmente nell’Eucaristia: mi lascio trasformare da Lui? Lascio che il Signore che si dona a me, mi guidi a uscire sempre di più dal mio piccolo recinto, a uscire e non aver paura di donare, di condividere, di amare Lui e gli altri?
Fratelli e sorelle: sequela, comunione, condivisione. Preghiamo perché la partecipazione all’Eucaristia ci provochi sempre: a seguire il Signore ogni giorno, ad essere strumenti di comunione, a condividere con Lui e con il nostro prossimo quello che siamo. Allora la nostra esistenza sarà veramente feconda. Amen.
Dall’Omelia nella Domus Sanctae Marthae, 31 maggio 2013
“E’ proprio lo Spirito che ci guida: Lui è l’autore della gioia, il Creatore della gioia. E questa gioia nello Spirito, ci dà la vera libertà cristiana. Senza gioia, noi cristiani non possiamo diventare liberi, diventiamo schiavi delle nostre tristezze. Il grande Paolo VI diceva che non si può portare avanti il Vangelo con cristiani tristi, sfiduciati, scoraggiati. Non si può. Questo atteggiamento un po’ funebre, eh? Tante volte i cristiani hanno la faccia di andare più a un corteo funebre che di andare a lodare Dio, no? E da questa gioia viene la lode, questa lode di Maria, questa lode che dice Sofonia, questa lode di Simeone, di Anna: la lode di Dio!”
“’Lei che è qui a Messa, lei loda Dio o soltanto chiede a Dio e ringrazia Dio? Ma loda Dio?’. E’ una cosa nuova quella, nuova nella nostra vita spirituale. Lodare Dio, uscire da noi stessi per lodare; perdere del tempo lodando. ‘Questa Messa, che lunga s’è fatta!’. Se tu non lodi Dio, non sai quella gratuità di perdere il tempo lodando a Dio, è lunga la Messa. Ma se tu vai su questo atteggiamento della gioia, della lode a Dio, quello è bello! L’eternità sarà quello: lodare Dio! E quello non sarà noioso: sarà bellissimo! Questa gioia ci fa liberi”.
“Dobbiamo pregare la Madonna, perché portando Gesù ci dia la grazia della gioia, della libertà della gioia. Ci dia la grazia di lodare, di lodare con una preghiera di lode gratuita, di lode, perché Lui è degno di lode sempre. Pregare la Madonna e dirle come le dice la Chiesa: Veni, Precelsa Domina, Maria, tu nos visita, Signora, tu che sei tanto grande, visita noi e donaci la gioia!”.
(fonte: Radio Vaticana)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA
Introdução [1]
O alimento da verdade [2]
O desenvolvimento do rito eucarístico [3]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4]
Finalidade do documento [5]
A fé eucarística da Igreja [6]
O pão descido do céu [7]
Dom gratuito da Santíssima Trindade [8]
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro [9]
A instituição da Eucaristia [10]
A figura deu lugar à Verdade [11]
Jesus e o Espírito Santo [12]
Espírito Santo e celebração eucarística [13]
Eucaristia, princípio causal da Igreja [14]
Eucaristia e comunhão eclesial [15]
Sacramentalidade da Igreja [16]
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã [17]
A ordem dos sacramentos da iniciação [18]
Iniciação, comunidade eclesial e família [19]
Sua ligação intrínseca [20]
Alguns cuidados pastorais [21]
Na pessoa de Cristo cabeça [23]
Eucaristia e celibato sacerdotal [24]
Escassez de clero e pastoral vocacional [25]
Gratidão e esperança [26]
Eucaristia, sacramento esponsal [27]
Eucaristia e unidade do Matrimónio [28]
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio [29]
Eucaristia, dom para o homem a caminho [30]
O banquete escatológico [31]
Oração pelos defuntos [32]
Norma da oração e norma de fé [34]
Beleza e liturgia [35]
Cristo inteiro: cabeça e corpo [36]
Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]
Arte da celebração [38]
O bispo, liturgista por excelência [39]
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais [40]
Arte ao serviço da celebração [41]
O canto litúrgico [42]
Unidade intrínseca da acção litúrgica [44]
A liturgia da palavra [45]
A homilia [46]
Apresentação das oferendas [47]
A Oração Eucarística [48]
Saudação da paz [49]
Distribuição e recepção da Eucaristia [50]
A despedida: « Ite, missa est » [51]
Autêntica participação [52]
Participação e ministério sacerdotal [53]
Celebração eucarística e inculturação [54]
Condições pessoais para uma participação activa [55]
Participação dos cristãos não católicos [56]
Participação através dos meios de comunicação [57]
Participação activa dos doentes [58]
A solicitude pelos presos [59]
Os migrantes e a participação na Eucaristia [60]
As grandes concelebrações [61]
A língua latina [62]
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos [63]
Catequese mistagógica [64]
A reverência à Eucaristia [65]
A relação intrínseca entre celebração e adoração [66]
A prática da adoração eucarística [67]
Formas de devoção eucarística [68]
O lugar do sacrário na igreja [69]
O culto espiritual [70]
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico [71]
Viver segundo o domingo [72]
Viver o preceito dominical [73]
O sentido do repouso e do trabalho [74]
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote [75]
Uma forma eucarística da existência cristã, a pertença eclesial [76]
Espiritualidade e cultura eucarística [77]
Eucaristia e evangelização das culturas [78]
Eucaristia e fiéis leigos [79]
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80]
Eucaristia e vida consagrada [81]
Eucaristia e transformação moral [82]
Coerência eucarística [83]
Eucaristia e missão [84]
Eucaristia e testemunho [85]
Jesus Cristo, único Salvador [86]
Liberdade de culto [87]
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo [88]
As implicações sociais do mistério eucarístico [89]
O alimento da verdade e a indigência do homem [90]
A doutrina social da Igreja [91]
Santificação do mundo e defesa da criação [92]
Utilidade dum Compêndio Eucarístico [93]
Conclusão [94-97]
INTRODUÇÃO
1. Sacramento da Caridade, (1) a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a vida pelos amigos » (Jo 15, 13). De facto, Jesus « amou-os até ao fim » (Jo 13, 1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao fim », até ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!
O alimento da verdade
2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8, 36), Cristo faz-Se alimento de Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? » (2) De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e vida » (Jo 14, 6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. « Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma ».(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus é amor.(4) Exactamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.
O desenvolvimento do rito eucarístico
3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela acção do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a guia activa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica actuada a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II.(5) O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembleia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.(6)
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia
4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine (7) e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,(8) numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,(9) deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.
Finalidade do documento
5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos — a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, asRelationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos —, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. Consciente do vasto património doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,(11) que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica — a Deus caritas est —, na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: « O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termoagape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós ».(12)
I PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
« A obra de Deus consiste
em acreditar n'Aquele que Ele enviou »
(Jo 6, 29)
A fé eucarística da Igreja
A fé eucarística da Igreja
6. « Mistério da fé! »: com esta exclamação pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência « mistério da fé »: « É o resumo e a súmula da nossa fé ».(13) A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé ».(14) Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! » (15) Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu
7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: « Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma coisa », mas dá-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do céu. O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo » (Jo 6, 32-33), acabando por identificar-Se Ele mesmo — a sua própria carne e o seu próprio sangue — com aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens.
Dom gratuito da Santíssima Trindade
8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1, 9-10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo é amor (1 Jo 4, 7-8), envolve-Se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (Heb 9, 14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».(17)
Eucaristia:
Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro
9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jo 12, 32), antes de « entregar o Espírito » Jesus diz: « Tudo está consumado » (Jo 19, 30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Fil 2, 8), cumpriu-se a nova e eterna aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7, 27; 1 Jo 2, 2; 4, 10). Como já tive ocasião de afirmar, « na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical ».(18) No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da « nova e eterna aliança », estipulada no seu sangue derramado (Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20). Esta finalidade última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de facto, nas margens do Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: « Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo » (Jo 1, 29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: « Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo ». Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifício por nós, realizando assim a nova e eterna aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical, que nos é oferecida em cada celebração.(19)
A instituição da Eucaristia
10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. O facto teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor — aBerakah —, Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria « exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai desde a fundação do mundo, como se lê na I Carta de Pedro (1, 18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal.
A figura deu lugar à Verdade
11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).(20) Com a sua ordem « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus deixou-nos a missão de entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação ».(21) Ele « arrasta-nos para dentro de Si ».(22) A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de « fissão nuclear » (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28).
O Espírito Santo e a Eucaristia
Jesus e o Espírito Santo
12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico dia após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.(23) A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,(24) activo já na criação (Gn 1, 2), está presente em plenitude na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1, 18; Lc 1, 35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10, 21); e é n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado « discurso de despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jo 16, 7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20, 22), tornando os seus discípulos participantes da mesma missão d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo 15, 26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16, 13). Segundo narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para a missão de anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da acção do Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia.
Espírito Santo e celebração eucarística
13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e transformado totalmente ».(25) Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: (26) à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, « descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos ».(27) É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo ».(28) O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num só corpo », tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.(29)
Eucaristia e Igreja
Eucaristia, princípio causal da Igreja
14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria « hora »; mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2, 21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado — narra João — saiu sangue e água (Jo 19, 34), símbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para « Aquele que trespassaram » (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia ».(31) Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que « existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja ».(32) A Eucaristia é Cristo que Se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,(33) a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer » a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos primeiro » (1 Jo 4, 19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.
Eucaristia e comunhão eclesial
15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras — corpus Christi — o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.(34) Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja: « ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo ». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.(35)
O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação entre Eucaristia ecommunio: falou do memorial de Cristo como sendo a « suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».(36) A unidade da comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no acto eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única ».(37) É precisamente a realidade da única Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De facto, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu corpo, único e indiviso ».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua natureza.(39) O facto de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)
Eucaristia e Sacramentos
Sacramentalidade da Igreja
16. O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Concílio afirmou que « a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(43) Ela, enquanto « povo — como diz São Cipriano — reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da comunhão trinitária.
O facto de a Igreja ser « universal sacramento da salvação »(45) mostra que a « economia » sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério eucarístico.
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogar-nos — como sugeriram os padres sinodais — se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de facto, é preciso não esquecer jamais que somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na acção pastoral uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48) Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.(49)
A ordem dos sacramentos da iniciação
18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente (50) e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,(51) se comparada com a das crianças.(52) Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de carácter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que háde ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário de iniciação. Receber o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa.
II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos — é certo — que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.(56) Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a confissão frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada ».(64) O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos « quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da confissão e da comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.
III. Eucaristia e Unção dos Enfermos
22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: « Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia » (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt25, 40).
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). De facto, na vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz. Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice do meu sangue » senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara, noutras assembleias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz respeito à identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.(71) De facto, « no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a acção litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10, 14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II (76) e com os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma distribuição mais equitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.(78) Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para o serviço sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente formado e admitido à ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.(80) Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.
Gratidão e esperança
26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para dedicar-se totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos « não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério ».(81) Como recomendou a assembleia do Sínodo, dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a palavra de Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da missão da Igreja.(82) Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloquência dos factos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira.
V. Eucaristia e Matrimónio
Eucaristia, sacramento esponsal
27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do homem e da mulher unidos em matrimónio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do nosso tempo.(83) Várias vezes o Papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o carácter esponsal da Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimónio: « A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa ».(84) Aliás, « toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo, entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de núpcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia ».(85) Esta corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimónio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5, 31-32). O consentimento recíproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem também uma dimensão eucarística; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal é sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expressão das suas « núpcias » com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do Matrimónio.(86) A família — igreja doméstica ( 87) — é um âmbito primário da vida da Igreja, especialmente pelo papel decisivo que tem na educação cristã dos filhos.(88) Neste contexto, o Sínodo recomendou também o reconhecimento da missão singular que tem a mulher na família e na sociedade, missão esta que há-de ser protegida, salvaguardada e promovida.(89) A sua dimensão de esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser desprezada.
Eucaristia e unidade do Matrimónio
28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre Matrimónio, família e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só mulher, e vice-versa (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho: quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de firmeza,(90) mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflecte sobre a natureza e os afectos humanos.
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio
29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimónio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar.(91) Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimónio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.(92) O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.
Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico,(93) a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; (94) é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que « é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis ».(95) No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas « integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel ».(96) Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio.(97)
Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes e a verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do Matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois não poderão honrar.(98) Demasiado grande é o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimónio e da família fundada sobre o mesmo para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral específico; Matrimónio e família são instituições cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é realmente uma ferida que se inflige à convivência humana como tal.
Eucaristia e escatologia
Eucaristia, dom para o homem a caminho
30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no tempo( 99) rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que, sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8, 19s). O homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na direcção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que Se torna presente para nós de maneira especial na celebração eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda « estrangeiros e peregrinos » (1 Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.
O banquete escatológico
31. Reflectindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, Se colocou em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na humanidade inteira e fundamentalmente na própria criação. Com o dom de Si mesmo, inaugurou objectivamente o tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11, 52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da aliança para dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3; 31, 10; Lc 1, 55.70). Com o chamamento dos Doze — número que evoca as doze tribos de Israel — e o mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que n'Ele teve início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no Novo Testamento como « as núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que se hão-de celebrar na comunhão dos santos.(100)
Oração pelos defuntos
32. A celebração eucarística, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, é penhor da glória futura, quando mesmo os nossos corpos serão glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvação, reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne juntamente com a possibilidade de encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé. Nesta linha, queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiéis a importância da oração de sufrágio, particularmente a celebração de Missas, pelos defuntos para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus.(101) Sempre que descobrimos de novo a dimensão escatológica presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no nosso caminho e confortados na esperança da glória (Rm 5, 2; Tt 2, 13).
A Eucaristia e a Virgem Maria
33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos juntamente com o significado escatológico dos santos mistérios, irrompe o perfil da vida cristã, chamada a ser em cada instante culto espiritual, oferta de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos encontramos todos ainda a caminho rumo à plena consumação da nossa esperança, isto não impede de podermos já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos deu, se realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao céu em corpo e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta a nós, peregrinos no tempo, aquela meta escatológica que o sacramento da Eucaristia desde já nos faz saborear.
Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental com que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana. Desde a anunciação ao Pentecostes, Maria de Nazaré aparece como uma pessoa cuja liberdade está completamente disponível à vontade de Deus; a sua Imaculada Conceição revela-se propriamente na docilidade incondicional à palavra divina. A fé obediente é a forma que a sua vida assume em cada instante perante a acção de Deus: Virgem à escuta, Ela vive em plena sintonia com a vontade divina; conserva no seu coração as palavras que lhe chegam da parte de Deus e, dispondo-as à maneira de um mosaico, aprende a compreendê-las mais a fundo (Lc 2, 19.51); Maria é a grande Crente que, cheia de confiança, Se coloca nas mãos de Deus, abandonando-Se à sua vontade.(102) Um tal mistério vai crescendo de intensidade até chegar ao pleno envolvimento d'Ela na missão redentora de Jesus; como afirmou o Concílio Vaticano II, « assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz. Junto desta esteve, não sem desígnio de Deus (Jo 19, 25), padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associando-Se com coração de mãe ao seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d'Ela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-A por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher, eis aí o teu filho (Jo 19, 26-27) ».(103) Desde a anunciação até à cruz, Maria é Aquela que acolhe a Palavra que n'Ela Se fez carne e foi até emudecer no silêncio da morte. É Ela, enfim, que recebe nos seus braços o corpo imolado, já exânime, d'Aquele que verdadeiramente amou os Seus « até ao fim » (Jo 13, 1).
Por isso, sempre que na liturgia eucarística nos abeiramos do corpo e do sangue de Cristo, dirigimo-nos também a Ela que, por toda a Igreja, acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que « Maria inaugura a participação da Igreja no sacrifício do Redentor ».(104) Ela é a Imaculada que acolhe incondicionalmente o dom de Deus, e desta forma fica associada à obra da salvação. Maria de Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o modelo para cada um de nós saber como é chamado a acolher a doação que Jesus fez de Si mesmo na Eucaristia.
II PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
« Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão
que vem do céu; meu Pai é que vos dá
o verdadeiro pão que vem do céu » (Jo 6, 32)
Norma da oração e norma de fé
34. O Sínodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a relação intrínseca entre fé eucarística e celebração, pondo em evidência a ligação entre a norma da oração (lex orandi) e a norma de fé (lex credendi) e sublinhando o primado da acção litúrgica. É necessário viver a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de que « a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente em relação com a acção litúrgica da Igreja »:(105) neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si próprio no mistério pascal.
Beleza e liturgia
35. A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a Si e chama à comunhão. Em Jesus, como costumava dizer São Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das origens.(106) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não enquanto mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor.(107) Já na criação, Deus Se deixa entrever na beleza e harmonia do universo (Sab 13, 5;Rm 1, 19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos sinais grandiosos do esplendor da força de Deus, que Se manifesta com a sua glória através dos prodígios realizados no meio do povo eleito (Ex 14; 16, 10; 24, 12-18; Nm 14, 20-23). No Novo Testamento, realiza-se definitivamente esta epifania de beleza na revelação de Deus em Jesus Cristo: (108) Ele é a manifestação plena da glória divina. Na glorificação do Filho, resplandece e comunica-se a glória do Pai (Jo 1, 14; 8, 54; 12, 28; 17, 1). Mas, esta beleza não é uma simples harmonia de formas; « o mais belo dos filhos do homem » (Sal 45/44, 3) misteriosamente é também um indivíduo « sem distinção nem beleza que atraia o nosso olhar » (Is 53, 2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe transfigurar inclusive o mistério sombrio da morte na luz radiante da ressurreição. Aqui o esplendor da glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal.
A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza.
A celebração eucarística,
obra de Cristo inteiro
Cristo inteiro: cabeça e corpo
36. A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja na sua acção.(109) Nesta perspectiva, é muito sugestivo recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz, esta dinâmica de fé própria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistério eucarístico, o grande santo de Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a Si mesmo: « O pão que vedes sobre o altar, santificado com a palavra de Deus, é o corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós mesmos sois Aquele que recebestes ».(110) Assim, « tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo ».(111) Nisto podemos contemplar a acção misteriosa de Deus, que inclui a unidade profunda entre nós e o Senhor Jesus: « De facto, não se pode crer que Cristo esteja na cabeça sem estar também no corpo, pois Ele está todo inteiro na cabeça e no corpo (Christus totus in capite et in corpore) ».(112)
Eucaristia e Cristo ressuscitado
37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente acção de Deus (actio Dei) que nos envolve em Jesus por meio do Espírito, o seu fundamento não está à mercê do nosso arbítrio e não pode suportar a chantagem das modas passageiras. Vale aqui também, sem dúvida, a advertência de São Paulo: « Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que foi posto, isto é, Jesus Cristo » (1 Cor 3, 11). O Apóstolo das Gentes certifica-nos ainda, referindo-se à Eucaristia, que não nos comunica uma doutrina pessoal, mas aquilo que, por sua vez, tinha recebido (1 Cor 11, 23); de facto, a celebração da Eucaristia implica a Tradição viva. A Igreja celebra o sacrifício eucarístico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experiência do Ressuscitado e da efusão do Espírito Santo. Por este motivo, a comunidade cristã, desde os seus primórdios, reúne-se para a fracção do pão (fractio panis) no dia do Senhor. O dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, o domingo, é também o primeiro dia da semana, aquele em que a tradição do Antigo Testamento contemplava o início da criação. O dia da criação tornou-se agora o dia da « nova criação », o dia da nossa libertação, no qual fazemos memória de Cristo morto e ressuscitado.(113)
Arte da celebração
38. Durante os trabalhos sinodais, foi várias vezes recomendada a necessidade de superar toda e qualquer separação entre a arte da celebração (ars celebrandi, isto é, a arte de celebrar rectamente) e a participação plena, activa e frutuosa de todos os fiéis: com efeito, o primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação activa (actuosa participatio).(114) Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa (1 Pd 2, 4-5.9).(115)
O bispo, liturgista por excelência
39. Se é verdade que todo o povo de Deus participa na liturgia eucarística, uma função imprescindível, relativamente à correcta ars celebrandi, compete todavia àqueles que receberam o sacramento da Ordem. Bispos, sacerdotes e diáconos, cada qual segundo o próprio grau, devem considerar a celebração como o seu dever principal.(116) Antes de mais ninguém, o bispo diocesano: de facto, como « primeiro dispensador dos mistérios de Deus na Igreja particular que lhe está confiada, ele é o guia, o promotor e o guardião de toda a vida litúrgica ».(117) Tudo isto é decisivo para a vida da Igreja particular, não só porque a comunhão com o bispo é condição para que seja legítima uma celebração no respectivo território, mas também porque ele mesmo é o liturgista por excelência da sua Igreja.(118) Compete-lhe salvaguardar a concorde unidade das celebrações na sua diocese; por isso, deve ser « preocupação do bispo fazer com que os presbíteros, os diáconos e os fiéis compreendam cada vez melhor o sentido autêntico dos ritos e dos textos litúrgicos, levando-os deste modo a uma activa e frutuosa celebração da Eucaristia ».(119) De modo particular, exorto a fazer tudo o que for necessário a fim de que as celebrações litúrgicas realizadas pelo bispo na catedral se desenrolem no respeito cabal da arte da celebração, para que possam ser consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas no território.(120)
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais
40. Ao ressaltar a importância da arte da celebração, consequentemente põe-se em evidência o valor das normas litúrgicas.(121) Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a utilização das formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a harmonia do rito, das vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração eucarística é frutuosa quando os sacerdotes e os responsáveis da pastoral litúrgica se esforçam por dar a conhecer os livros litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as riquezas estupendas daInstrução Geral do Missal Romano e da Instrução das Leituras da Missa. Talvez se dê por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e devido apreço, mas frequentemente não é assim; na realidade, trata-se de textos onde estão contidas riquezas que guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de Deus ao longo dos dois milénios da sua história. Igualmente importante para uma correcta arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do carácter de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse dom inefável.
Arte ao serviço da celebração
41. A profunda ligação entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente todas as expressões artísticas colocadas ao serviço da celebração.(122) Uma componente importante da arte sacra é, sem dúvida, a arquitectura das igrejas,(123) nas quais há-de sobressair a coerência entre os elementos próprios do presbitério: altar, crucifixo, sacrário, ambão, cadeira. A este respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitectura sacra é oferecer à Igreja que celebra os mistérios de fé, especialmente a Eucaristia, o espaço mais idóneo para uma condigna realização da sua acção litúrgica; (124) de facto, a natureza do templo cristão define-se precisamente pela acção litúrgica, a qual implica a reunião dos fiéis (ecclesia), que são as pedras vivas do templo (1 Pd 2, 5).
O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos, pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas à acção litúrgica; por isso, é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto à luz das normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção.(125)
O canto litúrgico
42. Na arte da celebração, ocupa lugar de destaque o canto litúrgico.(126) Com razão afirma Santo Agostinho, num famoso sermão: « O homem novo conhece o cântico novo. O cântico é uma manifestação de alegria e, se considerarmos melhor, um sinal de amor ».(127) O povo de Deus, reunido para a celebração, canta os louvores de Deus. Na sua história bimilenária, a Igreja criou, e continua a criar, música e cânticos que constituem um património de fé e amor que não se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de géneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; (128) consequentemente, tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos.(129) Enfim, embora tendo em conta as distintas orientações e as diferentes e amplamente louváveis tradições, desejo — como foi pedido pelos padres sinodais — que se valorize adequadamente o canto gregoriano,(130) como canto próprio da liturgia romana.(131)
A estrutura da celebração eucarística
43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte da celebração relevados durante os trabalhos sinodais, desejo chamar a atenção mais especificamente para algumas partes da estrutura da celebração eucarística, que necessitam de um cuidado particular no nosso tempo, a fim de permanecermos fiéis à intenção profunda da renovação litúrgica que o Concílio Vaticano II quis em continuidade com toda a grande tradição eclesial.
Unidade intrínseca da acção litúrgica
44. Antes de mais, é necessário reflectir sobre a unidade intrínseca do rito da Santa Missa, evitando, tanto nas catequeses como na modalidade de celebração, que se dê ensejo a uma visão justaposta das duas partes do rito: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística — para além dos ritos iniciais e conclusivo — « estão entre si tão estreitamente ligadas que constituem um único acto de culto ».(132) De facto, existe uma ligação intrínseca entre a palavra de Deus e a parte eucarística: ao ouvirmos a palavra de Deus, nasce ou reforça-se a fé (Rm 10, 17), enquanto, na parte eucarística, o Verbo feito carne dá-Se a nós como alimento espiritual; (133) assim, « a partir das duas mesas, a da palavra de Deus e a do corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos fiéis o pão de vida ».(134) Por isso, deve ter-se constantemente presente que a palavra de Deus, lida e anunciada na liturgia pela Igreja, conduz à Eucaristia como a seu fim conatural.
A liturgia da palavra
45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da palavra seja sempre devidamente preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias, com a proclamação da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueçamos de que, « quando na igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio Deus que fala ao seu povo, é Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho ».(135) Se as circunstâncias o recomendarem, pode-se pensar numas breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a tomar renovada consciência do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne (Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele está presente na acção litúrgica. Neste horizonte sacramental da revelação cristã,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de Deus permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; também aqui se mostra em toda a sua verdade a conhecida asserção: « A ignorância da Escritura é ignorância de Cristo ».(137)
Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes no Leccionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da palavra e da leitura orante (lectio divina). Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração confirmadas pela tradição: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e ainda as celebrações das Vigílias. A oração dos salmos, as leituras bíblicas e as da grande tradição apresentadas no Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do acontecimento de Cristo e da economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a compreensão e a participação na celebração eucarística.(138)
A homilia
46. Pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, esta « constitui parte integrante da acção litúrgica »,(139) cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da palavra de Deus na vida dos fiéis. Por isso, os ministros ordenados devem « preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura ».(140) Evitem-se homilias genéricas ou abstractas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequética e exortativa da homilia. Considera-se que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está autorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro « pilares » do Catecismo da Igreja Católica e no recente Compêndio: a profissão da fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã.(143)
Apresentação das oferendas
47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a apresentação das oferendas. Não se trata simplesmente duma espécie de « intervalo » entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, o que faria, sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto de duas partes interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um significado muito grande: no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a criação é assumida por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao Pai.(144) Nesta perspectiva, levamos ao altar também todo o sofrimento e tribulação do mundo, na certeza de que tudo é precioso aos olhos de Deus. Este gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas complicações para ser vivido no seu significado autêntico: o mesmo permite valorizar a participação primeira que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à perfeição, e dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, através da celebração eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de Cristo.
A Oração Eucarística
48. A Oração Eucarística é « o ponto central e culminante de toda a celebração »; (145) merece ser convenientemente ressaltada a sua importância. As diversas Orações Eucarísticas contidas no Missal foram-nos transmitidas pela Tradição viva da Igreja e caracterizam-se por uma riqueza teológica e espiritual inesgotável; os fiéis devem poder ser capazes de apreciá-la. A isto mesmo nos ajuda a Instrução Geral do Missal Romano, quando lembra os elementos fundamentais de cada Oração Eucarística: acção de graças, aclamação, epiclese, narração da instituição, consagração, anamnese, oblação, intercessões e doxologia final.(146) Em particular, a espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas se se contempla a profunda unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito Santo e a narração da instituição,(147) quando « se realiza o sacrifício que o próprio Cristo instituiu na Última Ceia ».(148) De facto, « por meio de invocações especiais, a Igreja implora o poder do Espírito Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, se convertam no corpo e sangue de Cristo, e para que a vítima imaculada, que vai ser recebida na comunhão, opere a salvação daqueles que dela vão participar ».(149)
Saudação da paz
49. A Eucaristia é, por sua natureza, sacramento da paz. Na celebração litúrgica, esta dimensão do mistério eucarístico encontra a sua manifestação específica no rito da saudação da paz. Trata-se, sem dúvida, dum sinal de grande valor (Jo 14, 27). Neste nosso tempo pavorosamente cheio de conflitos, tal gesto adquire — mesmo do ponto de vista da sensibilidade comum — um relevo particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua missão própria a de implorar ao Senhor o dom da paz e da unidade para si mesma e para a família humana inteira. A paz é, sem dúvida, uma aspiração radical que se encontra no coração de cada um; a Igreja dá voz ao pedido de paz e reconciliação que brota do espírito de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o Àquele que « é a nossa paz » (Ef 2, 14) e pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem falido os esforços humanos. A partir de tudo isto, é possível compreender a intensidade com que frequentemente é sentido o rito da paz na celebração litúrgica. A este respeito, porém, durante o Sínodo dos Bispos foi sublinhada a conveniência de moderar este gesto, que pode assumir expressões excessivas, suscitando um pouco de confusão na assembleia precisamente antes da comunhão. É bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais próximo.(150)
Distribuição e recepção da Eucaristia
50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a distribuição e a recepção da sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos ministros ordenados e àqueles que, devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o ministério da distribuição da Eucaristia, que façam o possível para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto às prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados; ( 151) todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes, vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de acção de graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer recolhidos em silêncio.(152)
A propósito, desejo chamar a atenção para um problema pastoral com que frequentemente nos deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstâncias como, por exemplo, nas Missas celebradas por ocasião de matrimónios, funerais ou acontecimentos análogos, encontram-se presentes na celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos não se aproximam do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que estão presentes pessoas de outras confissões cristãs ou até de outras religiões. Circunstâncias semelhantes verificam-se também em igrejas que são meta de turistas, sobretudo nas cidades de grande valor artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da comunhão sacramental e sobre as condições que se requerem para a sua recepção. Em situações onde não se possa garantir a necessária clareza quanto ao significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de substituir a celebração eucarística por uma celebração da palavra de Deus.(153)
A despedida: « Ite, missa est »
51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres sinodais acerca da saudação de despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote despede o povo com as palavras « Ide em paz e o Senhor vos acompanhe », tradução aproximada da fórmula latina: Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo « missa » significava simplesmente « despedida »; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um sentido cada vez mais profundo, tendo o termo « despedir » evoluído para « expedir em missão ». Deste modo, a referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o povo de Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração da liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos, devidamente aprovados, para a oração sobre o povo e a bênção final que explicitem tal ligação.(154)
Participação activa
Autêntica participação
52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase particular sobre a participação activa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus na celebração eucarística.(155) A renovação operada nestes anos proporcionou, sem dúvida, notáveis progressos na direcção desejada pelos padres conciliares; mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer incompreensão precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar claro que não se pretende, com tal palavra, aludir a mera actividade exterior durante a celebração; na realidade, a participação activa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em termos mais substanciais, a partir duma maior consciência do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida quotidiana. Permanece plenamente válida ainda a recomendação da Constituição conciliarSacrosanctum Concilium feita aos fiéis quando os exorta a não assistirem à liturgia eucarística « como estranhos ou espectadores mudos », mas a participarem « na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente ».(156) E o Concílio, desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis « sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo Mediador, progridam na unidade com Deus e entre si ».(157)
Participação e ministério sacerdotal
53. A beleza e a harmonia da acção litúrgica encontram significativa expressão na ordem com que cada um é chamado a participar activamente nela; isto requer o conhecimento das diversas funções hierárquicas implicadas na própria celebração. Pode ser útil lembrar que a participação activa na mesma não coincide, de per si, com o desempenho dum ministério particular; sobretudo, não favorece a causa da participação activa dos fiéis uma confusão gerada pela incapacidade de distinguir, na comunhão eclesial, as diversas funções que cabem a cada um.(158) De modo particular, convém que haja clareza quanto às funções específicas do sacerdote: como atesta a tradição da Igreja, é ele quem insubstituivelmente preside à celebração eucarística inteira, desde a saudação inicial até à bênção final. Em virtude da Ordem sacra recebida, representa Jesus Cristo cabeça da Igreja e, na forma que lhe é própria, também a Igreja.(159) De facto, cada celebração da Eucaristia é conduzida pelo Bispo, « quer pessoalmente, quer pelos presbíteros seus colaboradores »; (160) e é coadjuvado pelo diácono, que tem na celebração algumas funções específicas: preparar o altar e assistir ao sacerdote, proclamar o Evangelho e, eventualmente, fazer a homilia, propor aos fiéis as intenções da Oração Universal, distribuir a Eucaristia aos fiéis.(161) Em relação com estes ministérios dependentes do sacramento da Ordem, aparecem depois outros ministérios para o serviço litúrgico, louvavelmente desempenhados por religiosos e leigos preparados.(162)
Celebração eucarística e inculturação
54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio Vaticano II, várias vezes foi sublinhada a importância da participação activa dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a favorecer, podem ter lugar algumas adaptações apropriadas aos respectivos contextos e às diversas culturas;( 163) o facto de ter havido alguns abusos não turba a clareza deste princípio, que deve ser mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo mistério de Cristo em situações culturais diferentes. De facto, o Senhor Jesus, precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito homem (Gal 4, 4) colocou-se em relação directa não só com as expectativas que se registavam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende alcançar-nos no nosso contexto vital. Por conseguinte é útil, para uma participação mais eficaz dos fiéis nos santos mistérios, a continuação do processo de inculturação inclusivamente quanto à celebração eucarística, tendo em conta as possibilidades de adaptação oferecidas pelaInstrução Geral do Missal Romano,(164) interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, designada Varietates legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,(165) e pelas directrizes expressas pelo Papa João Paulo II nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in Africa, Ecclesia in America, Ecclesia in Asia, Ecclesia in Oceania, Ecclesia in Europa.(166) Com esta finalidade, recomendo às Conferências Episcopais que prossigam com esta obra, favorecendo um justo equilíbrio entre os critérios e directrizes já emanados e as novas adaptações,(167) sempre de acordo com a Sé Apostólica.
Condições pessoais para uma participação activa
55. Ao considerarem o tema da participação activa (actuosa participatio) dos fiéis no rito sagrado, os padres sinodais ressaltaram também as condições pessoais que se requerem em cada um para uma frutuosa participação.(168) Uma delas é, sem dúvida, o espírito de constante conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma participação activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por exemplo, o recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início da liturgia, o jejum e — quando for preciso — a confissão sacramental; um coração reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação. De modo particular é preciso alertar os fiéis que não se pode verificar uma participação activa nos santos mistérios, se ao mesmo tempo não se procura tomar parte activa na vida eclesial em toda a sua amplitude, incluindo o compromisso missionário de levar o amor de Cristo para o meio da sociedade.
Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso também aproximar-se pessoalmente do altar para receber a comunhão; (169) contudo é preciso estar atento para que esta afirmação, justa em si mesma, não induza os fiéis a um certo automatismo levando-os a pensar que, pelo simples facto de se encontrar na igreja durante a liturgia, se tenha o direito ou mesmo — quem sabe — se sinta no dever de aproximar-se da mesa eucarística. Mesmo quando não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece necessária, válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres de vida espiritual.(171)
Participação dos cristãos não católicos
56. Ao tratarmos o tema da participação, temos inevitavelmente de falar dos cristãos que pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. A este respeito, temos de dizer, por um lado, que o vínculo intrínseco existente entre a Eucaristia e a unidade da Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que poderemos celebrar, juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e exprimir assim visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos (Jo 17, 21); mas, por outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do corpo e do sangue de Cristo impede-nos de fazer dele um simples « meio » usado indiscriminadamente para alcançar a referida unidade.(172) De facto, a Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. Ainda mais desprovida de sentido seria uma concelebração verdadeira e própria com ministros de Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa, porém, de ser verdade que, em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos cristãos não católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas condições.(173) Estas aparecem claramente indicadas noCatecismo da Igreja Católica (174) e no seu Compêndio.(175) É dever de cada um ater-se a elas fielmente.
Participação através dos meios de comunicação
57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação, nos últimos decénios a palavra « participação » adquiriu um significado mais amplo do que no passado; com satisfação, todos reconhecemos que estes instrumentos oferecem novas possibilidades inclusivamente quanto à celebração eucarística.(176) Isto requer dos agentes pastorais do sector uma preparação específica e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa Missa transmitida na televisão ganha inevitavelmente um certo carácter de exemplaridade; daí o dever de prestar particular atenção a que a celebração, além de se realizar em lugares dignos e bem preparados, respeite as normas litúrgicas.
Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa pelos meios de comunicação, quem assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o preceito dominical; de facto, a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a reproduz em si mesma.(177) Se é muito louvável que idosos e doentes participem na Santa Missa festiva através das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de quem quisesse, por meio de tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar parte na celebração eucarística na assembleia da Igreja viva.
Participação activa dos doentes
58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde ou idade não podem ir aos lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a comunidade eclesial para a necessidade pastoral de garantir a assistência espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas quer se encontrem no hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua condição; é preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com frequência, a comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo crucificado e ressuscitado, poderão sentir a própria existência inserida plenamente na vida e missão da Igreja, por meio da oferta do seu sofrimento em união com o sacrifício de Nosso Senhor. Uma particular atenção há-de ser reservada aos deficientes: sempre que a sua condição o permita, a comunidade cristã deve facilitar a sua participação na celebração no lugar de culto; a propósito, procure-se remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos arquitectónicos que impeçam o seu acesso aos deficientes. Enfim, seja garantida também a comunhão eucarística, na medida do possível, aos deficientes mentais, baptizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da comunidade que os acompanha.(178)
A solicitude pelos presos
59. A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25, 36), individuou na visita aos presos uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio Senhor no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial, participar na Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e doloroso pode seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a plena recuperação social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembleia sinodal, peço às dioceses para providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente investimento de forças na actividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos.(179)
Os migrantes e a participação na Eucaristia
60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos vários, são obrigadas a deixar a sua terra, o Sínodo manifestou particular gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado pastoral dos migrantes. Neste contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes membros das Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se a dificuldade de não poderem participar na liturgia eucarística segundo o próprio rito a que pertencem; por isso, onde for possível, seja-lhes concedido usufruir da assistência de sacerdotes do seu rito. Em todo o caso, peço aos bispos que acolham estes irmãos na caridade de Cristo. O encontro entre fiéis de rito diverso pode tornar-se também ocasião de mútuo enriquecimento: penso de modo particular no benefício que pode resultar, sobretudo para o clero, do conhecimento das diversas tradições.(180)
As grandes concelebrações
61. A assembleia sinodal deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes celebrações que têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para além dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes.(181) É fácil, por um lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o bispo rodeado do seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais ocasiões podem verificar-se problemas quanto à expressão sensível da unidade do presbitério, especialmente na Oração Eucarística, e quanto à distribuição da sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas grandes concelebrações criem dispersão; providencie-se a isto mesmo por meio de adequados instrumentos de coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que permita aos presbíteros e aos fiéis uma plena e real participação. Entretanto, é preciso ter presente que se trata de concelebrações com índole excepcional e limitadas a situações extraordinárias.
A língua latina
62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor destas grandes liturgias; penso neste momento, em particular, às celebrações que têm lugar durante encontros internacionais, cada vez mais frequentes hoje, e que devem justamente ser valorizadas. A fim de exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo dos Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: (182) exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas (183) da tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto gregoriano. A nível geral, peço que os futuros sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem como para usar textos latinos e entoar o canto gregoriano; nem se transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para saberem, em latim, as orações mais comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas partes da liturgia.(184)
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos
63. Bem distinta é a situação criada em algumas circunstâncias pastorais, onde, precisamente para uma participação mais consciente, activa e frutuosa, se favorecem as celebrações em pequenos grupos. Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a estas opções, é necessário especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o conjunto da proposta pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu carácter pedagógico, se fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja particular. A este respeito, o Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que se devem ater: os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade, e não para a dividir; a prova disto mesmo há-de ver-se na prática concreta; estes grupos devem favorecer a participação frutuosa da assembleia inteira e preservar, na medida do possível, a unidade da vida litúrgica de cada uma das famílias.(185)
Celebração interiormente participada
Catequese mistagógica
64. A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado, através do oferecimento a Deus da própria vida em união com o sacrifício de Cristo pela salvação do mundo inteiro. Por este motivo, o Sínodo dos Bispos recomendou que se fomentasse, nos fiéis, profunda concordância das disposições interiores com os gestos e palavras; se ela faltasse, as nossas celebrações, por muito animadas que fossem, arriscar-se-iam a cair no ritualismo. Assim, é preciso promover uma educação da fé eucarística que predisponha os fiéis a viverem pessoalmente o que se celebra. Vista a importância essencial desta participação pessoal e consciente, quais poderiam ser os instrumentos de formação mais adequados? Para isso, os padres sinodais indicaram unanimemente a estrada duma catequese de carácter mistagógico, que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados.(186) Em concreto e antes de mais, há que afirmar que, devido à relação entre a arte da celebração e a participação activa, « a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada »; (187) com efeito, por sua natureza a liturgia possui uma eficácia pedagógica própria para introduzir os fiéis no conhecimento do mistério celebrado. Por isso mesmo, na tradição mais antiga da Igreja, o caminho formativo do cristão — embora sem descurar a inteligência sistemática dos conteúdos da fé — assumia sempre um carácter de experiência, em que era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo anunciado por autênticas testemunhas. Neste sentido, quem introduz nos mistérios é primariamente a testemunha; depois, este encontro aprofunda-se, sem dúvida, na catequese e encontra a sua fonte e ápice na celebração da Eucaristia. Desta estrutura fundamental da experiência cristã parte a exigência de um itinerário mistagógico, no qual se hão-de ter sempre presente três elementos:
a) Trata-se, primeiramente, da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em conformidade com a tradição viva da Igreja; de facto, a celebração da Eucaristia, na sua riqueza infinita, possui contínuas referências à história da salvação. Em Cristo crucificado e ressuscitado, podemos celebrar verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade (Ef 1, 10); desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus, e particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo Testamento.
b) Além disso, a catequese mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época acentuadamente tecnológica como a actual, que corre o risco de perder a capacidade de perceber os sinais e os símbolos. Mais do que informar, a catequese mistagógica deverá despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra, constituem o rito.
c) Enfim, a catequese mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos e afectos, actividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em evidência a ligação dos mistérios celebrados no rito com a responsabilidade missionária dos fiéis; neste sentido, o fruto maduro da mistagogia é a consciência de que a própria vida vai sendo progressivamente transformada pelos sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de toda a educação cristã é formar o fiel enquanto « homem novo » para uma fé adulta, que o torne capaz de testemunhar no próprio ambiente a esperança cristã que o anima.
Condição necessária para se realizar, no âmbito das nossas comunidades eclesiais, esta tarefa educativa é dispor de formadores adequadamente preparados; mas todo o povo de Deus deve, sem dúvida, sentir-se comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é chamada a ser lugar de introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a propósito, durante o Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior envolvimento das comunidades de vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo próprio carisma, possam dar novo impulso à formação cristã.(188) Temos a certeza de que, também no nosso tempo, o Espírito Santo não poupa a efusão dos seus dons para sustentar a missão apostólica da Igreja, a quem compete difundir a fé e educá-la até à sua maturidade.(189)
A reverência à Eucaristia
65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem sobre os fiéis é seguramente o crescimento neles do sentido do mistério de Deus presente entre nós; podemos verificá-lo através de específicas manifestações de reverência à Eucaristia, nas quais o percurso mistagógico deve introduzir os fiéis.(190) Penso, em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.
Adoração e piedade eucarística
A relação intrínseca entre celebração e adoração
66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando fomos à Basílica de São Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração eucarística. Com aquele momento de oração, quis a assembleia dos bispos não se limitar às palavras na sua chamada de atenção para a importância da relação intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste significativo aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II. Quando a reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não se perceber com suficiente clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento; uma objecção então em voga, por exemplo, partia da ideia que o pão eucarístico nos fora dado não para ser contemplado, mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da experiência de oração da Igreja, aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já Santo Agostinho dissera: « Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; (...) peccemus non adorando – ninguém come esta carne, sem antes a adorar; (...) pecaríamos se não a adorássemos ».(191) De facto, na Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-Se connosco; a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja: (192) receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração d'Aquele que comungamos. Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos um só com Ele e, de algum modo, saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O acto de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria celebração litúrgica. Com efeito, « somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois também a missão social, que está encerrada na Eucaristia e deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam uns dos outros ».(193)
A prática da adoração eucarística
67. Juntamente com a assembleia sinodal, recomendo, pois, vivamente aos pastores da Igreja e ao povo de Deus a prática da adoração eucarística tanto pessoal como comunitária.(194) Para isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a importância deste acto de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo nos centros mais populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se possam reservar propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na formação catequética, particularmente nos itinerários de preparação para a Primeira Comunhão, se iniciem as crianças no sentido e na beleza de demorar-se na companhia de Jesus, cultivando o enlevo pela sua presença na Eucaristia.
Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de vida consagrada, cujos membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à adoração eucarística; deste modo, oferecem a todos o exemplo de pessoas que se deixam plasmar pela presença real do Senhor. Desejo igualmente encorajar as associações de fiéis, nomeadamente as confrarias, que assumem esta prática como seu compromisso especial, tornando-se assim fermento de contemplação para toda a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos indivíduos e da comunidade.
Formas de devoção eucarística
68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com Jesus, presente na Eucaristia, recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão eclesial, alimentando nele a consciência da sua pertença ao corpo de Cristo. Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar pessoalmente tempo para se demorar em oração diante do sacramento do altar, sinto o dever de convidar as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos de adoração comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já existentes de devoção eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões eucarísticas, sobretudo a tradicional procissão na solenidade do Corpo de Deus, na devoção das Quarenta Horas, nos congressos eucarísticos locais, nacionais e internacionais, e noutras iniciativas análogas. Devidamente actualizadas e adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção merecem ser cultivadas ainda hoje.(195)
O lugar do sacrário na igreja
69. Ainda relacionado com a importância da reserva eucarística e da adoração e reverência diante do sacramento do sacrifício de Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a devida colocação do sacrário dentro das nossas igrejas.(196) Com efeito, uma correcta localização do mesmo ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento; por isso, é necessário que o lugar onde são conservadas as espécies eucarísticas seja fácil de individuar por qualquer pessoa que entre na igreja, graças nomeadamente à lâmpada do Santíssimo perenemente acesa. Tendo em vista tal objectivo, é preciso considerar a disposição arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser cuidado sempre também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano.(197) Em todo o caso, o juízo último sobre esta matéria compete ao bispo diocesano.
III PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
« Assim como o Pai, que vive,
Me enviou e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come
viverá por Mim » (Jo 6, 57)
Forma eucarística da vida cristã
O culto espiritual
70. O Senhor Jesus, que para nós Se fez alimento de verdade e amor, falando do dom da sua vida assegura-nos: « Quem comer deste pão viverá eternamente » (Jo 6, 51). Mas, esta « vida eterna » começa em nós, já agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na nossa vida: « Aquele que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Estas palavras de Jesus permitem-nos compreender que o mistério « acreditado » e « celebrado » possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã. De facto, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o carácter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-Lo dizer: « Sou o pão dos fortes; cresce e comer-Me-ás. Não Me transformarás em ti como ao alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em Mim ».(198) Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele. Cristo alimenta-nos, unindo-nos a Si; « atrai-nos para dentro de Si ».(199)
A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como fonte e ápice da existência eclesial, enquanto exprime a origem e simultaneamente a realização do culto novo e definitivo, o culto espiritual (logiké latreía).(200) As palavras que encontramos sobre isto, naCarta de São Paulo aos Romanos, são a formulação mais sintética do modo como a Eucaristia transforma toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: « Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que Lhe deveis prestar » (12, 1). Nesta exortação, aparece a imagem do novo culto como oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo sobre a oferta dos nossos corpos sublinha o concretismo humano dum culto de forma alguma desencarnado. E, a propósito, o santo de Hipona lembra-nos que « este é o sacrifício dos cristãos, ou seja, serem muitos e um só corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério através do sacramento do altar, que os fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que, naquilo que se oferece, ela mesma é oferecida ».(201) De facto, a doutrina católica afirma que a Eucaristia, enquanto sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja e, consequentemente, dos fiéis.(202) Esta insistência sobre o sacrifício — sacrum facere, « tornar sagrado » — exprime aqui toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo (Fil 3, 12).
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico
71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da existência, transfigurando-a: « Quando comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus » (1 Cor 10, 31). Em cada acto da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a Deus; daqui toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que abraça a realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia torna possível dia após dia a progressiva transfiguração do homem, por graça chamado a ser conforme à imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29s). Nada há de autenticamente humano — pensamentos e afectos, palavras e obras — que não encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada particular fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1 Cor 10, 31); e a vida do homem é a visão de Deus.(203)
Viver segundo o domingo
72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida do homem, revelou-se à consciência cristã desde o princípio; prontamente os fiéis compreenderam a influência profunda que a celebração eucarística exercia sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de Antioquia exprimia esta verdade designando os cristãos como « aqueles que chegaram à nova esperança », e apresentava-os como aqueles que vivem « segundo o domingo » (iuxta dominicam viventes).(204) Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em evidência a ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O costume característico que têm os cristãos de reunir-se no primeiro dia depois do sábado para celebrar a ressurreição de Cristo — conforme a narração do mártir São Justino(205) — é também o dado que define a forma da vida renovada pelo encontro com Cristo. Mas, a expressão de Santo Inácio — « viver segundo o domingo » — sublinha também o valor paradigmático que este dia santo tem para os restantes dias da semana. De facto, o domingo não se distingue com base na simples suspensão das actividades habituais, como se fosse uma espécie de parêntesis dentro do ritmo normal dos dias; os cristãos sempre sentiram este dia como o primeiro da semana, porque nele se faz memória da novidade radical trazida por Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a forma eucarística própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver constantemente: « viver segundo o domingo » significa viver consciente da libertação trazida por Cristo e realizar a própria existência como oferta de si mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste plenamente a todos os homens através duma conduta intimamente renovada.
Viver o preceito dominical
73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia deposita no cristão, os padres sinodais reafirmaram a importância que tem, para todos os fiéis, o preceito dominical como fonte de liberdade autêntica, a fim de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que celebraram no « dia do Senhor ». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de sentir desejo de participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória pascal. A participação na assembleia litúrgica dominical, ao lado de todos os irmãos e irmãs com os quais se forma um só corpo em Cristo Jesus, é exigida pela consciência cristã e simultaneamente educa a consciência cristã. Perder o sentido do domingo como dia do Senhor que deve ser santificado é sintoma duma perda do sentido autêntico da liberdade cristã, a liberdade dos filhos de Deus.(206) Continuam a ser preciosas as observações feitas a este respeito pelo meu venerado predecessor João Paulo II, na Carta Apostólica Dies Domini,(207) quando trata das diversas dimensões que o domingo tem para os cristãos: é dies Domini, em referimento à obra da criação; dies Christi, enquanto dia da nova criação e do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede; dies Ecclesiæ, como dia em que a comunidade cristã se reúne para a celebração; dies hominis, porque dia de alegria, repouso e caridade fraterna.
Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo o fiel, no próprio ambiente onde vive, se pode fazer arauto e guardião do sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota o sentido cristão da existência e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o trabalho, a vida e a morte. Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais organizem, a partir da celebração eucarística dominical, manifestações próprias da comunidade cristã: encontros de amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e adultos na fé, peregrinações, obras de caridade e momentos variados de oração. Por causa destes valores tão importantes — embora justamente a tarde de sábado a partir das primeiras Vésperas já pertença ao domingo, sendo permitido cumprir nela o preceito dominical — é necessário recordar que é o domingo em si mesmo que merece ser santificado, para que não acabe por ficar um dia « vazio de Deus ».(208)
O sentido do repouso e do trabalho
74. É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser penalizado por isso. De facto, os cristãos — não sem relação com o significado do sábado na tradição hebraica — viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. É fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão. Como já tive ocasião de afirmar, « o trabalho reveste uma importância primária para a realização do homem e o progresso da sociedade; por isso torna-se necessário que aquele seja sempre organizado e realizado no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida ».(209) É no dia consagrado a Deus que o homem compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.(210)
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote
75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical para a vida do cristão, coloca-se espontaneamente o problema das comunidades cristãs onde falta o sacerdote e, consequentemente, não é possível celebrar a Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito, convém reconhecer que nos encontramos perante situações muito diversificadas entre si. Antes de mais, o Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde está garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de sacrifício.(211) Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível, devido à grande distância, a participação na Eucaristia dominical, é importante que as comunidades cristãs se reúnam igualmente para louvar o Senhor e fazer memória do dia a Ele dedicado. Mas, isso deverá verificar-se a partir duma conveniente instrução sobre a diferença entre a Santa Missa e as assembleias dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da Igreja há-de exprimir-se, neste caso, vigiando que a liturgia da palavra — organizada sob a guia dum diácono ou dum responsável da comunidade a quem foi regularmente confiado este ministério pela autoridade competente — se realize segundo um ritual específico elaborado pelas Conferências Episcopais e para tal fim aprovado por elas.(212) Lembro que compete aos Ordinários conceder a faculdade de distribuir a comunhão nessas liturgias, ponderando atentamente a conveniência da escolha a fazer. Além disso, tudo deve ser feito de forma que tais assembleias não criem confusão quanto ao papel central do sacerdote e à dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da função dos leigos, a quem justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das comunidades cristãs, jamais deve ofuscar o ministério insubstituível dos sacerdotes na vida da Igreja.(213) Por isso, vigie-se atentamente sobre as assembleias à espera de sacerdote para que não dêem lugar a visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a tradição da Igreja; devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu Coração. A propósito, vale a pena recordar aquilo que escreveu o Papa João Paulo II na Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979, recordando o caso comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas de sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário, colocavam sobre o altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações da liturgia eucarística até ao « momento que corresponderia à transubstanciação » e aí se detinham em silêncio, dando testemunho de quão « ardentemente desejavam ouvir aquelas palavras que só os lábios dum sacerdote podiam eficazmente pronunciar ».(214) Precisamente nesta perspectiva, considerando o bem incomparável que deriva da celebração do sacrifício eucarístico, peço a todos os sacerdotes uma efectiva e concreta disponibilidade para visitarem, com a maior assiduidade possível, as comunidades que estão confiadas ao seu cuidado pastoral, a fim de não ficarem demasiado tempo sem o sacramento da caridade.
Uma forma eucarística da existência cristã,
a pertença eclesial
76. A importância do domingo como dia da Igreja (dies Ecclesiæ) traz-nos à mente a relação intrínseca entre a vitória de Jesus sobre o mal e a morte e a nossa pertença ao seu corpo eclesial; no dia do Senhor, com efeito, todo o cristão reencontra também a dimensão comunitária da sua existência redimida. Participar na acção litúrgica, comungar o corpo e o sangue de Cristo significa, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais íntima e profunda a própria pertença Àquele que morreu por nós (1 Cor 6, 19s; 7, 23). Verdadeiramente quem se nutre de Cristo, vive por Ele. Compreende-se o sentido profundo da comunhão dos santos (communio sanctorum), relacionando-a com o mistério eucarístico. A comunhão tem sempre e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos e irmãs. Estas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom eucarístico. « Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a comunhão entre nós não for vivida, também a comunhão com o Deus-Trindade não é viva nem verdadeira ».(215) Chamados, pois, a ser membros de Cristo e consequentemente membros uns dos outros (1 Cor 12, 27), constituímos uma realidade ontologicamente fundada no Baptismo e alimentada pela Eucaristia, realidade essa que exige ter expressão sensível na vida das nossas comunidades.
A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel pode fazer experiência concreta da sua pertença ao corpo de Cristo. As associações, os movimentos eclesiais e novas comunidades — com a vivacidade dos carismas que lhes foram concedidos pelo Espírito Santo para o nosso tempo — bem como os institutos de vida consagrada têm a missão de oferecer a sua contribuição específica para favorecer nos fiéis a percepção desta sua pertença ao Senhor (Rm 14, 8). O fenómeno da secularização, que apresenta — não por acaso — traços fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas que se isolam por escasso sentido de pertença. Desde os seus inícios, sempre o cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações continuamente vivificadas pela escuta da palavra e pela celebração eucarística e animadas pelo Espírito Santo.
Espiritualidade e cultura eucarística
77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que « os fiéis cristãos precisam duma compreensão mais profunda das relações entre a Eucaristia e a vida quotidiana. A espiritualidade eucarística não é apenas participação na Missa e devoção ao Santíssimo Sacramento; mas abraça a vida inteira ».(216) Um tal realce assume actualmente particular significado para todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da existência, como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens; a falência desta maneira de viver « como se Deus não existisse » está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstracta, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida « segundo o Espírito » (Rm 8, 4s; cf. Gal 5, 16.25). É significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma de viver e pensar: « Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito » (12, 2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a ligação entre o verdadeiro culto espiritual e a necessidade duma nova maneira de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois « assim já não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina » (Ef 4, 14).
Eucaristia e evangelização das culturas
78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério eucarístico nos põe em diálogo com as várias culturas, mas de certa forma também as desafia.(217) É preciso reconhecer o carácter intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de Jesus Cristo e a efusão do Espírito Santo são acontecimentos que podem encontrar-se de forma duradoura com qualquer realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente. Em consequência disto mesmo, temos a obrigação de promover convictamente a evangelização das culturas, na certeza de que o próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais; num processo importante como este, podem revelar-se de grande significado as palavras de São Paulo quando, na sua I Carta aos Tessalonicenses, convida a « avaliar tudo e conservar o que for bom » (5, 21).
Eucaristia e fiéis leigos
79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos formam uma « raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores d'Aquele que os chamou das trevas à sua luz admirável » (1 Pd 2, 9). A Eucaristia, enquanto mistério a ser vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade cristã. Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já nos foi dado no Baptismo, pelo qual todos somos chamados à santidade,(218) então isso deve transparecer e manifestar-se precisamente nas situações ou estados de vida em que cada cristão se encontra; tornamo-nos dia após dia culto agradável a Deus, vivendo a própria vida como vocação. O próprio sacramento da Eucaristia, a partir da convocação litúrgica, compromete-nos na realidade quotidiana a fim de que tudo seja feito para glória de Deus.
E, dado que o mundo é « o campo » (Mt 13, 38) onde Deus coloca os seus filhos como boa semente, os cristãos leigos, em virtude do Baptismo e da Confirmação e corroborados pela Eucaristia, são chamados a viver a novidade radical trazida por Cristo precisamente no meio das condições normais da vida; (219) devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade inteira.(220) Dirijo um particular encorajamento às famílias a haurirem inspiração e força deste sacramento: o amor entre o homem e a mulher, o acolhimento da vida, a missão educadora aparecem como âmbitos privilegiados onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de transformar e encher de significado a existência.(221) Os pastores nunca deixem de apoiar, educar e encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no meio deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo 3, 16).
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal
80. A forma eucarística da existência cristã manifesta-se, sem dúvida, de modo particular no estado de vida sacerdotal. A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a semente desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o bispo pronuncia na liturgia da ordenação: « Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor ».(222) Para conferir à sua existência uma forma eucarística cada vez mais perfeita, o sacerdote deve reservar, já no período de formação e depois nos anos sucessivos, amplo espaço para a vida espiritual.(223) É chamado a ser continuamente um autêntico perscrutador de Deus, embora ao mesmo tempo permaneça solidário com as preocupações dos homens. Uma vida espiritual intensa permitir-lhe-á entrar mais profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a deixar-se possuir pelo amor de Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias mesmo difíceis e obscuras. Para isso, juntamente com os padres do Sínodo, recomendo aos sacerdotes « a celebração diária da Santa Missa, mesmo quando não houver participação de fiéis ».(224) Tal recomendação é ditada, ante de mais, pelo valor objectivamente infinito de cada celebração eucarística; e é motivada ainda pela sua singular eficácia espiritual, porque, se vivida com atenção e fé, a Santa Missa é formadora no sentido mais profundo do termo, enquanto promove a configuração a Cristo e reforça o sacerdote na sua vocação.
81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas vocações eclesiais, refulge de modo particular « o testemunho profético de mulheres e homens consagrados que encontram, na celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto ».(225) Embora realizem muitos serviços no campo da formação humana e do cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os consagrados e consagradas sabem que a finalidade principal da sua vida é « a contemplação das coisas divinas e a união assídua com Deus »;( 226 a contribuição essencial que a Igreja espera da vida consagrada destina-se muito mais ao ser do que ao fazer. Neste contexto, queria evocar a importância do testemunho virginal precisamente em relação ao mistério da Eucaristia; com efeito, além da ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico apresenta uma relação intrínseca com a virgindade consagrada, enquanto esta é expressão da dedicação exclusiva da Igreja a Cristo, que ela acolhe como seu Esposo com radical e fecunda fidelidade.227) Na Eucaristia, a virgindade consagrada encontra inspiração e nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso, aufere da Eucaristia conforto e impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho específico que a vida consagrada se torna objectivamente apelo e antecipação daquelas « núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que constituem a meta de toda a história da salvação; neste sentido, aquela constitui uma evocação eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para poder orientar as suas opções e resoluções de vida.
Eucaristia e transformação moral
82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que surgiu no Sínodo: a ligação entre forma eucarística da vida e transformação moral. O Papa João Paulo II afirmara que a vida moral « possui o valor de um ‘‘culto espiritual'' (Rm 12, 1; cf. Fil 3, 3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são os sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida ».(228) Em suma, « no próprio ‘‘culto'', na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária ».(229)
Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade. Aquilo de que estamos a falar aparece claramente no relato evangélico de Zaqueu (Lc 19, 1-10): depois de ter hospedado Jesus na sua casa, o publicano sente-se completamente transformado; decide dar metade dos seus haveres aos pobres e restituir quatro vezes mais a quem roubou. A tensão moral, que nasce do acto de hospedar Jesus na nossa vida, brota da gratidão por se ter experimentado a imerecida proximidade do Senhor.
Coerência eucarística
83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais designaram por coerência eucarística, à qual está objectivamente chamada a nossa existência. Com efeito, o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para todos os baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas.(230) Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana.(231) Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29). Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.(232)
Eucaristia, mistério anunciado
Eucaristia e missão
84. Na homilia durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu ministério na Cátedra de Pedro, disse: « Não há nada de mais belo do que ser alcançado, surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele ».(233) Esta afirmação cresce de intensidade, quando pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n'Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: « Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária ».(234) Havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: « Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco » (1 Jo 1, 2-3). Verdadeiramente não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3, 16-17; Rm 8, 32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã.
Eucaristia e testemunho
85. A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor. Tornamonos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro que aparece e Se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-Se por assim dizer ao risco da liberdade do homem. O próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1, 5; 3, 14); veio para dar testemunho da verdade (Jo 18, 37). Nesta ordem de ideias, apraz-me retomar um conceito caro aos primeiros cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje: o testemunho até ao dom de si mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história da Igreja, o apogeu do novo culto espiritual: « Oferecei os vossos corpos » (Rm 12, 1). Pense-se, por exemplo, na narração do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: o seu caso, dramático, é todo ele descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia.(235) Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente o seu martírio: considera-se « trigo de Deus » e, pelo martírio, deseja transformar-se em « pão puro de Cristo ».(236) O cristão, quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a páscoa de Jesus Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam, ainda hoje, à Igreja os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E, mesmo que não nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a Deus postula intimamente esta disponibilidade (237) e encontra a sua realização no feliz e convicto testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente nos diversos sectores onde o Senhor nos chama a anunciá-Lo.
Jesus Cristo, único Salvador
86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia no coração do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente uma ideia ou uma ética n'Ele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia enquanto sacramento da nossa salvação chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de Jesus, único Salvador.(238) Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica, a obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização autêntico sempre implica.
Liberdade de culto
87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a assembleia sinodal, a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.(239) Devemos verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da própria vida. Não são poucas as regiões do mundo onde o simples ir à igreja constitui um testemunho heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão íntima relativa ao sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os membros das outras religiões poderem livremente viver as suas convicções, pessoalmente e em comunidade.
Eucaristia,
mistério oferecido ao mundo
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo
88. « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20, 34; Mc 6, 34; Lc 19, 41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo ».(240) Desta forma, nas pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os « até ao fim » (Jo 13, 1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n'Ele a fazer-se « pão repartido » para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.
As implicações sociais do mistério eucarístico
89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: « a ‘‘mística'' do sacramento tem um carácter social, porque (...) a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus ».(241) A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo (Mt 5, 23-24).(242) Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira paz; (243) desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja « deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar ».(244)
Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual »;( 245) problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
O alimento da verdade e a indigência do homem
90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu (Tg 5, 4). Por exemplo, é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ».(246) O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens. De facto, « com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança ».(247)
O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de ajudar os pobres (Rm 15, 26). O peditório que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
A doutrina social da Igreja
91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: « O pão nosso de cada dia nos dai hoje », obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da Igreja.(248) Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.
Santificação do mundo e defesa da criação
92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.(249) A própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho do homem ». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1, 4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; (250) de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Baptismo (Col 2, 12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de Deus, « bela como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21, 2).
Utilidade dum Compêndio Eucarístico
93. No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais que possa demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração do sacramento do altar.(251) Espero que este instrumento possa contribuir para que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice da vida e da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto espiritual.
CONCLUSÃO
94. Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade, sendo cada um de nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos tornaram autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de Antioquia a Santo Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis a São Tomás de Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São Pedro Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld, de São João Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à Beata Teresa de Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Merz, para mencionar apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no sacramento da Eucaristia.
Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério santíssimo seja verdadeiramente acreditado, devotamente celebrado e intensamente vivido. A doação que Jesus faz de Si mesmo no sacramento memorial da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na participação da vida trinitária, que nos é oferecida n'Ele de forma definitiva e eficaz. A celebração e a adoração da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a ele aderir pessoalmente até à união com o bem-amado Senhor. A oferta da nossa vida, a comunhão com a comunidade inteira dos crentes e a solidariedade com todo o homem são aspectos imprescindíveis da logiké latreía, ou seja, do culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm 12, 1), no qual toda a nossa realidade humana concreta é transformada para glória de Deus. Convido, pois, todos os pastores a prestarem a máxima atenção à promoção duma espiritualidade cristã autenticamente eucarística. Os presbíteros, os diáconos e todos aqueles que exercem um ministério eucarístico possam sempre tirar destes mesmos serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força e estímulo para o seu caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto todos os leigos, e as famílias em particular, a encontrarem continuamente no sacramento do amor de Cristo a energia de que precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a própria existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.
95. No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades imperiais, alguns cristãos do norte de África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes era possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: « Sine dominico non possumus – sem o domingo, não podemos viver ».(252) Estes mártires de Abitinas, juntamente com muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não podemos viver sem participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é, traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito, este é o dia da nossa libertação definitiva. Então porquê maravilhar-se quando desejamos que cada dia seja vivido segundo a novidade introduzida por Cristo com o mistério da Eucaristia?
96. Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e eterna aliança, nos acompanhe neste caminho ao encontro do Senhor que vem! N'Ela encontramos realizada, na forma mais perfeita, a essência da Igreja. Esta vê em Maria, « Mulher eucarística » — como A designou o servo de Deus João Paulo II (253) —, o seu ícone melhor conseguido e contempla-A como modelo insubstituível de vida eucarística. Por isso, preparando-se para acolher sobre o altar «verum corpus natum de Maria Virgine – o verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria», o sacerdote, em nome da assembleia litúrgica, proclama com as palavras do cânone: « Veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe do nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo ».(254) O seu nome santo é invocado e venerado também nos cânones das tradições orientais cristãs. Por sua vez, os fiéis « recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua existência e trabalho. Esforçando-se por ter os mesmos sentimentos que Maria, ajudam toda a comunidade a viver em oferta viva, agradável ao Pai ».(255) Ela é a Tota Pulchra, a Toda Formosa, porque n'Ela resplandece o fulgor da glória de Deus. A beleza da liturgia celeste, que deve reflectir-se também nas nossas assembleias, encontra n'Ela um espelho fiel. D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais para podermos também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São Paulo, « imaculados » perante o Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio (Col 1, 22; Ef 1, 4).(256)
97. Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito Santo acenda em nós o mesmo ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) e renove na nossa vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz da própria beleza infinita do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e voltaram a toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs na fé. Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio, companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e ressuscitado, Se manifesta como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu corpo. Deste mistério de amor fomos feitos testemunhas. Os votos que reciprocamente formulamos sejam os de irmos cheios de alegria e maravilha ao encontro da santíssima Eucaristia, para experimentar e anunciar aos outros a verdade das palavras com que Jesus Se despediu dos seus discípulos: « Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt 28, 20).
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Fevereiro — festa da Cátedra de São Pedro — de 2007, segundo ano de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
Notas
1. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 73, a. 3.
2. Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus, 26, 5: PL 35, 1609.
3. Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé (10 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 255.
4. Cf. Bento XVI, Discurso aos membros do Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (1 de Junho de 2006): L'Osservatore Romano (ed. port. de 8/VI/2006), 237.
5. Cf. Propositio 2.
6. Aludo aqui à necessidade duma hermenêutica da continuidade mesmo no que diz respeito a uma correcta leitura do desenvolvimento litúrgico depois do Concílio Vaticano II: cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 44-45.
7. Tem a data de 7 de Outubro de 2004; veja-se o texto em AAS 97 (2005), 337-352.
8. Cf. Ano da Eucaristia: sugestões e propostas (15 de Outubro de 2004): L'Osservatore Romano (15 de Outubro de 2004), Suplemento.
9. Tem a data de 17 de Abril de 2003; veja-se o texto em AAS 95 (2003), 433-475. Há que recordar também a Instrução da Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004): AAS 96 (2004), 549-601, expressamente desejada por João Paulo II.
10. Recordo apenas os principais: Conc. Ecum. de Trento, Doctrina et canones de ss. Missæ sacrificio: DS 1738-1759; Leão XIII, Carta enc.Miræ caritatis (28 de Maio de 1902): ASS (1903), 115-136; Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 521-595; Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 753-774; João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia(17 de Abril de 2003): AAS 95 (2003), 433-475; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967): AAS 59 (1967), 539-573; Instr. Liturgiam authenticam (28 de Março de 2001): AAS 93 (2001), 685-726.
11. Cf. Propositio 1.
12. N. 14: AAS 98 (2006), 229.
13. Catecismo da Igreja Católica, 1327.
14. Propositio 16.
15. Bento XVI, Homilia na tomada de posse da Cátedra de Roma (7 de Maio de 2005): AAS 97 (2005), 752.
16. Cf. Propositio 4.
17. De Trinitate, VIII, 8, 12: CCL 50, 287.
18. Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 12: AAS 98 (2006), 228.
19. Cf. Propositio 3.
20. Cf. Breviário Romano: Hino do Ofício de Leituras, na solenidade do Corpo de Deus.
21. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 13: AAS 98 (2006), 228.
22. Cf. Bento XVI, Homilia na Esplanada de Marienfeld (21 de Agosto de 2005): AAS 97 (2005), 891-892.
23. Cf. Propositio 3.
24. Cf. Missal Romano: Oração Eucarística IV.
25. Catequese 23, 7: PG 33, 1114s.
26. Cf. Sobre o sacerdócio, 6, 4: PG 48, 681.
27. Ibid., 3, 4: o.c., 48, 642.
28. Propositio 22.
29. Cf. Propositio 42: « Este encontro eucarístico realiza-se no Espírito Santo, que nos transforma e santifica. Ele desperta no discípulo a vontade decidida de anunciar aos outros, com desassombro, tudo o que ouviu e viveu, para conduzi-los, também a eles, ao mesmo encontro com Cristo. Deste modo o discípulo, enviado pela Igreja, abre-se a uma missão sem fronteiras ».
30. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3. Veja-se, por exemplo, São João Crisóstomo, Catequeses 3, 13-19:SC 50, 174-177.
31. João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 1: AAS 95 (2003), 433.
32. Ibid., 21: o.c., 447.
33. Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 20: AAS 71 (1979), 309-316; Carta enc. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 4: AAS 72 (1980), 119-121.
34. Cf. Propositio 5.
35. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 80, a. 4.
36. N. 38: AAS 95 (2003), 458.
37. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
38. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844-845.
39. Propositio 5: « O termo ‘‘católico'' exprime a universalidade resultante da unidade que a Eucaristia, celebrada em cada Igreja, fomenta e constrói. Assim, as Igrejas particulares na Igreja universal têm, na Eucaristia, a missão de tornar visível a sua própria unidade e a sua diversidade. Este laço de amor fraterno deixa transparecer a comunhão trinitária. Os concílios e os sínodos exprimem na história este aspecto fraterno da Igreja ».
40. Cf. Ibid., 5.
41. Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 5.
42. Cf. Propositio 14.
43. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
44. De oratione dominica, 23: PL 4, 553.
45. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 48; veja-se também o n. 9.
46. Cf. Propositio 13.
47. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 7.
48. Cf. Ibid., 11; Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 9.13.
49. Cf. João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 7: AAS 72 (1980), 124-127; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 5.
50. Cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 710.
51. Cf. Rito da Iniciação Cristã dos Adultos, Introd. ger., nn. 34-36.
52. Cf. Rito do Baptismo das Crianças, Introd., nn. 18-19.
53. Cf. Propositio 15.
54. Cf. Propositio 7; João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 36: AAS 95 (2003), 457-458.
55. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et pænitentia (2 de Dezembro de 1984), 18: AAS 77 (1985), 224-228.
56. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1385.
57. Pense-se na « Confissão » (Confiteor) ou nas palavras proferidas pelo sacerdote e a assembleia pouco antes de comungarem: « Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo ». Significativamente a liturgia prevê, para o sacerdote, algumas orações muito belas, recebidas da tradição, que lhe recordam a necessidade de ser perdoado, como, por exemplo, a oração feita em silêncio antes de convidar os fiéis para a comunhão sacramental: « ...livrai-me de todos os meus pecados e de todo o mal, por este vosso santíssimo corpo e sangue; conservai-me sempre fiel aos vossos mandamentos e não permitais que eu me separe de Vós ».
58. Cf. São João Damasceno, Sobre a recta fé, 4, 9: PG 94, 1124C; São Gregório de Nazianzo, Discurso 39, 17: PG 36, 356A; Conc. Ecum. de Trento, Doctrina de sacramento pænitentiæ, cap. 2: DS 1672.
59. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et pænitentia (2 de Dezembro de 1984), 30: AAS 77 (1985), 256-257.
60. Cf. Propositio 7.
61. Cf. João Paulo II, Motu proprio Misericordia Dei (7 de Abril de 2002): AAS 94 (2002), 452-459.
62. Lembro, juntamente com os padres sinodais, que as celebrações penitenciais não sacramentais, mencionadas no ritual do sacramento da Reconciliação, podem ser úteis para fomentar o espírito de conversão e de comunhão nas comunidades cristãs, preparando assim os corações para a celebração do sacramento: cf. Propositio 7.
63. Cf. Código de Direito Canónico, cân. 508.
64. Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina (1 de Janeiro de 1967), Normæ, 1: AAS 59 (1967), 21.
65. Ibid., 9: o.c., 18-19.
66. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1499-1531.
67. Ibid., 1524.
68. Cf. Propositio 44.
69. Cf. II Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Doc. sobre o sacerdócio ministerial Ultimis temporibus (30 de Novembro de 1971): AAS 63 (1971), 898-942.
70. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 42-69: AAS 84 (1992), 729-778.
71. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta acerca de algumas questões relativas ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983): AAS 75 (1983), 1001-1009.
72. Catecismo da Igreja Católica, 1548.
73. Ibid., 1552.
74. Cf. In Iohannis Evangelium Tractatus 123, 5: PL 35, 1967.
75. Cf. Propositio 11.
76. Cf. Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 16.
77. Cf. João XXIII, Carta enc. Sacerdotii nostri primordia (1 de Agosto de 1959): AAS 51 (1959), 545-579; Paulo VI, Carta enc. Sacerdotalis cœlibatus (24 de Junho de 1967): AAS 59 (1967), 657-697; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 29:AAS 84 (1992), 703-705; Bento XVI, Discurso à Cúria Romana durante a apresentação dos votos natalícios (22 de Dezembro de 2006):L'Osservatore Romano (ed. port. de 30/XII/2006), 658.
78. Cf. Propositio 11.
79. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 6; Código de Direito Canónico, cân. 241-§ 1 e cân. 1029;Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 342-§ 1 e cân. 758; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 11.34.50: AAS 84 (1992), 673-675.712714.746-748; Congr. para o Clero, Directório para o ministério e a vida dos presbíteros (31 de Março de 1994), n. 58; Congr. para a Educação Católica, Instr. sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao Seminário e às Ordens Sacras (4 de Novembro de 2005): AAS 97 (2005), 1007-1013.
80. Cf. Propositio 12; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 41: AAS 84 (1992), 726-729.
81. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 29.
82. Cf. Propositio 38.
83. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 57: AAS 74 (1982), 149-150.
84. Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 26: AAS 80 (1988), 1715-1716.
85. Catecismo da Igreja Católica, 1617.
86. Cf. Propositio 8.
87. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
88. Cf. Propositio 8.
89. Cf. João Paulo II, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988): AAS 80 (1988), 1653-1729; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo (31 de Maio de 2004): AAS 96 (2004), 671-687.
90. Cf. Propositio 9.
91. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1640.
92. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 184-186; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica acerca da recepção da comunhão eucarística pelos fiéis divorciados re-casados Annus internationalis familiæ (14 de Setembro de 1994): AAS 86 (1994), 974-979.
93. Cf. Pont. Cons. para os Textos Legislativos, Instr. sobre as normas a observar pelos tribunais eclesiásticos nas causas matrimoniaisDignitatis connubii (25 de Janeiro de 2005), Cidade do Vaticano, 2005.
94. Cf. Propositio 40.
95. Bento XVI, Discurso ao Tribunal da Rota Romana por ocasião da inauguração do ano judicial (28 de Janeiro de 2006): AAS 98 (2006), 138.
96. Propositio 40.
97. Cf. Ibid., 40.
98. Cf. Ibid., 40.
99. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 48.
100. Cf. Propositio 3.
101. Apraz-me recordar aqui as palavras cheias de esperança e conforto que encontramos na Oração Eucarística II: « Lembrai-Vos dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição e de todos aqueles que, na vossa misericórdia, partiram deste mundo. Acolhei-os na luz da vossa presença ».
102. Cf. Bento XVI, Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e solenidade da Imaculada Conceição (8 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 15-16.
103. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 58.
104. Propositio 4.
105. Relatio post disceptationem, 4: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 660.
106. Cf. Sermones 1, 7; 11, 10; 22, 7; 29, 76: Sermones dominicales ad fidem codicum nunc denuo editi (Grottaferrata 1977), pp. 135.209s.292s.337; Bento XVI, Mensagem aos Movimentos Eclesiais e às Novas Comunidades (22 de Maio de 2006): AAS 98 (2006), 463.
107. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.
108. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 2.4.
109. Propositio 33.
110. Sermo 227, 1: PL 38, 1099.
111. Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus, 21, 8: PL 35, 1568.
112. Ibid., 28, 1: o.c., 35, 1622.
113. Cf. Propositio 30. Mesmo a Santa Missa que a Igreja celebra durante a semana, na qual os fiéis são convidados a participar, encontra a sua forma própria no dia do Senhor, o dia da ressurreição de Cristo: cf. Propositio 43.
114. Cf. Propositio 2.
115. Cf. Propositio 25.
116. Cf. Propositio 19. E a Propositio 25 especifica: « Uma autêntica acção litúrgica exprime a sacralidade do mistério eucarístico. Esta deveria transparecer nas palavras e acções do sacerdote celebrante, quando intercede junto de Deus Pai quer com os fiéis quer pelos fiéis ».
117. Instrução Geral do Missal Romano, 22; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 41; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 19-25: AAS 96 (2004), 555-557.
118. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja Christus Dominus, 14; Const. sobre a sagrada liturgiaSacrosanctum Concilium, 41.
119. Instrução Geral do Missal Romano, 22.
120. Cf. Ibid., 22.
121. Cf. Propositio 25.
122. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 112-130.
123. Cf. Propositio 27.
124. Cf. Ibid., 27.
125. Em tudo o que diz respeito a estes aspectos, é preciso ater-se fielmente a quanto está indicado na Instrução Geral do Missal Romano, 319-351.
126. Cf. Instrução Geral do Missal Romano, 39-41; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 112-118.
127. Sermo 34, 1: PL 38, 210.
128. Cf. Propositio 25: « Como todas as expressões artísticas, também o canto deve estar intimamente harmonizado com a liturgia, colaborar eficazmente para o seu fim, ou seja, deve exprimir a fé, a oração, o enlevo, o amor por Jesus presente na Eucaristia ».
129. Cf. Propositio 29.
130. Cf. Propositio 36.
131. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 116; Instrução Geral do Missal Romano, 41.
132. Instrução Geral do Missal Romano, 28; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 56; Sagr. Congr. dos Ritos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967), 3: AAS (1967), 540-543.
133. Cf. Propositio 18.
134. Ibid., 18.
135. Instrução Geral do Missal Romano, 29.
136. Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 13: AAS 91 (1999), 15-16.
137. São Jerónimo, Commentariorum in Isaiam, Prol.: PL 24, 17; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum,25.
138. Cf. Propositio 31.
139. Instrução Geral do Missal Romano, 29; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 7.33.52.
140. Propositio 19.
141. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 52.
142. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 21.
143. Com esta finalidade, o Sínodo exortou a elaborar subsídios pastorais, baseados no Leccionário trienal, que ajudem a ligar de maneira intrínseca a proclamação das leituras previstas com a doutrina da fé: cf. Propositio 19.
144. Cf. Propositio 20.
145. Instrução Geral do Missal Romano, 78.
146. Cf. Ibid., 78-79.
147. Cf. Propositio 22.
148. Instrução Geral do Missal Romano, 79d.
149. Ibid., 79c.
150. Tendo em consideração antigos e veneráveis costumes e votos expressos pelos padres sinodais, pedi aos Dicastérios competentes que estudassem a possibilidade de se colocar a saudação da paz noutro momento, por exemplo antes da apresentação das oferendas ao altar. Aliás, tal escolha não deixaria de suscitar uma significativa evocação da advertência feita pelo Senhor a propósito da necessidade de reconciliação antes de qualquer oferta a Deus (Mt 5, 23s): cf. Propositio 23.
151. Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 80-96: AAS 96 (2004), 574-577.
152. Cf. Propositio 34.
153. Cf. Propositio 35.
154. Cf. Propositio 24.
155. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 14-20.30s.48s; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 36-42: AAS 96 (2004), 561-564.
156. N. 48.
157. Ibid., 48.
158. Cf. Congr. para o Clero e outros Dicastérios da Cúria Romana, Instr. acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes Ecclesiæ de mysterio (15 de Agosto de 1997): AAS 89 (1997), 852-877.
159. Cf. Propositio 33.
160. Instrução Geral do Missal Romano, 92.
161. Cf. Ibid., 94.
162. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 24; Instrução Geral do Missal Romano, nn. 95-111; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março 2004), 43-47: AAS 96 (2004), 564-566; Propositio 33: « Estes ministérios devem ser introduzidos segundo um mandato específico e segundo as reais exigências da comunidade que celebra. As pessoas encarregadas destes serviços litúrgicos laicais devem ser escolhidas cuidadosamente, bem preparadas e acompanhadas por uma formação permanente. A sua nomeação deve ser temporária. Tais pessoas devem ser conhecidas pela comunidade e desta receberem também um grato reconhecimento ».
163. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 37-42.
164. Cf. nn. 386-399.
165. Veja-se o texto em AAS 87 (1995), 288-314.
166. Cf. Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 55-71: AAS 88 (1996), 34-47; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in America (22 de Janeiro de 1999), 16.40.64.70-72: AAS 91 (1999), 752-753.775-776.799.805-809; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Asia (6 de Novembro de 1999), 21s: AAS 92 (2000), 482-487; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Oceania (22 de Novembro de 2001), 16: AAS 94 (2002), 382-384; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Europa (28 de Junho de 2003), 58-60: AAS 95 (2003), 685-686.
167. Cf. Propositio 26.
168. Cf. Propositio 35; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 11.
169. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1388; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 55.
170. Cf. Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 34: AAS 95 (2003), 456.
171. Assim, por exemplo, São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 80, a. 1,2; Santa Teresa de Jesus, Caminho de perfeição, cap. 35. A doutrina foi confirmada autorizadamente pelo Concílio de Trento, Sessão XIII, cân. 8.
172. Cf. João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 8: AAS 87 (1995), 925-926.
173. Cf. Propositio 41; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 8.15; João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 46: AAS 87 (1995), 948; Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 45-46: AAS 95 (2003), 463-464; Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 125.129-131: AAS 85 (1993), 1087.1088-1089.
174. Cf. nn. 1398-1401.
175. Cf. n. 293.
176. Cf. Pont. Cons. das Comunicações Sociais, Instr. past. sobre as comunicações sociais no XX aniversário da ‘‘Communio et progressio''Ætatis novæ (22 de Fevereiro de 1992): AAS 84 (1992), 447-468.
177. Cf. Propositio 29.
178. Cf. Propositio 44.
179. Cf. Propositio 48.
180. Tal conhecimento pode ser adquirido também no Seminário, durante os anos de formação dos candidatos ao sacerdócio, através de oportunas iniciativas: cf. Propositio 45.
181. Cf. Propositio 37.
182. Cf. Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium36.54.
183. Cf. Propositio 36.
184. Cf. Ibid., 36.
185. Cf. Propositio 32.
186. Cf. Propositio 14.
187. Propositio 19.
188. Cf. Propositio 14.
189. Cf. Bento XVI, Homilia nas primeiras Vésperas de Pentecostes (3 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 509.
190. Propositio 34.
191. Enarrationes in Psalmos 98, 9: CCL 39, 1835; cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 44-45.
192. Cf. Propositio 6.
193. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 45.
194. Cf. Propositio 6; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre piedade popular e liturgia (17 de Dezembro de 2001), nn. 164-165; Sagr. Congr. dos Ritos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967): AAS 57 (1067), 539-573.
195. Cf. Relatio post disceptationem, 11: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 661.
196. Cf. Propositio 28.
197. Cf. n. 314.
198. Confissões 7, 10, 16: PL 32, 742.
199. Bento XVI, Homilia na Esplanada de Marienfeld (21 de Agosto de 2005): AAS 97 (2005), 892; cf. Homilia nas primeiras Vésperas de Pentecostes (3 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 505.
200. Cf. Relatio post disceptationem, 6.47: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 660.663; Propositio 43.
201. De civitate Dei 10, 6: PL 41, 284.
202. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1368.
203. Cf. Santo Ireneu, Contra as heresias 4, 20, 7: PG 7, 1037.
204. Epístola aos Magnésios 9, 1: PG 5, 670.
205. Cf. I Apologia 67, 1-6; 66: PG 6, 430s; 427.
206. Cf. Propositio 30.
207. Cf. AAS 90 (1998), 713-766.
208. Propositio 30.
209. Homilia na solenidade de São José (19 de Março de 2006): AAS 98 (2006), 324.
210. A este respeito observa, oportunamente, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 258: « Para o homem, ligado à necessidade do trabalho, o repouso abre a perspectiva de uma liberdade mais plena, a do Sábado eterno (Heb 4, 9-10). O repouso consente aos homens recordar e reviver as obras de Deus, da criação à redenção, e reconhecerem-se a si próprios como obra do mesmo Deus (Ef 2, 10), dar-Lhe graças pela própria vida e subsistência, a Ele, que é seu autor ».
211. Cf. Propositio 10.
212. Cf. Ibid., 10.
213. Cf. Bento XVI, Discurso aos bispos da Conferência Episcopal do Canadá-Quebec em Visita ad limina Apostolorum (11 de Maio de 2006):L'Osservatore Romano (ed. port. de 20/V/2006), 227.
214. N. 10: AAS 71 (1979), 414-415.
215. Bento XVI, Audiência Geral de 29 de Março de 2006: L'Osservatore Romano (ed. port. de 01/IV/2006), 152.
216. Propositio 39.
217. Cf. Relatio post disceptationem, 30: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 662.
218. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 39-42.
219. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 14.16: AAS 81 (1989), 409-413.416-418.
220. Cf. Propositio 39.
221. Cf. Ibid., 39.
222. Pontifical Romano – Ordenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos: Rito da Ordenação do Presbítero, n. 150.
223. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 19-33.70-81: AAS 84 (1992), 686-712. 778-800.
224. Propositio 38.
225. Propositio 39; cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 95: AAS 88 (1996), 470-471.
226. Código de Direito Canónico, cân. 663-§ 1.
227. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 34: AAS 88 (1996), 407-408.
228. Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), 107: AAS 85 (1993), 1216-1217.
229. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 14: AAS 98 (2006), 229.
230. Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ (25 de Março de 1995): AAS 87 (1995), 401-522; Bento XVI, Discurso à Pontifícia Academia para a Vida (27 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 264-265.
231. Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política (24 de Novembro de 2002): AAS 95 (2004), 359-370.
232. Cf. Propositio 46.
233. Homilia (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711.
234. Propositio 42.
235. Cf. O martírio de Policarpo 15, 1: PG 5, 1039.1042.
236. Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Romanos 4, 1: PG 5, 690.
237. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 42.
238. Cf. Propositio 42; Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000), 13-15: AAS 92 (2000), 754-755.
239. Cf. Propositio 42.
240. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 18: AAS 98 (2006), 232.
241. Ibid., 14: o.c., 228-229.
242. Durante a assembleia sinodal ouvimos, comovidos, testemunhos muito significativos sobre a eficácia deste sacramento na obra de pacificação. A tal respeito, afirma-se na Propositio 49: « Graças às celebrações eucarísticas, povos em conflito puderam reunir-se ao redor da palavra de Deus, ouvir o seu anúncio profético da reconciliação através do perdão gratuito, receber a graça da conversão que permite a comunhão no mesmo pão e no mesmo cálice ».
243. Cf. Propositio 48.
244. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 239.
245. Propositio 48.
246. Bento XVI, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (9 de Janeiro de 2006): AAS 98 (2006), 127.
247. Ibid.: o.c., 127.
248. Cf. Propositio 48. A este respeito, revela-se muito útil o Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
249. Cf. Propositio 43.
250. Cf. Propositio 47.
251. Cf. Propositio 17.
252. Acta ss. Saturnini, Dativi et aliorum plurimorum martyrum in Africa 7, 9, 10: PL 8, 707.709-710.
253. Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 53: AAS 95 (2003), 469.
254. Oração Eucarística I (Cânone Romano).
255. Propositio 50.
256. Cf. Bento XVI, Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e solenidade da Imaculada Conceição (8 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 15.
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CARTA ENCÍCLICA
ECCLESIA DE EUCHARISTIADO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO IIAOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
NA SUA RELAÇÃO COM A IGREJA
INTRODUÇÃO
1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja. É com alegria que ela experimenta, de diversas maneiras, a realização incessante desta promessa: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28, 20); mas, na sagrada Eucaristia, pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor, goza desta presença com uma intensidade sem par. Desde o Pentecostes, quando a Igreja, povo da nova aliança, iniciou a sua peregrinação para a pátria celeste, este sacramento divino foi ritmando os seus dias, enchendo-os de consoladora esperança.
O Concílio Vaticano II justamente afirmou que o sacrifício eucarístico é « fonte e centro de toda a vida cristã ».(1)Com efeito, « na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo ».(2) Por isso, o olhar da Igreja volta-se continuamente para o seu Senhor, presente no sacramento do Altar, onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.
2. Durante o Grande Jubileu do ano 2000, pude celebrar a Eucaristia no Cenáculo de Jerusalém, onde, segundo a tradição, o próprio Cristo a realizou pela primeira vez. O Cenáculo é o lugar da instituição deste santíssimo sacramento. Foi lá que Jesus tomou nas suas mãos o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: « Tomai, todos, e comei: Isto é o meu Corpo que será entregue por vós » (cf. Mt 26, 26; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24). Depois, tomou nas suas mãos o cálice com vinho e disse-lhes: « Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados » (cf. Mc 14, 24; Lc 22, 20; 1 Cor 11, 25). Dou graças ao Senhor Jesus por me ter permitido repetir no mesmo lugar, obedecendo ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19), as palavras por Ele pronunciadas há dois mil anos.
Teriam os Apóstolos, que tomaram parte na Última Ceia, entendido o significado das palavras saídas dos lábios de Cristo? Talvez não. Aquelas palavras seriam esclarecidas plenamente só no fim do Triduum Sacrum, ou seja, aquele período de tempo que vai da tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do Domingo de Páscoa. Nestes dias, está contido o mysterium paschale; neles está incluído também o mysterium eucharisticum.
3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial. Isto é visível desde as primeiras imagens da Igreja que nos dão os Actos do Apóstolos: « Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às orações » (2, 42). Na « fracção do pão », é evocada a Eucaristia. Dois mil anos depois, continuamos a realizar aquela imagem primordial da Igreja. E, ao fazê-lo na celebração eucarística, os olhos da alma voltam-se para o Tríduo Pascal: para o que se realizou na noite de Quinta-feira Santa, durante a Última Ceia, e nas horas sucessivas. De facto, a instituição da Eucaristia antecipava, sacramentalmente, os acontecimentos que teriam lugar pouco depois, a começar da agonia no Getsémani. Revemos Jesus que sai do Cenáculo, desce com os discípulos, atravessa a torrente do Cedron e chega ao Horto das Oliveiras. Existem ainda hoje naquele lugar algumas oliveiras muito antigas; talvez tenham sido testemunhas do que aconteceu junto delas naquela noite, quando Cristo, em oração, sentiu uma angústia mortal « e o seu suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra » (Lc 22, 44). O sangue que, pouco antes, tinha entregue à Igreja como vinho de salvação no sacramento eucarístico, começava a ser derramado; a sua efusão completar-se-ia depois no Gólgota, tornando-se o instrumento da nossa redenção: « Cristo, vindo como Sumo Sacerdote dos bens futuros [...] entrou uma só vez no Santo dos Santos, não com o sangue dos carneiros ou dos bezerros, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna » (Heb 9, 11-12).
4. A hora da nossa redenção. Embora profundamente turvado, Jesus não foge ao ver chegar a sua « hora »: « E que direi Eu? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que cheguei a esta hora! » (Jo 12, 27). Quer que os discípulos Lhe façam companhia, mas deve experimentar a solidão e o abandono: « Nem sequer pudestes vigiar uma hora Comigo. Vigiai e orai para não cairdes em tentação » (Mt 26, 40-41). Aos pés da cruz, estará apenas João ao lado de Maria e das piedosas mulheres. A agonia no Getsémani foi o prelúdio da agonia na cruz de Sexta-feira Santa. A hora santa, a hora da redenção do mundo. Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à « hora » de Jesus, a hora da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela participa.
« Foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia ». Estes artigos da profissão de fé ecoam nas seguintes palavras de contemplação e proclamação: Ecce lignum crucis in quo salus mundi pependit. Venite adoremus - « Eis o madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do mundo. Vinde adoremos! » É o convite que a Igreja faz a todos na tarde de Sexta-feira Santa. E, quando voltar novamente a cantar já no tempo pascal, será para proclamar: Surrexit Dominus de sepulcro qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia - « Ressuscitou do sepulcro o Senhor que por nós esteve suspenso no madeiro. Aleluia ».
5. Mysterium fidei! - « Mistério da fé ». Quando o sacerdote pronuncia ou canta estas palavras, os presentes aclamam: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ».
Com estas palavras ou outras semelhantes, a Igreja, ao mesmo tempo que apresenta Cristo no mistério da sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Ecclesia de Eucharistia. Se é com o dom do Espírito Santo, no Pentecostes, que a Igreja nasce e se encaminha pelas estradas do mundo, um momento decisivo da sua formação foi certamente a instituição da Eucaristia no Cenáculo. O seu fundamento e a sua fonte é todo o Triduum Paschale, mas este está de certo modo guardado, antecipado e « concentrado » para sempre no dom eucarístico. Neste, Jesus Cristo entregava à Igreja a actualização perene do mistério pascal. Com ele, instituía uma misteriosa « contemporaneidade » entre aquele Triduum e o arco inteiro dos séculos.
Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo. Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma « capacidade » realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na Ordenação sacerdotal, realiza a consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, do Cenáculo, que pronuncia: « Isto é o meu Corpo que será entregue por vós »; « este é o cálice do meu Sangue, [...] que será derramado por vós ». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes,coloca a sua boca e a sua voz à disposição d'Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que fossem repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam ministerialmente do seu sacerdócio.
6. É este « enlevo » eucarístico que desejo despertar com esta carta encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta apostólica Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o « programa » que propus à Igreja na aurora do terceiro milénio, convidando-a a fazer-se ao largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização. Contemplar Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas presenças mas sobretudo no sacramento vivo do seu corpo e do seu sangue. A Igreja vive de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada. A Eucaristia é mistério de fé e, ao mesmo tempo, « mistério de luz ».(3)Sempre que a Igreja a celebra, os fiéis podem de certo modo reviver a experiência dos dois discípulos de Emaús: « Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-No » (Lc 24, 31).
7. Desde quando iniciei o ministério de Sucessor de Pedro, sempre quis contemplar a Quinta-feira Santa, dia da Eucaristia e do Sacerdócio, com um sinal de particular atenção enviando uma carta a todos os sacerdotes do mundo. Neste vigésimo quinto ano do meu Pontificado, desejo envolver mais plenamente a Igreja inteira nesta reflexão eucarística para agradecer ao Senhor especialmente pelo dom da Eucaristia e do sacerdócio: « Dom e mistério ».(4) Se, ao proclamar o Ano do Rosário, quis pôr este meu vigésimo quinto ano sob o signo da contemplação de Cristo na escola de Maria, não posso deixar passar esta Quinta-feira Santa de 2003 sem me deter diante do « rosto eucarístico » de Jesus, propondo à Igreja, com renovado ardor, a centralidade da Eucaristia. Dela vive a Igreja; nutre-se deste « pão vivo ». Por isso senti a necessidade de exortar a todos a experimentá-lo sempre de novo.
8. Quando penso na Eucaristia e olho para a minha vida de sacerdote, de Bispo, de Sucessor de Pedro, espontaneamente ponho-me a recordar tantos momentos e lugares onde tive a dita de celebrá-la. Recordo a igreja paroquial de Niegowić, onde desempenhei o meu primeiro encargo pastoral, a colegiada de S. Floriano em Cracóvia, a catedral do Wawel, a basílica de S. Pedro e tantas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude celebrar a Santa Missa em capelas situadas em caminhos de montanha, nas margens dos lagos, à beira do mar; celebrei-a em altares construídos nos estádios, nas praças das cidades... Este cenário tão variado das minhas celebrações eucarísticas faz-me experimentar intensamente o seu carácter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo acto de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada. Assim, Ele, o sumo e eterno Sacerdote, entrando com o sangue da sua cruz no santuário eterno, devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida. Fá-lo através do ministério sacerdotal da Igreja, para glória da Santíssima Trindade. Verdadeiramente este é o mysterium fidei que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo.
9. A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério eucarístico, uma atenção que sobressai com autoridade no magistério dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Como não admirar as exposições doutrinais dos decretos sobre a Santíssima Eucaristia e sobre o Santo Sacrifício da Missa promulgados pelo Concílio de Trento? Aquelas páginas guiaram a teologia e a catequese nos séculos sucessivos, permanecendo ainda como ponto de referência dogmático para a incessante renovação e crescimento do povo de Deus na sua fé e amor à Eucaristia. Em tempos mais recentes, há que mencionar três encíclicas: a encíclica Miræ caritatis de Leão XIII (28 de Maio de 1902),(5) a encíclica Mediator Dei de Pio XII (20 de Novembro de 1947) (6) e a encíclica Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965).(7)
O Concílio Vaticano II, embora não tenha publicado qualquer documento específico sobre o mistério eucarístico, todavia ilustra os seus vários aspectos no conjunto dos documentos, especialmente na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium.
Eu mesmo, nos primeiros anos do meu ministério apostólico na Cátedra de Pedro, tive oportunidade de tratar alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua incidência na vida daquele que é o seu ministro, com a carta apostólica Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980).(8) Hoje retomo o fio daquele discurso com o coração transbordante de emoção e gratidão, dando eco às palavras do Salmista: « Que darei eu ao Senhor por todos os seus benefícios? Elevarei o cálice da salvação invocando o nome do Senhor » (Sal 116/115, 12-13).
10. A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, activa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente. De facto, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a recta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério.
CAPÍTULO I
MISTÉRIO DA FÉ
11. « O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11, 23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia. Esta tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos séculos.(9) Esta verdade está claramente expressa nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé » feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».
A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom, embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente ».(10)
Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e « realiza-se também a obra da nossa redenção ».(11) Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes. Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável.(12) É esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que mais poderia Jesus ter feito por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao « extremo » (cf. Jo 13, 1), um amor sem medida.
12. Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor ».(13)
A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos. Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício ».(14) Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá ».(15)
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica.(16) O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio),(17) de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário.
13. Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor, antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp 2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição ».(18)
Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis] oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».(19)
14. A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ».(20) Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios « é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e em nosso favor ».(21)
15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».(22) Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».(23) Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa ».(24)
« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S. Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação. Compreende-se como, ao longo dos séculos, esta verdade tenha estimulado a teologia a árduos esforços de compreensão.
São esforços louváveis, tanto mais úteis e incisivos se capazes de conjugarem o exercício crítico do pensamento com a « vida de fé » da Igreja, individuada especialmente « no carisma da verdade » do Magistério e na « íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais » (25) sobretudo os Santos. Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».(26)
16. A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue « derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Recordemos as suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).
17. Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente ».(27) A Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos, pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons, [...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo ».(28) E, no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito ».(29) Assim, pelo dom do seu corpo e sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido como « selo » no sacramento da Confirmação.
18. A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde, Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».(30)A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ».(31) Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade. De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim dizer, o « segredo » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».(32)
19. A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro » (Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho.
20. Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.(33) Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinópticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34).(34)
Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).
CAPÍTULO II
A EUCARISTIA EDIFICA A IGREJA
21. O Concílio Vaticano II veio recordar que a celebração eucarística está no centro do processo de crescimento da Igreja. De facto, depois de afirmar que « a Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo pelo poder de Deus »,(35) querendo de algum modo responder à questão sobre o modo como cresce, acrescenta: « Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, no qual “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1 Cor 10, 17) ».(36)
Existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja. Os evangelistas especificam que foram os Doze, os Apóstolos, que estiveram reunidos com Jesus na Última Ceia (cf. Mt 26, 20; Mc 14, 17; Lc 22, 14). Trata-se de um detalhe de notável importância, porque os Apóstolos « foram a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia ».(37) Ao oferecer-lhes o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário. De modo análogo à aliança do Sinai, que foi selada com um sacrifício e a aspersão do sangue,(38) os gestos e as palavras de Jesus na Última Ceia lançavam os alicerces da nova comunidade messiânica, povo da nova aliança.
No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceite o convite de Jesus: « Tomai, comei [...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26.27), entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. Desde então e até ao fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória [...]. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em minha memória » (1 Cor 11, 24-25; cf. Lc 22, 19).
22. A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade connosco: « Chamei-vos amigos » (Jo 15, 14). Mais ainda, nós vivemos por Ele: « O que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: « Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15, 4).
Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se « sacramento » para a humanidade,(39) sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) para a redenção de todos.(40) A missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: « Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fontee simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n'Ele, com o Pai e com o Espírito Santo.(41)
23. Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua unidade de corpo de Cristo. A este efeito unificador que tem a participação no banquete eucarístico, alude S. Paulo quando diz aos coríntios: « O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » (1 Cor 10, 16-17). Concreto e profundo, S. João Crisóstomo comenta: « Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem? No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De facto, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo ».(42) A argumentação é linear: a nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com que, n'Ele, sejamos parte também do seu corpo total que é a Igreja. A Eucaristia consolida a incorporação em Cristo operada no Baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1 Cor 12, 13.27).
A acção conjunta e indivisível do Filho e do Espírito Santo, que está na origem da Igreja, tanto da sua constituição como da sua continuidade, opera na Eucaristia. Bem ciente disto, o autor da Liturgia de S. Tiago, na epiclese da anáfora, pede a Deus Pai que envie o Espírito Santo sobre os fiéis e sobre os dons, para que o corpo e o sangue de Cristo « sirvam a todos os que deles participarem [...] de santificação para as almas e os corpos ».(43) A Igreja é fortalecida pelo Paráclito divino através da santificação eucarística dos fiéis.
24. O dom de Cristo e do seu Espírito, que recebemos na comunhão eucarística, realiza plena e sobreabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que é a participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito acima da mera experiência dum banquete humano. Pela comunhão do corpo de Cristo, a Igreja consegue cada vez mais profundamente ser, « em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(44)
Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de unidade do corpo de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo comunidade entre os homens.
25. O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho (45) – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual.(46)Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas(47)
É bom demorar-se com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predilecto (cf. Jo 13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se actualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela « arte da oração »,(48) como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio!
Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério,(49) deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto S. Afonso Maria de Ligório, que escrevia: « A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para nós ».(50) A Eucaristia é um tesouro inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da Missa permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar melhor o rosto de Cristo, segundo o espírito que sugeri nas cartas apostólicas Novo millennio ineunte e Rosarium Virginis Mariæ, não pode deixar de desenvolver também este aspecto do culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e sangue do Senhor.
CAPÍTULO III
A APOSTOLICIDADE DA EUCARISTIA E DA IGREJA
26. Se a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia, como antes recordei, consequentemente há entre ambas uma conexão estreitíssima, podendo nós aplicar ao mistério eucarístico os atributos que dizemos da Igreja quando professamos, no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que é « una, santa, católica e apostólica ». Também a Eucaristia é una e católica; e é santa, antes, é o Santíssimo Sacramento. Mas é principalmente sobre a sua apostolicidade que agora queremos concentrar a nossa atenção.
27. Quando o Catecismo da Igreja Católica explica em que sentido a Igreja se diz apostólica, ou seja, fundada sobre os Apóstolos, individua na expressão um tríplice sentido. O primeiro significa que a Igreja « foi e continua a ser construída sobre o “alicerce dos Apóstolos” (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo ».(51) Ora, no caso da Eucaristia, os Apóstolos também estão na sua base: naturalmente o sacramento remonta ao próprio Cristo, mas foi confiado por Jesus aos Apóstolos e depois transmitido por eles e seus sucessores até nós. É em continuidade com a acção dos Apóstolos e obedecendo ao mandato do Senhor que a Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos.
O segundo sentido que o Catecismo indica para a apostolicidade da Igreja é este: ela « guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos ».(52) Também neste sentido a Eucaristia é apostólica, porque é celebrada de acordo com a fé dos Apóstolos. Diversas vezes na história bimilenária do povo da nova aliança, o magistério eclesial especificou a doutrina eucarística, nomeadamente quanto à sua exacta terminologia, precisamente para salvaguardar a fé apostólica neste excelso mistério. Esta fé permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue.
28. Por último, a Igreja é apostólica enquanto « continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o Colégio dos Bispos, assistido pelos presbíteros, em união com o Sucessor de Pedro, Pastor supremo da Igreja ».(53) Para suceder aos Apóstolos na missão pastoral é necessário o sacramento da Ordem, graças a uma série ininterrupta, desde as origens, de Ordenações episcopais válidas.(54) Esta sucessão é essencial, para que exista a Igreja em sentido próprio e pleno.
A Eucaristia apresenta também este sentido da apostolicidade. De facto, como ensina o Concílio Vaticano II, « os fiéis por sua parte concorrem para a oblação da Eucaristia, em virtude do seu sacerdócio real »,(55)mas é o sacerdote ministerial que « realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo ».(56)Por isso se prescreve noMissal Romano que seja unicamente o sacerdote a recitar a oração eucarística, enquanto o povo se lhe associa com fé e em silêncio.(57)
29. A afirmação, várias vezes feita no Concílio Vaticano II, de que « o sacerdote ministerial realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo (in persona Christi) »,(58) estava já bem radicada no magistério pontifício.(59) Como já tive oportunidade de esclarecer noutras ocasiões, a expressão in persona Christi « quer dizer algo mais do que “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. In persona, isto é, na específica e sacramental identificação com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o Autor e o principal Sujeito deste seu próprio sacrifício, no que verdadeiramente não pode ser substituído por ninguém ».(60) Na economia de salvação escolhida por Cristo, o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia.
A assembleia que se reúne para a celebração da Eucaristia necessita absolutamente de um sacerdote ordenado que a ela presida, para poder ser verdadeiramente uma assembleia eucarística. Por outro lado, a comunidade não é capaz de dotar-se por si só do ministro ordenado. Este é um dom que ela recebe através da sucessão episcopal que remonta aos Apóstolos. É o Bispo que constitui, pelo sacramento da Ordem, um novo presbítero, conferindo-lhe o poder de consagrar a Eucaristia. Por isso, « o mistério eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um sacerdote ordenado, como ensinou expressamente o Concílio Ecuménico Lateranense IV ».(61)
30. Tanto esta doutrina da Igreja Católica sobre o ministério sacerdotal na sua relação com a Eucaristia, como a referente ao sacrifício eucarístico foram, nos últimos decénios, objecto de profícuo diálogo no âmbito da acção ecuménica. Devemos dar graças à Santíssima Trindade pelos significativos progressos e aproximações que se verificaram e que nos ajudam a esperar um futuro de plena partilha da fé. Permanece plenamente válida ainda a observação feita pelo Concílio Vaticano II acerca das Comunidades eclesiais surgidas no ocidente depois do século XVI e separadas da Igreja Católica: « Embora falte às Comunidades eclesiais de nós separadas a unidade plena connosco proveniente do Baptismo, e embora creamos que elas não tenham conservado a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem, contudo, quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ».(62)
Por isso, os fiéis católicos, embora respeitando as convicções religiosas destes seus irmãos separados, devem abster-se de participar na comunhão distribuída nas suas celebrações, para não dar o seu aval a ambiguidades sobre a natureza da Eucaristia e, consequentemente, faltar à sua obrigação de testemunhar com clareza a verdade. Isso acabaria por atrasar o caminho para a plena unidade visível. De igual modo, não se pode pensar em substituir a Missa do domingo por celebrações ecuménicas da Palavra, encontros de oração comum com cristãos pertencentes às referidas Comunidades eclesiais, ou pela participação no seu serviço litúrgico. Tais celebrações e encontros, em si mesmos louváveis quando em circunstâncias oportunas, preparam para a almejada comunhão plena incluindo a comunhão eucarística, mas não podem substituí-la.
Além disso, o facto de o poder de consagrar a Eucaristia ter sido confiado apenas aos Bispos e aos presbíteros não constitui qualquer rebaixamento para o resto do povo de Deus, já que na comunhão do único corpo de Cristo, que é a Igreja, este dom redunda em benefício de todos.
31. Se a Eucaristia é centro e vértice da vida da Igreja, é-o igualmente do ministério sacerdotal. Por isso, com espírito repleto de gratidão a Jesus Cristo nosso Senhor, volto a afirmar que a Eucaristia « é a principal e central razão de ser do sacramento do Sacerdócio, que nasceu efectivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela ».(63)
Muitas são as actividades pastorais do presbítero. Se depois se pensa às condições sócio-culturais do mundo actual, é fácil ver como grava sobre ele o perigo da dispersão pelo grande número e diversidade de tarefas. O Concílio Vaticano II individuou como vínculo, que dá unidade à sua vida e às suas actividades, a caridade pastoral. Esta – acrescenta o Concílio – « flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero ».(64) Compreende-se, assim, quão importante seja para a sua vida espiritual, e depois para o bem da Igreja e do mundo, que o sacerdote ponha em prática a recomendação conciliar de celebrar diariamente a Eucaristia, « porque, mesmo que não possa ter a presença dos fiéis, é acto de Cristo e da Igreja ».(65) Deste modo, ele será capaz de vencer toda a dispersão ao longo do dia, encontrando no sacrifício eucarístico, verdadeiro centro da sua vida e do seu ministério, a energia espiritual necessária para enfrentar as diversas tarefas pastorais. Assim, os seus dias tornar-se-ão verdadeiramente eucarísticos.
Da centralidade da Eucaristia na vida e no ministério dos sacerdotes deriva também a sua centralidade na pastoral em prol das vocações sacerdotais. Primeiro, porque a oração pelas vocações encontra nela o lugar de maior união com a oração de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote; e, depois, porque a solícita atenção dos sacerdotes pelo ministério eucarístico, juntamente com a promoção da participação consciente, activa e frutuosa dos fiéis na Eucaristia, constituem exemplo eficaz e estímulo para uma resposta generosa dos jovens ao apelo de Deus. Com frequência, Ele serve-Se do exemplo de zelosa caridade pastoral dum sacerdote para semear e fazer crescer no coração do jovem o germe da vocação ao sacerdócio.
32. Tudo isto comprova como é triste e anómala a situação duma comunidade cristã que, embora se apresente quanto a número e variedade de fiéis como uma paróquia, todavia não tem um sacerdote que a guie. De facto, a paróquia é uma comunidade de baptizados que exprime e afirma a sua identidade, sobretudo através da celebração do sacrifício eucarístico; mas isto requer a presença dum presbítero, o único a quem compete oferecer a Eucaristia in persona Christi. Quando uma comunidade está privada do sacerdote, procura-se justamente remediar para que de algum modo continuem as celebrações dominicais; e os religiosos ou os leigos que guiam os seus irmãos e irmãs na oração exercem de modo louvável o sacerdócio comum de todos os fiéis, baseado na graça do Baptismo. Mas tais soluções devem ser consideradas provisórias, enquanto a comunidade espera um sacerdote.
A deficiência sacramental destas celebrações deve, antes de mais nada, levar toda a comunidade a rezar mais fervorosamente ao Senhor para que mande trabalhadores para a sua messe (cf. Mt 9, 38); e estimulá-la a pôr em prática todos os demais elementos constitutivos duma adequada pastoral vocacional, sem ceder à tentação de procurar soluções que passem pela atenuação das qualidades morais e formativas requeridas nos candidatos ao sacerdócio.
33. Quando, devido à escassez de sacerdotes, foi confiada a fiéis não ordenados uma participação no cuidado pastoral duma paróquia, eles tenham presente que, como ensina o Concílio Vaticano II, « nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração eucarística ».(66) Portanto, hão-de pôr todo o cuidado em manter viva na comunidade uma verdadeira « fome » da Eucaristia, que leve a não perder qualquer ocasião de ter a celebração da Missa, valendo-se nomeadamente da presença eventual de um sacerdote não impedido pelo direito da Igreja de celebrá-la.
CAPÍTULO IV
A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL
34. Em 1985, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a « eclesiologia da comunhão » como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio Vaticano II.(67) Enquanto durar a sua peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta « vive e cresce »,(68) e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo comunhão se tornou um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigénito por obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, « mais do que em qualquer outro sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens: nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus une-Se connosco pela união mais perfeita ».(69) Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. Daqui nasceu a prática da « comunhão espiritual » em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia S. Teresa de Jesus: « Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor ».(70)
35. Entretanto a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em Cristo, pela acção do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação.(71) Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.
36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos « participantes da natureza divina » (cf. 2 Ped 1, 4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da caridade. De facto, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na caridade, permanecendo na Igreja com o « corpo » e o « coração »; (72) ou seja, usando palavras de S. Paulo, é necessária « a fé que actua pela caridade » (Gal 5, 6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o corpo e o sangue de Cristo. Um tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a advertência seguinte: « Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice » (1 Cor 11, 28). Com a sua grande eloquência, S. João Crisóstomo assim exortava os fiéis: « Também eu levanto a voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De facto, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos ».(73)
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente: « Aquele que tiver consciência dum pecado grave, deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão ».(74) Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há-de vigorar na Igreja a norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do apóstolo Paulo, ao afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, « se deve fazer antes a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal ».(75)
37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que S. Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: « Suplicamo-vos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus » (2 Cor 5, 20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infracção moral se refere a norma do Código de Direito Canónico relativa à não admissão à comunhão eucarística de quantos « obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto ».(76)
38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível, manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina: « São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos ».(77)
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela « como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos »,(78) requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Baptismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja baptizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14, 6; 18, 37); o sacramento do seu corpo e sangue não consente ficções.
39. Além disso, em virtude do carácter próprio da comunhão eclesial e da relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que « o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é uma celebração apenas dessa comunidade: de facto esta, ao receber a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica ».(79) Daí que uma comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse auto-suficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular.(80) Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia S. Inácio de Antioquia: « Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele encarregou ».(81) De igual modo, visto que « o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis »,(82) a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico. Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: « Cada celebração eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo mas também com o Papa, com a Ordem episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristãs separadas de Roma, assim a reclama objectivamente ».(83)
40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao escrever aos fiéis de Corinto, S. Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do Senhor. E convidava-os, por isso, a reflectirem sobre a verdadeira realidade da Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1 Cor 11, 17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em S. Agostinho quando, depois de recordar a afirmação do Apóstolo « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27), observava: « Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis ».(84) E daí concluía: « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação ».(85)
41. Esta eficácia peculiar que tem a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical. Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e dos fiéis, na carta apostólica sobre a santificação do domingo Dies Domini,(86) recordando, para além do mais, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a todos a possibilidade efectiva de cumprirem o preceito.(87) Mais tarde, na carta apostólica Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do terceiro milénio, quis assinalar de modo particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão: « É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade ».(88)
42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objectivas nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua fiel observância torna-se uma expressão efectiva de amor à Eucaristia e à Igreja.
43. Quando se considera a Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecuménico. Todos devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo, muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O Concílio Vaticano II, ao princípio do seu decreto sobre o ecumenismo, considera isto como um dom especial de Deus.(89) Foi uma graça eficaz que fez caminhar pela senda ecuménica tanto a nós, filhos da Igreja Católica, como aos nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna expressão e fonte insuperável.(90) Na celebração do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo um só corpo e um só espírito.(91) Quando apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do Qual provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (cf. Tg 1, 17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em união com Cristo, Cabeça e Esposo, o Qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu sacrifício redentor.
44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por meio do sacrifício e da comunhão do corpo e sangue do Senhor, comporta a exigência imprescindível duma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico, não é possível concelebrar a liturgia eucarística enquanto não for restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão, atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade. Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas,(92) atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II.(93)
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei, na carta encíclica Ut unum sint, depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: « E todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos dirigimo-nos ao Pai e fazemo-lo cada vez mais com um só coração ».(94)
45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De facto, neste caso tem-se como objectivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis, e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível enquanto não forem plenamente reatados os laços visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direcção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se com os Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem preparados.(95) Tal modo de proceder seria depois ratificado por ambos os Códigos canónicos, nos quais é contemplado também, com os devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.(96)
46. Na encíclica Ut unum sint, manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à salvação das almas, com o devido discernimento: « É motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos »(97)
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição duma ou mais verdades de fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio ministerial para serem válidos, deixa o requerente impreparado para uma legítima recepção dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão numa comunidade onde falte o sacramento da Ordem.(98)
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria (99) é prova e simultaneamente garantia de amor por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.
CAPÍTULO V
O DECORO DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos Sinópticos, fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, que João identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos – particularmente em Judas (Mt 26, 8;Mc 14, 4; Jo 12, 4) – uma reacção de protesto contra tal gesto que, em face das necessidades dos pobres, constituía um « desperdício » intolerável. Mas Jesus faz uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os necessitados, aos quais sempre se hão-de dedicar os discípulos – « Pobres, sempre os tereis convosco » (Jo 12, 8; cf. Mt 26, 11;Mc 14, 7) –, Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinópticos, a narração continua com o encargo dado por Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da « grande sala », necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14, 15; Lc 22, 12), e com a descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até ao canto do « Hallel » (cf.Mt 26, 30; Mc 14, 26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu corpo entregue e do seu sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz duma prática, consolidada já na Igreja primitiva, da « fracção do pão ». O certo é que, desde o tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços duma « sensibilidade » litúrgica, modulada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta a remodular-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.
48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu « desperdiçar », investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros discípulos encarregados de preparar a « grande sala », ela sentiu-se impelida, ao longo dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia num ambiente digno de tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e gestos de Jesus, desenvolvendo a herança ritual do judaísmo, que nasceu a liturgia cristã. Porventura haverá algo que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino continuamente faz de Si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas gerações de crentes o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-Se alimento para todos os fiéis? Se a ideia do « banquete » inspira familiaridade, a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta « intimidade » com o seu Esposo, recordando-se que Ele é também o seu Senhor e que, embora « banquete », permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O Banquete eucarístico é verdadeiramente banquete « sagrado », onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o abismo da santidade de Deus: O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur! - « Ó Sagrado Banquete, em que se recebe Cristo! » O pão que é repartido nos nossos altares, oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é « panis angelorum », pão dos anjos, do qual só é possível abeirar-se com a humildade do centurião do Evangelho: « Senhor, eu não sou digno que entres debaixo do meu tecto » (Mt 8, 8; Lc 6, 6).
49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na « domus » das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a « cultura », especialmente no sector estético.
50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma « competição », os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria – um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente « eucarística », na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um « ícone » da Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas; (100) mas, a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.
51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte sacra e da disciplina litúrgica, está a verificar-se tambémnos continentes onde o cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a propósito da exigência duma sã e necessária « inculturação ». Nas minhas numerosas viagens pastorais, pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a celebração eucarística em contacto com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a encontrar-se. O « tesouro » é demasiado grande e precioso para se correr o risco de o empobrecer ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa Sé. Como escrevia na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Asia, « tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal ».(101)
52. De quanto fica dito, compreende-se a grande responsabilidade que têm sobretudo os sacerdotes na celebração eucarística, à qual presidem in persona Christi, assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa directamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o « formalismo » levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as « formas » escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Actualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão universal.
CAPÍTULO VI
NA ESCOLA DE MARIA, MULHER « EUCARÍSTICA »
53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia.(102) Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que Ela estava presente no meio dos Apóstolos, quando, « unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam assiduamente à oração » (Act 1, 14), na primeira comunidade que se reuniu depois da Ascensão à espera do Pentecostes. E não podia certamente deixar de estar presente, nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à « fracção do pão » (Act 2, 42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a relação de Maria com a Eucaristia indirectamente a partir da sua atitude interior. Maria é mulher « eucarística » na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo.
54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim », ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2, 5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, Ela parece dizer-nos: « Não hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, entregando aos crentes, neste mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida” ».
55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição, coloca-se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n'Ela o que se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o corpo e o sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o amém que cada fiel pronuncia quando recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela concebia « por obra do Espírito Santo » era o « Filho de Deus » (cf. Lc 1, 30-35). Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
« Feliz d'Aquela que acreditou » (Lc 1, 45): Maria antecipou também, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de « sacrário » – o primeiro « sacrário » da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, Se presta à adoração de Isabel, como que « irradiando » a sua luz através dos olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor a que se devem inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?
56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o menino Jesus ao templo de Jerusalém, « para O apresentar ao Senhor » (Lc 2, 22), ouviu o velho Simeão anunciar que aquele Menino seria « sinal de contradição » e que uma « espada » havia de trespassar também a alma d'Ela (cf. Lc 2, 34-35). Assim foi vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o « stabat Mater » aos pés da Cruz. Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de « Eucaristia antecipada », dir-se-ia uma « comunhão espiritual » de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e manifestar-se-á depois, no período pós-pascal, na sua participação na celebração eucarística, presidida pelos Apóstolos, como « memorial » da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria, ao ouvir dos lábios de Pedro, João, Tiago e restantes apóstolos as palavras da Última Ceia: « Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós » (Lc 22, 19). Aquele corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que batera em uníssono com o d'Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da Cruz.
57. « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No « memorial » do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na sua paixão e morte. Por isso, não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De facto, entrega-Lhe o discípulo predilecto e, nele, entrega cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual modo diz a cada um de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).
Viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das celebrações eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binómio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de Maria na celebração eucarística.
58. Na Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o Magnificat em perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55), anunciando a maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos « derrubados dos seus tronos » e « exaltados os humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo céu » e aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a « síntese » programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!
CONCLUSÃO
59. « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando celebrei a minha Missa Nova na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos » e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa « contemporaneidade ». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro homine! ». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede – é certo – e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham – « visus, tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino Adoro te devote –; mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna » (Jo 6, 68).
60. Na aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta apostólica Novo millennio ineunte, « não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste ».(103) A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia, temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?
61. O mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão, quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio é também caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo milénio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção, convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut unum sint » (Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obstáculos que superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do facto de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque, « neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação ».(104)
62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia adquire todo o brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos « abrasa ». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque n'Ela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N'Ela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo céu » e da « nova terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: « Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!
Nos sinais humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e sangue, Cristo caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se na adoração e num amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como é de alegria e de paz:
« Bone Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere... ».
« Bom Pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
Aos mortais dando comida
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira Santa, do ano 2003, vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.
IOANNES PAULUS II
Notas
(3)Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariæ (16 de Outubro de 2002), 21: AAS 95 (2003), 19.
(4)Assim quis intitular um testemunho autobiográfico que escrevi por ocasião das Bodas de Ouro do meu sacerdócio.
(9)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 47: « O nosso Salvador instituiu [...] o sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz ».
(12)Cf. Paulo VI, Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 24: AAS 60 (1968), 442; João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ(24 de Fevereiro de 1980), 12: AAS 72 (1980), 142.
(16)« Trata-se realmente de uma única e mesma vítima, que o próprio Jesus oferece pelo ministério dos sacerdotes, Ele que um dia Se ofereceu a Si mesmo na cruz; somente o modo de oferecer-Se é que é diverso »: Conc. Ecum. de Trento, Sess. XXII,Doctrina de ss. Missæ sacrificio, cap. 2: DS 1743.
(33)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 39.
(34)« Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: « Isto é o meu Corpo », [...] também afirmou: « Vistes-Me com fome e não me destes de comer », e ainda: « Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra »: S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509; cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 31: AAS 80 (1988), 553-556.
(38)« Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco mediante todas estas palavras” » (Ex 24, 8).
(41)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5. No n. 6 do mesmo decreto, lê-se: « Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia ».
(42)Homilias sobre a I Carta aos Coríntios, 24, 2: PG 61, 200; cf. Didaké, IX, 4: F. X. Funk, I, 22; S. Cipriano, Epistula LXIII, 13: PL4, 384.
(45)Cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cân. 4: DS 1654.
(49)« Durante o dia, os fiéis não deixem de visitar o Santíssimo Sacramento, que se deve conservar nas igrejas, no lugar mais digno e com as honras devidas segundo as leis litúrgicas; cada visita é prova de gratidão, sinal de amor e dever de adoração a Cristo ali presente »: Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 771.
(50)Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima, Introdução: Obras Ascéticas (Avelino 2000), 295.
(54)Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 2: AAS 75 (1983), 1005.
(58)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10 e 28; Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 2.
(59)« O ministro do altar age personificando Cristo cabeça, que oferece em nome de todos os membros »: Pio XII, Carta enc.Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 556; cf. Pio X, Exort. ap. Hærent animo (4 de Agosto de 1908): Pii X Acta, IV, 16; Pio XI, Carta enc. Ad catholici sacerdotii (20 de Dezembro de 1935): AAS 28 (1936), 20.
(61)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale(6 de Agosto de 1983), III, 4: AAS 75 (1983), 1006; cf. IV Conc. Ecum. de Latrão, Const. sobre a fé católica Firmiter credimus, cap. 1: DS 802.
(65)Ibid., 13; Código de Direito Canónico, cân. 904; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 378.
(71)Cf. Congr. da Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 4: AAS 85 (1993), 839-840.
(74)N. 1385; cf. Código de Direito Canónico, cân. 916; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 711.
(77)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(79)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844.
(80)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(82)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(83)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 14: AAS 85 (1993), 847.
(89)Cf. Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 1.
(90)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(91)« Fazei que, participando do único pão e do único cálice, permaneçamos unidos uns aos outros na comunhão do único Espírito Santo »: Anáfora da Liturgia de S. Basílio.
(92)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 908; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 702; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 122-125.129-131: AAS 85 (1993), 1086-1089; Congr. da Doutrina da Fé, Carta Ad exsequendam (18 de Maio de 2001): AAS 93 (2001), 786.
(93)« A comunicação nas coisas sagradas que ofende a unidade da Igreja ou inclui adesão formal ao erro ou perigo de aberração na fé, de escândalo e de indiferentismo, é proibida por lei divina »: Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 26.
(95)Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 27.
(96)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4.
(98)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
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CARTA ENCÍCLICA
MEDIATOR DEI
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A SAGRADA LITURGIA
INTRODUÇÃO
1. "O mediador entre Deus e os homens", (1) o grande pontífice que penetrou os céus, Jesus filho de Deus,(2) assumindo a obra de misericórdia com a qual enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais, visou sem dúvida a restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o pecado tinha perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro princípio e último fim, a mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo pecado original. E por isso, durante a sua permanência na terra, não só anunciou o início da redenção e declarou inaugurado o reino de Deus, mas ainda cuidou de promover a salvação das almas pelo contínuo exercício da pregação e do sacrifício, até que, na cruz, se ofereceu a Deus qual vítima imaculada para "purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo".(3) Assim, todos os homens, felizmente chamados do caminho que os arrastava à ruína e à perdição, foram ordenados de novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal colaboração na obra da própria santificação, fruto do sangue imaculado do Cordeiro, dessem a Deus a glória que lhe é devida.
2. O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso instituiu um sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação pura, (4) a fim de que todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos do pecado, por dever de consciência servissem espontânea e voluntariamente a Deus.
3. A Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o ofício sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o faz em primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é perpetuamente representado(5) e renovado, com a só diferença no modo de oferecer; em seguida, com os sacramentos, que são instrumentos particulares por meio dos quais os homens participam da vida sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de louvores oferecido a Deus ótimo e máximo(6). "Que jubiloso espetáculo – diz o nosso predecessor de feliz memória Pio XI – oferece ao céu e à terra a Igreja que reza, enquanto continuamente dia e noite, se cantam na terra os salmos escritos por inspiração divina: nenhuma hora do dia transcorre sem a consagração de uma liturgia própria; cada etapa da vida tem seu lugar na ação de graças, nos louvores, preces e aspirações desta comum oração do corpo místico de Cristo, que é a Igreja."(7)
4. Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século passado e nos princípios do presente, houve singular fervor de estudos litúrgicos; já por louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo pela zelosa e assídua diligência de vários mosteiros da ínclita ordem beneditina; assim que não somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas terras de além-mar, se desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil emulação, cujas benéficas conseqüências foram visíveis, quer no campo das disciplinas sagradas, onde os ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental foram mais ampla e profundamente estudados e conhecidos, quer na vida espiritual e íntima de muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do altar foram mais conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos sacramentos maior e mais freqüente; as orações litúrgicas mais suavemente saboreadas e o culto eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e fonte da verdadeira piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência o fato de que todos os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo a cabeça, com o conseqüente dever para o povo cristão de participar, segundo a própria condição, dos ritos litúrgicos.
5. Sem dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para que o povo a ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido litúrgico e que, com zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados ritos brilhem até externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma ordem de idéias, falando, segundo o costume, aos pregadores quaresmais desta nossa excelsa cidade, em 1943, nós os havíamos calorosamente exortado a advertir os seus ouvintes que participassem, com maior empenho, do sacrifício eucarístico; e recentemente fizemos traduzir de novo em latim, do texto original, o livro dos Salmos para que as preces litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja católica, fossem mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais facilmente percebidas.(8)
6. Todavia, enquanto pelos salutares frutos que dele derivam, o apostolado litúrgico nos é de não pequeno conforto, o nosso dever nos impõe seguir com atenção esta "renovação" na maneira pela qual é concebida por alguns, e cuidar diligentemente para que as iniciativas não se tornem excessivas nem insuficientes.
7. Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e freqüentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética.
8. A pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta sagrada disciplina, que deve necessariamente conformar-se ao sapientíssimo ensinamento da Igreja. É, portanto, nosso dever louvar e aprovar tudo o que é bem feito, conter ou reprovar tudo o que se desvia do verdadeiro e justo caminho.
9. Não acreditem, pois, os inertes e os tíbios ter a nossa aprovação porque repreendemos os que erram e contemos os audazes; nem os imprudentes se tenham por louvados quando corrigimos os negligentes e os preguiçosos. Ainda que nesta nossa encíclica tratemos sobretudo da liturgia latina, não é que tenhamos em menor estima as venerandas liturgias da Igreja oriental, cujos ritos, transmitidos por nobres e antigos documentos, nos são igualmente caríssimos; mas visamos antes às condições particulares da Igreja ocidental, que são tais que reclamam a intervenção da nossa autoridade.
10. Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a Deus o reclama; as necessidades dos tempos presentes o exigem. Após uma longa e cruel guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de boa vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à concórdia. Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja, neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente, do qual é necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de que, aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma comunidade fraterna, porquanto, "ainda que muitos, somos um só corpo, participando todos do único pão.(9)
PRIMEIRA PARTE
NATUREZA, ORIGEM, PROGRESSO DA LITURGIA
I. A liturgia é culto público
11. O dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si mesmo e a própria vida para Deus. "A ele, com efeito, devemos principalmente unir-nos como indefectível princípio, ao qual deve ainda constantemente aplicar-se a nossa escolha como ao último fim, que perdemos pecando, mesmo por negligência, e que devemos reconquistar pela fé, crendo nele".(10) Ora, o homem se volta ordinariamente para Deus quando lhe reconhece a suprema majestade e o supremo magistério, quando aceita com submissão as verdades divinamente reveladas, quando lhe observa religiosamente as leis, quando faz convergir para ele toda a sua atividade, quando – para dizer resumidamente – presta, mediante a virtude da religião, o devido culto ao único e verdadeiro Deus.
12. Esse é um dever que obriga antes de tudo os homens individualmente, mas é ainda um dever coletivo de toda a comunidade humana ordenada com recíprocos vínculos sociais, porque também ela depende da suma autoridade de Deus.
13. Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto Deus os elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor da antiga Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar acuradamente as normas que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo culto. Estabeleceu, para isso, vários sacrifícios e designou várias cerimônias com que deviam realizar-se e determinou claramente o que se referia à arca da aliança, ao templo e aos dias festivos; designou a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, indicou e descreveu as vestes para uso dos sagrados ministros e tudo o mais que tinha relação com o culto divino.(11)
14. Esse culto, aliás, não era mais do que a sombra(12) daquele que o sumo sacerdote do Novo Testamento havia de render ao Pai celeste.
15. De fato, apenas "o Verbo se fez carne",(13) manifesta-se ao mundo no seu ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um ato de submissão que durará por todo o tempo de sua vida: "entrando no mundo, diz... eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade...",(14) um ato que será consumado de modo admirável no sacrifício cruento da cruz: "Pelo poder desta vontade fomos santificados por meio da oblação do corpo de Jesus Cristo feita uma só vez para sempre".(15) Toda a sua atividade entre os homens não tem outro escopo. Menino, é apresentando no templo ao Senhor; adolescente, ali volta ainda; em seguida ali vai freqüentemente para instruir o povo e para rezar. Antes de iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com seu conselho e o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como mestre de verdade, "ilumina todo homem"(16) para que os mortais reconheçam convenientemente o Deus imortal, e não "se afastem para sua perdição, mas guardem a fé para salvar a sua alma".(17) Como Pastor, depois, ele governa o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da vida, e dá uma lei a observar, para que ninguém se afaste dele e da reta via que traçou, mas todos vivam santamente sob o seu influxo e a sua ação. Na última ceia, com rito e aparato solene, celebra a nova páscoa e provê a sua continuação mediante a divina instituição da eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a terra, oferece o sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de certo modo, jorrar os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da redenção. Fazendo isso, tem por único fim a glória do Pai e a crescente santificação do homem.
16. Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por ele instituído e prestado durante a sua vida terrena continue ininterrupto. Já que não deixou órfão o gênero humano, mas o assiste sempre com o seu contínuo e valioso patrocínio, fazendo-se nosso advogado no céu junto do Pai,(18) assim o ajuda mediante a sua Igreja, na qual está indefectivelmente presente no correr dos séculos, Igreja que constituiu coluna da verdade(19) e dispensadora de graça, e que, com o sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou eternamente.(20)
17. A Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o empenho e a função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os homens, oferecer a Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim restabelecer entre o Criador e as criaturas aquela união e harmonia que o apóstolo das gentes claramente indica por estas palavras: "Não sois mais hóspedes ou adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, educados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, com o próprio Jesus Cristo por pedra angular, sobre a qual todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um templo santo no Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em morada de Deus, pelo Espírito".(21) Por isso a sociedade fundada pelo divino Redentor não tem outro fim, seja com a sua doutrina e o seu governo, seja com o sacrifício e os sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o ministério que lhe contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e dilatar-se sempre mais – o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas almas dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o templo no qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo. Em toda ação litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino Fundador: Cristo está presente no augusto sacrifício do altar, quer na pessoa do seu ministro, quer por excelência, sob as espécies eucarísticas; está presente nos sacramentos com a virtude que neles transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de santidade; está presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como vem escrito: "Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí estou no meio delas".(22) A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros.
18. A ação litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os primeiros cristãos, com efeito, "eram assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, e à comum fração do pão e à oração".(23) Em toda a parte onde os pastores possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o qual oferecem o sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos adaptados à santificação dos homens e à glorificação de Deus. Entre esse ritos estão, em primeiro lugar, os sacramentos, isto é, as sete principais fontes de salvação; depois, está a celebração do louvor divino, com o qual os féis reunidos obedecem à exortação do Apóstolo: "Instruindo-vos e exortando-vos uns aos outros com toda a sabedoria, cantando a Deus em vosso coração, inspirados pela graça, salmos, hinos e cânticos espirituais";(24) depois, ainda, a leitura da Lei, dos Profetas, do Evangelho e das epístolas apostólicas; e, enfim, a prática com a qual o presidente da assembléia recorda e comenta utilmente os preceitos do divino Mestre, os acontecimentos principais de sua vida, e admoesta todos os presentes com exortações oportunas e exemplos.
19. O culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as necessidades dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimônias e fórmulas, sempre com o mesmo intento: "a fim de que sejamos estimulados por aqueles sinais... conheçamos o progresso realizado e nos sintamos solicitados a desenvolvê-lo com maior vigor; o efeito, de fato, é mais digno, se mais ardente é o afeto que o precede".(25) Assim a alma se eleva a Deus mais e melhor; assim o sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos, não sendo a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio. Como a sua cabeça divina, assim a Igreja assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e exorta-os à santidade, para que, ornados com essa dignidade sobrenatural, possam um dia voltar ao Pai que está nos céus. Ela restaura para a vida celeste os nascidos à vida terrena, dá-lhes a ajuda do Espírito Santo na luta contra o inimigo implacável; chama os cristãos em torno dos altares e, com insistentes convites, exorta-os a celebrar e tomar parte no sacrifício eucarístico, e nutre-os com o pão dos anjos, para que sejam sempre mais firmes; purifica e consola aqueles que o pecado feriu e maculou; consagra com legítimo rito aqueles que, por vocação divina, são chamados ao ministério sacerdotal; revigora com graças e dons divinos o casto conúbio daqueles que são destinados a fundar e constituir a família cristã; depois de ter confortado e restaurado com o viático eucarístico e a sagrada unção as últimas horas da vida terrena, acompanha ao túmulo com suma piedade os despojos dos seus filhos, dispondo-os religiosamente, protegendo-os ao abrigo da cruz, para que possam um dia ressurgir triunfando da morte; abençoa com particular solenidade quantos dedicam a sua vida ao serviço divino na consecução da perfeição religiosa; estende a sua mão caridosa às almas que, nas chamas da purificação, imploram preces e sufrágios, para conduzi-las finalmente à eterna beatitude.
II. A liturgia é culto externo e interno
20. Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que "pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis"; (26) porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e conseqüentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: "se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos.(27)
21. Mas o elemento essencial do culto deve ser o interno. É necessário, com efeito, viver sempre em Cristo, dedicar-se todo a ele, a fim de que nele, com ele e por ele, se dê glória ao Pai. A sagrada liturgia requer que estes dois elementos estejam intimamente ligados; o que ela não se cansa jamais de repetir toda vez que prescreve um ato externo de culto. Assim, por exemplo, a propósito do jejum, nos exorta: "a fim de que se opere de fato em nosso íntimo o que a nossa observância professa externamente".(28) De outro modo, a religião se torna um formalismo sem fundamento e sem conteúdo. Sabeis, veneráveis irmãos, que o divino Mestre considera indignos do templo sagrado e expulsa dele os que crêem honrar a Deus somente com o som de bem construídas palavras e com atitudes teatrais e estão persuadidos de poder prover de modo adequado à sua salvação sem arrancar da alma os vícios inveterados".(29) A Igreja, portanto, quer que todos os fiéis se prostrem aos pés do Redentor para professar-lhe o seu amor e a sua veneração; quer que as multidões, como as crianças que andaram ao encontro de Cristo quando entrava em Jerusalém com alegres aclamações, acompanhem o Rei dos reis e o sumo autor de todos os benefícios, aclamando-o com o canto de glória e de agradecimento; quer que haja orações em seus lábios, ora súplices, ora alegres e agradecidas, com as quais, como os apóstolos junto ao lago de Tiberíades, possam experimentar o auxílio de sua misericórdia e de seu poder; ou como Pedro, no monte Tabor, a Deus se abandonem e a todas as suas coisas nos místicos transportes da contemplação.
22. Não têm, pois, noção exata da sagrada liturgia aqueles que a consideram como parte somente externa e sensível do culto divino ou como cerimonial decorativo; nem se enganam menos aqueles que a consideram como mero conjunto de leis e preceitos com que a hierarquia eclesiástica ordena a realização dos ritos.
23. Deve, portanto, ser bem conhecido de todos que não se pode honrar dignamente a Deus, se a alma não cuida de conseguir a perfeição da vida, e que o culto rendido a Deus pela Igreja em união com a sua Cabeça divina tem a eficácia suprema de santificação.
24. Essa eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes de tudo do valor da ação em si mesma (ex opere operato); se se considera ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com a qual orna de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e de outros ritos instituídos pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação da Igreja (ex opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima união com a sua Cabeça.
25. A esse propósito, veneráveis irmãos, desejamos que volvais a vossa atenção às novas teorias sobre "piedade objetiva" segundo as quais, esforçando-se para pôr em evidência o mistério do corpo místico, a realidade efetiva da graça santificante e a ação divina dos sacramentos e do sacrifício eucarístico, se pretenderia descuidar ou diminuir a "piedade subjetiva" ou pessoal.
26. Nas celebrações litúrgicas e, em particular, no augusto sacrifício do altar, continua-se, sem dúvida, a obra da nossa redenção, cujos frutos nos são aplicados. Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos sacramentos e no seu sacrifício e, por meio deles, purifica continuamente e consagra a Deus o gênero humano. Têm, portanto, uma virtude objetiva, com a qual, de fato, fazem nossas almas participantes da vida divina de Jesus Cristo. Eles, pois, têm não por nossa, mas por divina virtude, a eficácia de reunir a piedade dos membros com a piedade da Cabeça e torná-la, de certo modo, uma ação de toda a comunidade. Desses profundos argumentos alguns concluem que toda a piedade cristã deve concentrar-se no mistério do corpo místico de Cristo, sem nenhuma consideração pessoal e subjetiva, e por isso acreditam que se deva descuidar das outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto público.
27. Todos, no entanto, podem verificar que essas conclusões acerca das duas espécies de piedade, ainda que os princípios acima expostos sejam ótimos, são completamente falsas, insidiosas e perniciosíssimas.
28. É verdade que os sacramentos e o sacrifício do altar têm uma intrínseca virtude enquanto são ações do próprio Cristo que comunica e difunde a graça da Cabeça divina nos membros do corpo místico; mas, para terem a devida eficácia, exigem as boas disposições da nossa alma; como, a propósito da eucaristia, são Paulo admoesta: "cada um examine a si mesmo e coma deste pão e beba do cálice".(30) Por isso mesmo, a Igreja define com brevidade e clareza todos os exercícios com os quais a nossa alma se purifica, especialmente durante a quaresma: "fortalezas da milícia cristã"; (31) são, com efeito, as ações dos membros que, com o auxílio da graça, desejam aderir à sua Cabeça a fim de que "nos seja manifesta – para repetir as palavras de santo Agostinho – na nossa Cabeça a própria fonte da graça".(32) Mas deve-se notar que estes membros são vivos, providos de razão e de vontade própria; por isso é necessário que eles, encostando os lábios à fonte, retirem e assimilem o alimento vital e removam tudo o que lhe pode impedir a eficácia. Devemos, pois, afirmar que a obra da redenção, independente em si mesma da nossa vontade, requer o esforço íntimo da nossa alma para que possamos conseguir a eterna salvação.
29. Se a piedade privada e interna dos particulares se descuidasse do augusto sacrifício do altar e dos sacramentos, e se subtraísse ao influxo salvador que emana da Cabeça nos membros, seria, sem dúvida, reprovável e estéril; mas quando todas as providências e os exercícios de piedade não estritamente litúrgicos fixam o olhar da alma sobre atos humanos unicamente para endereçá-los ao Pai que está nos céus; para estimular salutarmente os homens à penitência e ao temor de Deus e arrancá-los da atração do mundo e dos vícios, para conduzi-los felizmente por árduo caminho ao vértice da santidade, então, não apenas são sumamente louváveis, mas necessários, porque descobrem os perigos da vida espiritual, estimulam-nos à aquisição da virtude e aumentam o fervor com o qual nos devemos dedicar todos ao serviço de Jesus Cristo. A genuína piedade que o Angélico chama "devoção" e que é o ato principal da virtude da religião com o qual os homens se ordenam retamente, se orientam oportunamente para Deus e livremente se consagram ao culto,(33) têm necessidade da meditação das realidades sobrenaturais e das práticas espirituais para que se alimente, estimule e fortifique e nos anime à perfeição. É que a religião cristã devidamente praticada requer, sobretudo, que a vontade se consagre a Deus e influa sobre as outras faculdades da alma. Mas todo ato da vontade pressupõe o exercício da inteligência e, antes que se conceba o desejo e o propósito de dar-se a Deus por meio do sacrifício, é absolutamente necessário o conhecimento dos argumentos e dos motivos que levam à religião, como, por exemplo, o fim último do homem e a grandeza da divina Majestade, o dever de obediência ao Criador, os tesouros inexauríveis do amor com o qual ele nos quis enriquecer, a necessidade da graça para alcançar a meta assinalada, e o caminho particular que a divina Providência nos preparou unindo-nos todos, como membros de um corpo, a Jesus Cristo Cabeça. E já que nem sempre os motivos do amor dominam a alma agitada pelas paixões, é muito oportuno que nos impressione ainda a consideração salutar da divina justiça para levar-nos à humildade cristã, à penitência e à emenda.
30. Todas estas considerações não devem ser uma vazia e abstrata lembrança, mas devem visar efetivamente a submeter os nossos sentidos e as suas faculdades à razão iluminada pela fé, a purificar a alma que se une cada dia mais intimamente a Cristo e sempre mais a ele se conforma e dele recebe a inspiração e a força divina de que tem necessidade; e para que sejam aos homens estímulo sempre mais eficaz ao bem, à fidelidade ao próprio dever, à prática da religião, ao fervoroso exercício da virtude, é necessário ter presente este ensinamento: "Sois de Cristo e Cristo é de Deus".(34) Tudo, pois, seja orgânico e teocêntrico se queremos que tudo seja em verdade endereçado à glória de Deus pela vida e pela virtude que nos vêm da nossa Cabeça divina: "tendo, pois, confiança de entrar no santo dos santos pelo sangue de Cristo, pelo novo e vivo caminho que ele inaugurou para nós através da sua carne, e tendo um grande sacerdote que preside à casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero, com plenitude de fé, alma purificada da consciência de culpa, lavado o corpo com água limpa, apeguemo-nos firmes à profissão da nossa esperança... e sejamos solícitos uns para com os outros, para nos estimularmos à caridade e às boas obras". (35)
31. Disso deriva o harmonioso equilíbrio dos membros do corpo místico de Jesus Cristo. Com o ensino da fé católica, com a exortação à observância dos preceitos cristãos, a Igreja prepara o caminho à sua ação propriamente sacerdotal e santificadora; dispõe-nos a uma contemplação mais íntima da vida do divino Redentor e nos conduz a uma consciência mais profunda dos mistérios da fé para que recebamos o alimento sobrenatural e a força para seguro progresso na vida perfeita por meio de Jesus Cristo. Não somente pelas obras de seus ministros mas ainda pelas obras dos fiéis particulares imbuídos do espírito de Jesus Cristo, a Igreja se esforça em fazer penetrar esse mesmo espírito na vida e na atividade privada, familiar, social, e até econômica e política dos homens, para que todos os que são chamados filhos de Deus possam mais facilmente conseguir o seu próprio fim.
32. Dessa maneira a ação particular e o esforço ascético dirigido à purificação da alma estimulam as energias dos fiéis e os preparam a participar com melhores disposições do augusto sacrifício do altar e a receber os sacramentos com maior fruto, e a celebrar os sagrados ritos, de modo a torná-los mais animados e formados para a oração e para a abnegação cristã para cooperar ativamente nas inspirações e nos convites da graça, para imitar cada dia mais a virtude do Redentor, não somente para vantagem própria mas ainda para a vantagem de todo o corpo da Igreja, no qual todo o bem que se cumpre provém da virtude da Cabeça e redunda em benefício dos membros.
33. Por isso na vida espiritual nenhuma oposição ou repugnância pode haver entre a ação divina que infunde a graça nas almas para continuar a nossa redenção e a operosa colaboração do homem que não deve tornar vão o dom de Deus; (36) entre a eficácia do rito externo dos sacramentos que provém do seu intrínseco valor (ex opere operato), e o mérito de quem os administra ou recebe (opus operantis); entre as orações privadas e as preces públicas; entre a ética e a contemplação; entre a vida ascética e a piedade litúrgica; entre o poder de jurisdição e de legítimo magistério e o poder eminentemente sacerdotal que se exercita no próprio sagrado ministério.
34. Por graves motivos a Igreja prescreve aos ministros do altar e aos religiosos, precisamente porque são destinados de modo particular a realizar as funções litúrgicas do sacrifício e do louvor divino, que, nos tempos estabelecidos, atendam à meditação piedosa, ao exame diligente e à emenda da consciência e aos outros exercícios espirituais.(37) Sem dúvida, a prece litúrgica, sendo pública oração da ínclita esposa de Jesus Cristo, tem maior dignidade do que a das orações privadas; mas esta superioridade não quer dizer que entre estes dois gêneros de oração haja contraste ou oposição. Ambas as duas se fundem e se harmonizam porque animadas de um único espírito: "tudo e em todos, Cristo" (38) e tendem ao mesmo fim: até que Cristo seja formado em nós.(39)
III. A liturgia é regulada pela hierarquia eclesiástica
35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante.
A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. (36). Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio:..' ;(40) "quem vos ouve, a mim ouve..."; (41) "percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo".(42)
37. Por isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na Igreja não de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido a indivíduos eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete sacramentos, o qual não somente confere uma graça particular, própria deste estado e deste ofício, mas ainda um caráter indelével que configura os ministros sagrados a Jesus Cristo sacerdote, demonstrando-os capazes de cumprir aqueles atos legítimos de religião com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo as exigências da economia sobrenatural.
38. Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são marcados com caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e somente as suas mãos são consagradas "para que seja abençoado tudo o que abençoam e tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".(43) Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento da vida espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para que possa felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios; deles, enfim, receberá a bênção que consagra a família e por eles o último suspiro da vida mortal será dirigido ao ingresso na beatitude eterna.
39. Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da autoridade da Igreja. Esta é não somente uma conseqüência da natureza mesma do culto cristão, mas é ainda confirmada pelo testemunho da história.
40. Esse direito inconcusso da hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter a sagrada liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso deve conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade do supremo magistério para proteger a integridade da religião revelada por Deus.
41. A esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua justa luz uma coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles que pretenderam que a sagrada liturgia fosse como uma experimentação do dogma, de modo que, se uma destas verdades tivesse, através dos ritos da sagrada liturgia, trazido frutos de piedade e de santidade, a Igreja deveria aprová-la, e repudiá-la em caso contrário. Donde o princípio: "a lei da oração é lei da fé".
42. Não é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: "a Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade".(44) Na sagrada liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
43. Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas "fontes teológicas", não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: "A lei da oração estabeleça a lei da fé".(45) A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que "a lei da fé deve estabelecer a lei da oração". O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras virtudes teológicas: "na... fé, na esperança e na caridade oramos sempre com desejo contínuo"(46).
IV. Progresso e desenvolvimento da liturgia
44. A hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o sempre de novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos féis. Não duvidou, além disto – salva a substância do sacrifício eucarístico e dos sacramentos – em mudar aquilo que não julgava adaptado, em acrescentar o que parecia contribuir melhor para a glória de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para instrução e estímulo salutar do povo cristão.(47)
45. A sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de elementos divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor, não podem, evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao contrário, podem sofrer várias modificações, aprovadas pela hierarquia sagrada, assistida do Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas. Disso se origina a estupenda variedade dos ritos orientais e ocidentais; o desenvolvimento progressivo de hábitos particulares religiosos e práticas de piedade inicialmente apenas acenadas; disso advém que muitas vezes são repristinadas e renovadas pias instituições obliteradas pelo tempo. Tudo isso testemunha a vida da intemerata esposa de Jesus Cristo durante tantos séculos; exprime a linguagem usada por ela para manifestar ao Esposo divino a fé e o amor inexauríveis dela e das gentes que lhe foram confiadas; demonstra a sua sábia pedagogia para estimular e incrementar nos crentes "o sentido de Cristo".
46. Em verdade, não poucas são as causas pelas quais se explica e desenvolve o progresso da sagrada liturgia durante a longa e gloriosa história da Igreja.
Assim, por exemplo, uma formação mais certa e ampla da doutrina católica sobre a encarnação do Verbo de Deus, sobre os sacramentos, sobre o sacrifício eucarístico, e sobre a virgem Maria Mãe de Deus, contribuiu para a adoção de novos ritos, por meio dos quais a luz, mais esplendidamente brilhante na declaração do magistério eclesiástico, veio a refletir melhor e mais claramente nas ações litúrgicas para unir-se com maior facilidade à mente e ao coração do povo cristão
47. O ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração dos sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição e depois o desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob uma só espécie na Igreja latina, contribuíram não pouco para a modificação dos antigos ritos e a gradual adoção de novos e mais condizentes com as disposições disciplinares mudadas.
48. Para essa evolução e para essas mudanças contribuíram notavelmente as iniciativas e as práticas piedosas não estritamente ligadas à sagrada liturgia, nascidas em épocas sucessivas por admirável disposição de Deus e assim difundidas no povo, como, por exemplo, o culto mais amplo e mais fervoroso da divina eucaristia, da acerbíssima paixão do nosso Redentor, do sacratíssimo coração de Jesus, da virgem Mãe de Deus e do seu puríssimo esposo.
48. Entre as circunstâncias exteriores, tiveram a sua parte as peregrinações públicas de devoção aos sepulcros dos mártires, a observância de jejuns particulares instituídos para o mesmo fim, as procissões estacionais de penitência que se celebravam nesta excelsa cidade e às quais, não raro, comparecia o próprio sumo pontífice.
50. Também facilmente se compreende como o progresso das belas artes, especialmente da arquitetura, da pintura e da música tenham influído não pouco sobre a determinação e a diversa conformação dos elementos exteriores da sagrada liturgia.
51. Do mesmo direito seu em matéria litúrgica serviu-se a Igreja para tutelar a santidade do culto contra os abusos temerariamente introduzidos por indivíduos e por Igrejas particulares. Assim aconteceu que nosso predecessor de imortal memória, Sixto V, vendo multiplicar-se os usos e costumes deste gênero durante o século XVI e as iniciativas privadas porem em perigo a integridade da fé e da piedade, com grande vantagem dos hereges e da propaganda do seu erro, instituiu em 1588, para defender os legítimos ritos da Igreja e impedir as infiltrações espúrias, a Congregação dos ritos,(48) órgão a que compete ainda hoje ordenar e prescrever, com cuidado vigilante, tudo o que diz respeito à sagrada liturgia.(49)
V. Tal progresso não pode ser deixado ao arbítrio dos particulares
52. Por isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles que julgar devem ser mudados;(50) os bispos têm o direito e o dever de vigiar diligentemente para que as prescrições dos sagrados cânones relativamente ao culto divino sejam pontualmente observadas.(51) Não é possível deixar ao arbítrio dos particulares, ainda que sejam membros do clero, as coisas santas e venerandas relativas à vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do sacerdócio de Jesus Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima Trindade, ao Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à salvação dos homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste campo ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a própria integridade da fé católica. Certamente, a Igreja é um organismo vivo e, por isso, ainda no que diz respeito à sagrada liturgia, firme a integridade de seu ensinamento, cresce e se desenvolve, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e às exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se, todavia, reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de propósito novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em desuso e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes. Assim, não sem grande pesar, sabemos que isso acontece não somente em coisas de pouca monta, mas ainda de gravíssima importância; não falta, com efeito, quem use a língua vulgar na celebração do sacrifício eucarístico, quem transfira para outros tempos festas fixadas já por razões ponderáveis; quem exclua dos legítimos livros da oração pública os escritos sagrados do Antigo Testamento, reputando-os pouco adaptados e pouco oportunos para os nossos tempos.
53. O uso da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da pura doutrina. Em muitos ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz útil para o povo, mas somente a Sé Apostólica tem o poder de concedê-lo, e por isso, neste campo, nada é lícito fazer sem o seu juízo e a sua aprovação, porque, como havíamos dito, a regulamentação da sagrada liturgia é de sua exclusiva competência.
54. Do mesmo modo se devem julgar os esforços de alguns para revigorar certos antigos ritos e cerimônias. A liturgia da época antiga é, sem dúvida, digna de veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente de sua antiguidade, o melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos tempos posteriores e às novas condições verificadas. Os ritos litúrgicos mais recentes também são respeitáveis, pois que foram estabelecidos por influxo do Espírito Santo que está com a Igreja até à consumação dos séculos, (52) e são meios dos quais se serve a ínclita esposa de Jesus Cristo para estimular e conseguir a santidade dos homens.
55. É certamente coisa sábia e muito louvável retornar com a inteligência e com a alma às fontes da sagrada liturgia, porque o seu estudo, reportando-se às origens, auxilia não pouco a compreender o significado das festas e a penetrar com maior profundidade e agudeza o sentido das cerimônias, mas não é certamente coisa tão sábia e louvável reduzir tudo e de qualquer modo ao antigo. Assim, para dar um exemplo, está fora do caminho quem quer restituir ao altar a antiga forma de mesa; quem quer eliminar dos paramentos litúrgicos a cor negra; quem quer excluir dos templos as imagens e as estátuas sagradas; quem quer suprimir na representação do Redentor crucificado as dores acérrimas por ele sofridas; quem repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando conforme às normas emanadas da santa sé.
56. Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.
57. Este modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e insano arqueologismo suscitado pelo ilegítimo concílio de Pistóia, e se esforça em revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele conciliábulo e os que se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a Igreja – guarda vigilante do "depósito da fé" confïado pelo seu divino Fundador – condenou com todo o direito.(53) De fato, deploráveis propósitos e iniciativas tendem a paralisar a ação santificadora com a qual a sagrada liturgia orienta salutarmente ao Pai celeste os filhos de adoção.
58. Tudo, pois, seja feito em indispensável união com a hierarquia eclesiástica. Ninguém se arrogue o direito de ser lei para si mesmo e de impô-la aos outros por sua vontade. Somente o sumo pontífice, na qualidade de sucessor de Pedro, ao qual o divino Redentor confiou o rebanho universal, (54) e juntamente os bispos, que sob a dependência da Sé Apostólica "o Espírito Santo colocou para reger a Igreja de Deus",(55) têm o direito e o dever de governar o povo cristão. Por isso, veneráveis irmãos, toda vez que defendeis a vossa autoridade – oportunamente, ainda que com severidade salutar não somente cumpris o vosso dever, mas defendeis a própria vontade do Fundador da Igreja.
SEGUNDA PARTE
O CULTO EUCARÍSTICO
I. Natureza do sacrifício eucarístico
59. O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando do ápice da sagrada liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos, deter-nos um pouco, chamando a vossa atenção para esta importantíssima temática.
60. O Cristo Senhor, "sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque" (56) "tendo amado os seus que estavam no mundo",(57) "na última ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos... ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o oferecessem".(58)
61. O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. "Uma... e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta".(59)
62. Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada pessoa é representada pelo seu ministro. Este, pela consagração sacerdotal recebida, assemelha-se ao sumo Sacerdote e tem o poder de agir em virtude e na pessoa do próprio Cristo;(60) por isso, com sua ação sacerdotal, de certo modo, "empresta a Cristo a sua língua, e lhe oferece a sua mão".(61)
63. Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua humana natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente, porém, é o modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele se ofereceu todo a Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima foi realizada por meio de morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao invés, por causa do estado glorioso de sua natureza humana, "a morte não tem mais domínio sobre ele"(62) e, por conseguinte, não é possível a efusão do sangue; mas a divina sabedoria encontrou o modo admirável de tornar manifesto o sacrifício de nosso Redentor com sinais exteriores que são símbolos de morte. Já que, por meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo, têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue; as espécies eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a cruenta separação do corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima.
64. Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a glorificação de Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado pelo zelo da glória divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao céu em odor de suavidade. E porque este cântico não havia de cessar, no sacrifício eucarístico os membros se unem à Cabeça divina e com ela, com os anjos e os arcanjos, cantam a Deus louvores perenes, (63) dando ao Pai onipotente toda honra e glória.(64)
65. O segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor somente, como Filho de predileção do Eterno Pai de quem conhecia o imenso amor, pôde entoar-lhe um digno cântico de ação de graças. A isso visou e isso desejou "rendendo graças"(65) na última ceia, e não cessou de fazê-lo na cruz, não cessa de realizá-lo no augusto sacrifício do altar, cujo significado é justamente a ação de graças ou eucaristia; e porque isso é "verdadeiramente digno e justo e salutar".(66)
66. O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, "propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo".(67) Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda "por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz",(68) pois, quer vivamos, quer morramos, "não nos separamos do único Cristo".(69)
67. O quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e dissipou todos os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à suprema miséria e inanição; da cruz, porém, Cristo, "tendo em alta voz e com lágrimas oferecido orações e súplicas... foi ouvido pela sua piedade",(70) e nos sagrados altares exercita a mesma mediação eficaz; a fim de que sejamos cumulados de toda bênção e graça.
68. Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de Trento afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos.(71)
69. Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação, tornou perfeitos para sempre os santificados.(72) Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. "Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo".(73)
70. Esse resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário que, depois de haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si mesmo, Cristo entre na real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente, a fim de que, com o beneplácito de Deus, se cumpra para todos os indivíduos e para todas as gerações até o fim dos séculos, a sua redenção e salvação, é absolutamente necessário que cada um tenha vital contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos que dele derivam lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo construiu no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e aí não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser purificados e salvos.
71. A fim de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que, falando em geral, Cristo haja reconciliado com o Pai por meio da sua morte cruenta todo o gênero humano, quis todavia que todos se aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos sacramentos e do sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos salutares por ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação assim como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que cada um de nós pode repetir as palavras de são Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim".(74) Como realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus Cristo enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma cooperação da parte dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao invés, se trata de distribuir tal tesouro, não só participa com sua esposa incontaminada desta obra de santificação, mas deseja que tal atividade jorre, de certo modo, por ação dela.(75)
72. O augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes distribuir os méritos derivados da cruz do divino Redentor: "toda vez que se oferece este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção".(76) Isso, porém, longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele faz ressaltar a grandeza, como afirma o concílio de Trento,"(77) e lhe proclama a necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há salvação fora da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo;(78) que Deus quer a continuação deste sacrifício "do surgir ao pôr-do-sol", (79) para que não cesse jamais o hino de glorificação e de ação de graças que os homens devem ao Criador, visto que têm necessidade de seu contínuo auxílio e do sangue do Redentor para redimir os pecados que ofendem a sua justiça.
II. Participação dos fiéis no sacrifício eucarístico
73. É necessário, pois, veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu principal dever e suma dignidade participar do santo sacrifício eucarístico, não com assistência passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e fervor que os ponha em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: "Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou",(80) oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele.
74. É bem verdade que Jesus Cristo é sacerdote, mas não para si mesmo, e sim para nós, apresentando ao Eterno Pai os votos e sentimentos religiosos de todo o gênero humano; Jesus é vítima, mas por nós, substituindo-se ao homem pecador; ora, o dito do Apóstolo: "Alimentai em vós os mesmos sentimentos que existiram em Jesus Cristo" exige de todos os cristãos que reproduzam em si, enquanto está em poder do homem, o mesmo estado de alma que tinha o divino Redentor quando fazia o sacrifício de si mesmo, a humilde submissão do espírito, isto é, a adoração, a honra, o louvor e a ação de graças à majestade suprema de Deus; requer, além disso, que reproduzam em si mesmos as condições da vítima: a abnegação de si conforme os preceitos do evangelho, o voluntário e espontâneo exercício da penitência, a dor e a expiação dos próprios pecados. Exige, em uma palavra, a nossa morte mística na cruz com Cristo, de modo que possamos dizer com Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz".(81)
75. É necessário, veneráveis irmãos, explicar claramente a vosso rebanho como o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais. Há, de fato, em nossos dias, alguns que, avizinhando-se de erros já condenados,(82) ensinam que em o Novo Testamento se conhece apenas um sacerdócio pertencente a todos os batizados, e que o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele havia feito – se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos e só depois é que foi introduzido o sacerdócio hierárquico. Sustentam, por isso, que só o povo goza de verdadeiro poder sacerdotal, enquanto o sacerdote age unicamente por ofício a ele confiado pela comunidade. Afirmam, em conseqüência, que o sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria "concelebração", e que é melhor que os sacerdotes "concelebrem" junto com o povo presente, do que, na ausência destes, ofereçam privadamente o sacrifício.
76. É inútil explicar quanto esses capciosos erros estejam em contraste com as verdades acima demonstradas, quando falamos do lugar que compete ao sacerdote no corpo místico de Jesus. Recordemos apenas que o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo.(83) O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais.
1. Os fiéis oferecem junto com o sacerdote
77. Tudo isso consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso.
Já o declararam abertamente alguns dos nossos predecessores e doutores da Igreja. "Não somente – assim afirmava Inocêncio III, de imortal memória – oferecem os sacerdotes, mas ainda todos os fiéis; pois isto que em particular se cumpre pelo ministério dos sacerdotes, cumpre-se universalmente por voto dos fiéis".(84) E apraz-nos citar ao menos um dos muitos textos de são Roberto Belarmino a esse propósito: "O sacrifício – diz ele – é oferecido principalmente na pessoa de Cristo. Por isso a oblação que segue à consagração atesta que toda a Igreja consente na oblação feita por Cristo e oferece juntamente com ele".(85)
78. Com clareza não menor, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo. De fato, não somente o sagrado ministro, depois da oferta do pão e do vinho, voltado para o povo diz explicitamente: "Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício sejam aceitos junto a Deus-Pai onipotente",(86) mas ainda as orações com as quais é oferecida a vítima divina são, além do mais, ditas no plural, e nelas se indica que também o povo toma parte como ofertante neste augusto sacrifício. Diz-se, por exemplo: "Pelos quais nós te oferecemos, e que te oferecem ainda eles... Por isso te suplicamos, ó Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família... Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada".(87)
79. Nem é de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do "caráter" que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo.
80. Na Igreja católica, a razão humana iluminada pela fé sempre se esforçou por ter a maior consciência possível das coisas divinas; por isso é natural que também o povo cristão pergunte piamente em que sentido se diz no Cânon do sacrifício eucarístico que também ele o oferece. Para satisfazer esse piedoso desejo apraz-nos tratar aqui do assunto com clareza e concisão.
81. Há, acima de tudo, razões muito remotas: freqüentemente acontece que os fiéis, assistindo aos sagrados ritos, unam alternadamente as suas orações às orações do sacerdote; alguma vez; ainda, acontece – isto antigamente se verificava com maior freqüência – que ofereçam ao ministro do altar o pão e o vinho para que se tornem corpo e sangue de Cristo; e, enfim, porque, com as esmolas, fazem com que o sacerdote ofereça por eles a vítima divina.
82. Mas há ainda uma razão mais profunda para que se possa dizer que todos os cristãos e especialmente aqueles que assistem ao altar realizem a oferta.
83. Para não dar ensejo a erros perigosos neste importantíssimo argumento, é necessário precisar com exatidão o significado do termo "oferta". A imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis. Colocando, porém, no altar a vítima divina, o sacerdote a apresenta a Deus Pai como oblação à glória da SS. Trindade e para o bem de todas as almas. Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda porque com essa participação também a oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico. Que os fiéis oferecem o sacrifício por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima. Quando, pois, se diz que o povo oferece juntamente com o sacerdote, não se afirma que os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio sacerdote realizam o rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de Deus para isso designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima, embora com o rito externo do sacerdote. É necessário, com efeito, que o rito externo do sacrifício manifeste, por sua natureza, o culto interno; ora, o sacrifício da nova Lei significa aquele obséquio supremo com o qual o próprio principal ofertante, que é Cristo, e com ele e por ele todos os seus membros místicos, honram devidamente a Deus.
84. Com grande alegria da alma fomos informados de que essa doutrina, especialmente nos últimos tempos, pelo intenso estudo da disciplina litúrgica da parte de muitos, foi posta em sua luz; mas não podemos deixar de deplorar vivamente os exageros e os desvios da verdade, que não concordam com os genuínos preceitos da Igreja.
85. Alguns, com efeito, reprovam de todo as missas que se celebram privadamente e sem a assistência do povo, como se se desviassem da forma primitiva do sacrifício; nem falta quem afirme que os sacerdotes não possam oferecer a divina vítima ao mesmo tempo em muitos altares, porque desse modo dissociam a comunidade e põem em perigo a unidade; também não falta quem chegue ao ponto de crêr necessária a confirmação e a ratificação do sacrifício por parte do povo, para que possa ter sua força e eficácia.
86. Erroneamente, nesse caso, se faz apelo à índole social do sacrifício eucarístico. Toda vez, com efeito, que o sacerdote repete o que fez o divino Redentor na última ceia, o sacrifício é realmente consumado e tem sempre e em qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos.(88) E isso se verifica certamente, quer assistam os fiéis – e desejamos e recomendamos que estejam presentes numerosíssimos e fervorosíssimos – quer não assistam, não sendo de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro.
87. Se, pois, daquilo que foi dito resulta claramente que o santo sacrifício da missa é oferecido validamente em nome de Cristo e da Igreja, nem fica privado dos seus frutos sociais, mesmo quando celebrado sem assistência de nenhum acólito todavia, pela dignidade deste mistério, queremos e insistimos, como sempre quis a madre Igreja, que nenhum sacerdote se aproxime do altar sem ter quem o ajude e lhe responda, como prescreve o cân. 813.
2. Os féis oferecem também a si mesmos como vítimas
88. Para que, pois, a oblação, com a qual neste sacrifício os fiéis oferecem a vítima divina ao Pai celeste, tenha o seu efeito pleno, requer-se ainda outra coisa: é necessário que eles se imolem a si mesmos como vítimas.
89. Essa imolação não se limita somente ao sacrifício litúrgico. Quer, com efeito, o príncipe dos apóstolos que pelo fato mesmo de sermos edifïcados como pedras vivas sobre Cristo, possamos como "sacerdócio santo, oferecer vítimas espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo"; (89) e Paulo apóstolo, sem nenhuma distinção de tempo, exorta os cristãos com as seguintes palavras: "Eu vos conjuro, ó irmãos, que ofereçais os vossos corpos como vítima viva, santa, agradável a Deus, como vosso culto racional."(90) Mas quando, sobretudo, os féis participam da ação litúrgica com tanta piedade e atenção que se pode verdadeiramente dizer deles: "dos quais te é conhecida a fé e a devoção"(91) não é possível que a fé de cada um deles não se torne mais alegremente operante por meio da caridade, nem se revigore e brilhe a piedade e não se consagrem todos à conquista da glória divina, desejando com ardor tornarem-se intimamente semelhantes a Jesus Cristo que sofreu acerbas dores, oferecendo-se ao sumo Sacerdote e por meio dele como hóstia espiritual.
90. Isso ensinam ainda as exortações que o bispo endereça em nome da Igreja aos ministros sagrados no dia da sua ordenação: "Compenetrai-vos daquilo que fazeis, imitai o que tratais, de modo que, ao celebrardes o mistério da morte do Senhor, procureis mortificar os vossos membros de seus vícios e da concupiscência".(92) E quase do mesmo modo nos livros litúrgicos são exortados os cristãos que se aproximam do altar a participarem dos sagrados mistérios: "esteja sobre... este altar o culto da inocência, nele se imole a soberba, nele se apague a ira, se debele a luxúria e toda concupiscência, ofereça-se ao invés de rolas o sacrifício da castidade e em lugar de pombas o sacrifício da inocência".(93) Assistindo, pois, ao altar, devemos transformar a nossa alma de modo que se apague radicalmente todo o pecado que está nela, e com toda diligência se restaure e reforce tudo aquilo que, mediante Cristo, dá a vida sobrenatural: e assim nos tornemos, junto com a hóstia imaculada, uma vítima agradável a Deus Pai.
91. A Igreja se esforça com os preceitos da sagrada liturgia por levar a efeito, da maneira mais perfeita, este santíssimo propósito. A isso visam não somente as leituras, as homílias e as outras exortações dos ministros sagrados, e todo o ciclo dos mistérios que nos são recordados durante o ano, mas também as vestes, os ritos sagrados e seu aparato exterior que tem por fim "fazer pensar na majestade de tão grande sacrifício, excitar a mente dos fnéis, por meio dos sinais visíveis de piedade e de religião, à contemplação das altíssimas" coisas encerradas neste sacrifício".(94)
92. Todos os elementos da liturgia tendem, pois, a reproduzir em nossa alma a imagem do divino Redentor através do mistério da cruz, segundo a palavra do apóstolo das gentes: "Estou cravado com Cristo na cruz e vivo, não mais eu, mas é Cristo que vive em mim".(95) Por isso nos tornamos hóstia junto com Cristo para a maior glória do Pai.
93. A isso, pois, devem dirigir e elevar a sua alma os féis que oferecem a vítima divina no sacrifício eucarístico. Se, com efeito, como escreve santo Agostinho, sobre a mesa do Senhor é posto o nosso mistério, isto é, o próprio Cristo Senhor, (96) enquanto a cabeça é símbolo daquela união em virtude da qual somos o corpo de Cristo(97) e membros do seu corpo;(98) se são Roberto Belarmino ensina, segundo o pensamento do doutor de Hipona, que no sacrifício do altar está significado o sacrifício geral com o qual todo o corpo místico de Cristo, isto é, toda a cidade redimida, é oferecida a Deus por meio de Cristo grão-sacerdote, (99) nada se pode encontrar de mais reto e de mais justo que nos imolarmos ao eterno Pai, nós todos, com nossa Cabeça, que sofreu por nós. No sacramento do altar, segundo o mesmo Agostinho, torna-se patente à Igreja que no sacrifício que oferece, ela mesma é oferecida.(100)
94. Considerem, pois, os fiéis a que dignidade os eleva a sagrada água do batismo; e não se contentem em participar do sacrifício eucarístico com a intenção geral que convém aos membros de Cristo e filhos da Igreja, mas livre e intimamente unidos ao sumo sacerdote e ao seu ministro na terra, segundo o espírito da sagrada liturgia, se unam a ele de modo particular no momento da consagração da hóstia divina, e a ofereçam junto com ele quando são pronunciadas aquelas solenes palavras "por ele, com ele, nele, a ti, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos séculos'';(101) à essas palavras o povo responde: Amém. Nem se esqueçam os cristãos de oferecer-se, com a divina Cabeça crucificada, a si mesmos e as suas preocupações, angústias, dores, misérias e necessidades.
3. Os meios de promover a participação dos fiéis
95. São, pois, dignos de louvor aqueles que, com o fim de tornar mais fácil e frutuosa ao povo cristão a participação no sacrifício eucarístico, se esforçam em colocar oportunamente nas mãos do povo o "Missal romano" de modo que os fiéis, unidos ao sacerdote, orem com ele, com as suas próprias palavras e com os mesmos sentimentos da Igreja; como também os que visam a fazer da liturgia, ainda que externamente, uma ação sagrada, na qual têm parte de fato todos os assistentes. Isso pode acontecer de vários modos: quando todo o povo, segundo as normas rituais, responde disciplinadamente às palavras do sacerdote ou executa cânticos correspondentes às várias partes do sacrifício, ou faz uma e outra coisa, ou, enfim, quando, na missa solene, responde alternadamente às orações dos ministros de Jesus Cristo e se associa ao canto litúrgico.
96. Todavia, essas maneiras de participar do sacrifício são para louvar e aconselhar, quando obedecem escrupulosamente aos preceitos da Igreja e às normas dos sagrados ritos. São ordenadas sobretudo para alimentar e fomentar a piedade dos cristãos e a sua íntima união com Cristo e com o seu ministro visível e a estimular aqueles sentimentos e aquelas disposições interiores com as quais é necessário que a nossa alma se assemelhe ao sumo sacerdote do Novo testamento. Não obstante, se bem que isto demonstre no modo exterior, que o sacrifício por sua natureza, enquanto é realizado pelo mediador de Deus e dos homens (102) deve ser considerado obra de todo o corpo místico de Cristo, não são porém necessárias para constituir-lhe o caráter público e comum. Além disso, a missa "dialogada" não pode substituir a missa solene, a qual, ainda que celebrada na presença apenas dos ministros, goza de uma particular dignidade pela majestade dos ritos e aparato das cerimônias; se bem que o seu esplendor e solenidade muito ganhem se, como o prefere a Igreja, o povo numeroso e devoto a ela assistir.
97. Deve-se ainda observar que estão fora da verdade e do caminho da reta razão os que, arrastados por falsas opiniões, tanto valor atribuem a todas essas circunstâncias que não duvidam asseverar que, omitindo-as, a ação sagrada não pode alcançar o fim prefixado.
98. Não poucos fiéis, com efeito, são incapazes de usar o "Missal Romano" ainda quando escrito em língua vulgar; nem todos são capazes de compreender corretamente, como convém, os ritos e as cerimônias litúrgicas. A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza. Por isso vos exortamos, veneráveis irmãos, a que na vossa diocese ou jurisdição eclesiástica reguleis e ordeneis o modo mais adequado mediante o qual o povo consiga participar da ação litúrgica segundo as normas estabelecidas no "Missal Romano" e segundo os preceitos da Sagrada Congregação dos ritos e do Código de direito canônico. Faça-se, pois, tudo com a necessária ordem e decoro, nem seja permitido a ninguém, ainda que sacerdote, usar os sagrados edifícios para experimentações arbitrárias. A esse propósito desejamos ainda, como já existe para a arte e a música sacra, também se constitua nas dioceses, uma comissão para promover o apostolado litúrgico, a fim de que, sob o vosso vigilante cuidado, tudo se faça diligentemente segundo as prescrições da Sé Apostólica.
99. Nas comunidades religiosas observe-se cuidadosamente tudo o que as próprias constituições estabeleceram nesta matéria, e não se introduzam novidades que não tenham sido primeiro aprovadas pelos superiores. Na realidade, ainda que possam ser várias as circunstâncias exteriores da participação do povo no sacrifício eucarístico e nas outras ações litúrgicas, sempre deve procurar-se com todo o cuidado que as almas dos assistentes se unam ao divino Redentor com os mais estreitos laços possíveis e que a sua vida se enriqueça de santidade sempre maior e cresça todo dia a glória do Pai celeste.
III. A comunhão eucarística
100. O augusto sacrifício do altar conclui-se com a comunhão do divino banquete. Mas, como todos sabem, para haver integridade do sacrifício, somente é exigido que o sacerdote se nutra do alimento celeste e não que o povo – coisa aliás sumamente desejável – participe da santa comunhão.
101. Agrada-nos a esse propósito repetir as considerações de Nosso predecessor Bento XIV sobre as definições do concílio de Trento: "Em primeiro lugar... devemos dizer que a nenhum fiel pode vir à mente que as missas privadas, nas quais apenas o sacerdote comunga, percam por isso o valor do verdadeiro, perfeito e íntegro sacrifício instituído por Cristo Senhor e devam, portanto, ser consideradas ilícitas. Nem os fiéis ignoram – pelo menos podem ser facilmente instruídos – que o sacrossanto concílio de Trento, fundando-se na doutrina guardada na ininterrupta tradição da Igreja, condenou a nova e falsa doutrina de Lutero, contraria a esta"(103). Quem disser que as missas nas quais só o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas, e por isso devam ser abolidas, seja anátema".(104)
102. Afastam-se, pois, do caminho da verdade os que recusam celebrar, se o povo cristão não se aproximar da mesa divina; e ainda mais se afastam os que, para sustentar a absoluta necessidade de que os fiéis se nutram do banquete eucarístico juntamente com o sacerdote, afirmam capciosamente que não se trata somente de um sacrifício, mas de sacrifício e banquete de união fraterna, e fazem da santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração.
103. Deve-se ainda uma vez notar que o sacrifício eucarístico consiste essencialmente na imolação incruenta da vítima divina, imolação que é misticamente manifestada pela separação das sagradas espécies e pela sua oblação feita ao Pai Eterno. A santa comunhão pertence à integridade do sacrifício, e à participação nele por meio da recepção do augusto sacramento; e enquanto é absolutamente necessária ao ministro sacrificador, aos fiéis é vivamente recomendável.
104. Como, porém, a Igreja, enquanto mestra de verdade, se esforça com todo o cuidado por guardar a integridade da fé católica, assim, enquanto mãe solícita de seus filhos exorta-os instantemente a participarem com avidez e freqüência deste máximo benefício da nossa religião.
105. Deseja antes de tudo, que os cristãos – especialmente quando não possam facilmente receber de fato o alimento eucarístico – o recebam ao menos em desejo; de sorte que se unam a ele com fé viva, com ânimo reverentemente humilde e confiante na vontade do Redentor divino e com o amor mais ardente.
106. Mas isso não lhe basta. Já que, como acima dissemos, podemos participar do sacrifício também pela comunhão sacramental, por meio do banquete do pão dos anjos, a madre Igreja, para que mais eficazmente "possamos sentir em nós continuamente o fruto da redenção" (105) repete a todos os seus filhos o convite de Cristo Senhor: "tomai e comei... fazei isto em minha memória".(106) Nesse propósito o concílio de Trento, fazendo eco aos desejos de Jesus Cristo e de sua esposa imaculada, insta por "que em todas as missas os fiéis presentes participem não só espiritualmente, mas ainda sacramentalmente da eucaristia, para que lhes venha mais abundante o fruto deste sacrifício".(107) Aliás, para melhor e mais claramente manifestar-se a participação dos fiéis no sacrifício divino por meio da comunhão eucarística, o nosso imortal predecessor Bento XIV louva a devoção daqueles que, não só desejam nutrir-se do alimento celeste durante a assistência ao sacrifício, mas preferem alimentar-se com hóstias consagradas no mesmo sacrifício, se bem que, como ele declara, participemos verdadeira e realmente do sacrifício, mesmo quando se trate de pão eucarístico devidamente consagrado antes. Assim, com efeito, escreve: "Embora participem do mesmo sacrifício não só aqueles aos quais o sacerdote celebrante dá parte da Vítima por ele oferecida na mesma missa, mas também aqueles aos quais o sacerdote dá a eucaristia que se costuma conservar; nem por isso a Igreja proibiu no passado, ou proíbe atualmente, que o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis desta participação". (108)
107. Queira, pois, Deus que todos, espontanea e livremente, correspondam a esses solícitos convites da Igreja; queira Deus que os fiéis, mesmo todos os dias se o puderem, participem não só espiritualmente do sacrifício divino, mas ainda da comunhão do augusto sacramento, recebendo o corpo de Jesus Cristo, oferecido por todos ao Pai Eterno. Estimulai, veneráveis irmãos, nas almas confïadas aos vossos cuidados, a apaixonada e insaciável fome de Jesus Cristo; vosso ensinamento cerque os altares de crianças e de jovens que ofereçam ao Redentor divino a sua inocência e o seu entusiasmo: aproximem-se freqüentemente os cônjuges para que, nutridos na sagrada mesa e graças a ela, possam educar no espírito e na caridade de Jesus Cristo a prole que lhes foi confiada; sejam convidados os operários para que possam receber o alimento eficaz e indefectível que lhes restaura as forças e prepara às suas fadigas a recompensa eterna no céu; aproximai enfim os homens de todas as classes e "compeli-os a entrar",(109) porque este é o pão da vida do qual todos têm necessidade. A Igreja de Jesus Cristo só dispõe desse pão para saciar as aspirações e os desejos das nossas almas, para uni-las intimamente a Jesus Cristo, afim de, por ele, se tornarem "um só corpo"(110) e confraternizarem quantos se sentam à mesma mesa para tomar o remédio da imortalidade (111) com a fração do pão único.
108. É assaz oportuno, ainda – o que aliás é estabelecido pela liturgia – que o povo compareça à santa comunhão depois que o sacerdote tomou no altar o alimento divino; e, como já dissemos, são para louvar aqueles que, assistindo à missa, recebem as hóstias consagradas no mesmo sacrifício, verificando-se destarte que "quantos, participando deste altar, hajamos recebido o sacrossanto corpo e sangue de teu Filho, sejamos cumulados de toda a graça e bênção celeste".(112)
109. Todavia, não faltam nem são raras as causas pelas quais se deva distribuir o pão eucarístico, antes ou depois do sacrifício, como também que se comungue com hóstias anteriormente consagradas, embora se distribua a comunhão em seguida à do sacerdote. Mesmo nesses casos – como aliás já advertimos antes – o povo participa regularmente do sacrifício eucarístico e pode freqüentemente, com maior facilidade, aproximar-se da mesa de vida eterna. Se a Igreja com maternal condescendência se esforça por vir ao encontro das necessidades espirituais dos seus filhos, estes, contudo, de sua parte, não devem facilmente desdenhar o que a sagrada liturgia aconselha e, sempre que não haja motivo plausível em contrário, devem fazer tudo o que mais claramente manifesta no altar a viva unidade do corpo místico.
110. Finda a sagrada ação, regulada pelas normas litúrgicas particulares, não dispensa a ação de graças de quem saboreou o alimento celeste; é, aliás muito conveniente que, recebido o alimento eucarístico e terminados os ritos públicos, se recolha e, intimamente unido com o divino Mestre, se entretenha com ele tanto quanto as circunstâncias lho permitam, em dulcíssimo e salutar colóquio. Afastam-se, pois, do reto caminho da verdade aqueles que, baseando-se nas palavras mais que no sentido, afirmam e ensinam que, terminada a missa, não se deve prolongar a ação de graças, não só porque o sacrifício do altar é por natureza uma ação de graças mas ainda porque isso pertence à piedade privada, pessoal e não ao bem da comunidade. Pelo contrário, a própria natureza do Sacramento requer do cristão que o recebe, que se locuplete com abundantes frutos de santidade.
111. Certamente a pública assembléia da comunidade está dissolvida, mas é necessário que os indivíduos unidos com Cristo não interrompam na sua alma o cântico de louvor, "agradecendo sempre tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo a Deus e Pai".(113) A isso nos exorta ainda a própria liturgia do sacrifício eucarístico, quando nos manda rezar com estas palavras: "Concede, nós te pedimos, render-te contínuas graças (114) e não cessar jamais de louvar-te".(115) Se se deve, pois, sempre agradecer a Deus e jamais cessar de louvá-lo, quem ousaria repreender e desaprovar a Igreja que aconselha aos seus sacerdotes (116) e aos fiéis entreterem-se ao menos um pouco de tempo depois da comunhão em colóquio com o divino Redentor, e que inseriu nos livros litúrgicos oportunas orações enriquecidas de indulgências com as quais os sagrados ministros se possam convenientemente preparar antes de celebrar e de comungar e, acabada a santa missa, manifestar a Deus a sua ação de graças? A sagrada liturgia, longe de sufocar os íntimos sentimentos particulares dos cristãos, os facilita e estimula a que sejam assimilados a Jesus Cristo e por meio dele dirigidos ao Pai; portanto ela mesma exige que aquele que se aproxima da mesa eucarística agradeça devidamente a Deus. O divino Redentor compraz-se em ouvir as nossas orações, falar conosco de coração aberto e oferecer-nos refúgio no seu Coração ardente.
112. Esses atos próprios dos indivíduos são absolutamente necessários para aproveitar-nos mais abundantemente de todos os sobrenaturais tesouros de que é rica a eucaristia e para transmiti-los aos outros segundo as nossas possibilidades, a fim de que Cristo Senhor consiga em todas as almas a plenitude de sua virtude. Por que, pois, veneráveis irmãos; não louvaremos aqueles que, recebido o alimento eucarístico, ainda depois que se dissolveu oficialmente a assembléia cristã, se demoram em íntima familiaridade com o divino Redentor, não só para tratar docemente com ele, mas ainda para agradecê-lo, louvá-lo e especialmente para pedir-lhe ajuda, e, assim, afastar de sua alma tudo quanto possa diminuir a eficácia do sacramento, ao passo que se aproveita de tudo o que logra favorecer a atualíssima ação de Jesus? Antes, nós os exortamos a fazê-lo, de modo particular, quer traduzindo na prática os propósitos concebidos e exercitando as virtudes cristãs, quer adaptando às próprias necessidades quanto tenham recebido com real liberalidade. Falava deveras segundo os preceitos e espírito da liturgia o autor do áureo livrinho a "Imitação de Cristo", quando aconselhava a quem tivesse comungado: "Recolhe-te em segredo e goza de teu Deus para que possuas aquele que o mundo inteiro não poderá tirar-te".(117)
113. Assim, pois, intimamente unidos a Cristo, procuremos todos mergulhar em sua santíssima alma e unir-nos com ele para participar dos atos de adoração com os quais ele oferece à Trindade Augusta a homenagem mais grata e aceita; aos atos de louvor e de ação de graças que ele oferece ao Pai Eterno e a que faz eco o cântico do céu e da terra: "Bendigam ao Senhor todas as suas obras"; (118) participando dos atos, imploremos a ajuda celeste no momento mais oportuno para pedir e obter socorro em nome de Cristo (119) mas, sobretudo, ofereçamo-nos e imolemo-nos como vítimas clamando: "Faze que sejamos oferta eterna a ti",(120)
114. O divino Redentor repete incessantemente o seu insistente convite: "Permanecei em mim".(121) por meio do sacramento da eucaristia, Cristo fica em nós e nós ficamos em Cristo; e como Cristo, permanecendo em nós, vive e opera, assim é necessário que nós, permanecendo em Cristo, por ele vivamos e operemos.
IV. Adoração da eucaristia
115. Contém o alimento eucarístico, como todos sabem, "verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo"; (122) não é de admirar, pois, se a Igreja, desde as origens adorou o corpo de Cristo sob as espécies eucarísticas, como se vê dos ritos mesmos do augusto sacrifício, com os quais se prescreve aos sagrados ministros que adorem o santíssimo sacramento com genuflexões e inclinações profundas.
116. Os sagrados concílios ensinam que, desde o início de sua vida, foi transmitido à Igreja que se deve honrar "com uma única adoração o Verbo Deus encarnado e a sua própria carne" (123); e santo Agostinho afirma: "Ninguém come esta carne sem tê-la primeiro adorado", acrescentando que não só não pecamos adorando, antes pecamos não adorando.(124)
117. Desses princípios doutrinários nasceu e se foi pouco a pouco desenvolvendo o culto eucarístico da adoração, distinto do santo sacrifício. A conservação das sagradas espécies para os enfermos e para todos os que viessem a encontrar-se em perigo de morte, introduziu o louvável uso de adorar este alimento celeste conservado nas igrejas. Esse culto de adoração tem um válido e sólido motivo. A eucaristia, de fato, é sacrifício e é, também, sacramento; e difere dos outros sacramentos enquanto não só produz a graça, mas ainda contém de modo permanente o próprio autor da graça. Quando, por isso, a Igreja nos manda adorar a Cristo sob os véus eucarísticos e suplicar-lhe os dons sobrenaturais e terrenos de que temos sempre necessidade, manifesta a fé viva com a qual crê presente sob aqueles véus o seu Esposo divino, manifesta-lhe o seu reconhecimento e goza da sua íntima familiaridade.
118. Nesse culto, a Igreja, no decurso dos tempos, introduziu várias formas cada dia certamente mais belas e salutares, como, por exemplo: devotas e mesmo cotidianas visitas ao divino tabernáculo; bênção do santíssimo sacramento; procissões solenes por vilas e cidades, especialmente por ocasião dos congressos eucarísticos, e adoração do augusto sacramento publicamente exposto, as quais algumas vezes duram pouco e outras vezes se prolongam por horas inteiras e até, por quarenta horas; em alguns lugares são estabelecidas durante o ano todo, por turnos, em cada Igreja; em outros lugares se continuam de dia e de noite ao cuidado de comunidades religiosas e nelas freqüentemente tomam parte também os fiéis.
119. Esses exercícios de devoção contribuíram de modo admirável para a fé e a vida sobrenatural da Igreja militante na terra, a qual, assim fazendo, se torna, de certo modo, eco da Igreja triunfante que eternamente canta o hino de louvor a Deus e ao Cordeiro "que foi imolado".(125) Por isso, a Igreja não só aprovou mas fez seus e confirmou com a sua autoridade estes exercícios devotos propagados em toda a parte no correr dos séculos.(126) Eles fluem do espírito da sagrada liturgia; e por isso, desde que sejam cumpridos com o decoro, a fé e a devoção requeridas pelos sagrados ritos e pelas prescrições da Igreja, certamente ajudam muitíssimo a viver a vida litúrgica.
120. Nem se diga que tal culto eucarístico provoca uma errônea confusão entre o Cristo histórico, como dizem, que viveu na terra, o Cristo presente no augusto sacramento do altar, e o Cristo triunfante no céu e dispensador de graças; deve-se, pelo contrário, afirmar que, desse modo, os fiéis testemunham e manifestam solenemente a fé da Igreja, com a qual se crê que um e idêntico é o Verbo de Deus e o Filho de Maria virgem, que sofreu na cruz, que está presente e oculto na eucaristia, e que reina no céu. Assim afirma são João Crisóstomo: "Quando vês a ti; apresentado (o corpo de Cristo) dize a ti mesmo: por este corpo não sou mais terra e pó, não mais escravo, porém livre: por isso, espero alcançar o céu e os bens que aí se encontram, a vida imortal, a herança dos anjos, a companhia de Cristo; este corpo transpassado pelos cravos, dilacerado pelos açoites, não foi presa da morte... Este é aquele corpo que foi ensangüentado, transpassado pela lança, do qual brotaram duas fontes salutares: uma de sangue, outra de água... Este corpo foi-nos dado para o possuir e para o comer, e isso foi conseqüência de intenso amor".(127)
121. De modo particular, ademais, é muito de louvar-se o costume segundo o qual muitos exercícios de piedade entrados no uso do povo cristão, se encerram com o rito da bênção eucarística. Nada melhor nem mais vantajoso que o gesto com o qual o sacerdote, levantando ao céu o pão dos anjos, em presença da multidão cristã ajoelhada, e movendo-o em forma de cruz, invoca o Pai Celeste para que se digne volver benignamente os olhos a seu Filho crucificado por nosso amor, e, graças a ele, que quis ser nosso Redentor e irmão, difunda por sua intervenção, os seus dons celestes sobre os remidos pelo sangue imaculado do Cordeiro.(128)
122. Procurai, pois, veneráveis irmãos, com a vossa habitual e grande diligência, que os templos edificados pela fé e pela piedade das gerações cristãs no decurso dos séculos como um perene hino de glória a Deus onipotente e como digna habitação do nosso Redentor oculto sob as espécies eucarísticas, sejam o mais possível abertos aos sempre mais numerosos fiéis, para que eles, recolhidos aos pés de nosso Salvador, ouçam o seu dulcíssimo convite: "Vinde a mim, vós todos que estais atribulados e oprimidos, e eu vos aliviarei".(129) Os templos sejam em verdade a casa de Deus, na qual quem entra para pedir favores se alegre de tudo conseguir (130) e alcance a consolação celeste.
123. Somente assim poderá acontecer que toda a família humana se pacifique na ordem e, com inteligência e coração concordes, cante o hino da esperança e do amor: "Bom Pastor, pão verdadeiro – ó Jesus, compadece-te de nós – apascenta-nos, guarda-nos, – faze-nos contemplar a felicidade na terra dos vivos".(131)
TERCEIRA PARTE
O OFÍCIO DIVINO E O ANO LITÚRGICO
I. O ofício divino
124. O ideal da vida cristã consiste em se unir cada um intimamente a Deus. Por isso, o culto que a Igreja rende ao Eterno e que se sintetiza no sacrifício eucarístico e no uso dos sacramentos é ordenado e disposto, de modo que, com o ofício divino, se estenda a todas as horas do dia, às semanas, a todo o curso do ano, a todos os tempos e a todas as condições da vida humana.
125. Tendo o divino Mestre recomendado: "É necessário rezar sempre, sem esmorecer",(132) a Igreja, obedecendo fielmente a essa recomendação, não cessa de rezar e exortar-nos com o apóstolo das gentes: "Por seu intermédio (de Jesus) ofereçamos sempre a Deus o sacrifício de louvor".(133)
126. A oração pública e coletiva endereçada a Deus por todos juntos, realizava-se na antiguidade somente em certos dias e outros momentos do dia. Contudo rezava-se não só nas reuniões públicas, mas ainda nas casas particulares e, às vezes, com os vizinhos e amigos. Bem cedo, porém, nas várias partes da cristandade, introduziu-se o uso de reservar à oração tempos particulares, por exemplo, a última hora do dia, quando o sol se esconde e se acende o lampadário; ou à primeira hora, quando termina a noite, isto é, depois do canto do galo e ao surgir do sol. Outros momentos do dia são indicados como mais próprios para a oração pela Sagrada Escritura, pelo costume tradicional hebráico e práticas cotidianas. Segundo os Atos dos Apóstolos, os discípulos de Jesus Cristo reuniam-se para orar na terceira hora, quando "ficaram todos repletos do Espírito Santo" ;(134) o príncipe dos apóstolos, antes de tomar alimento, "subiu à parte superior da casa para rezar por volta da hora sexta";(135) Pedro e João "subiam ao templo para a oração na hora nona"; (136) e Paulo e Silas "louvavam a Deus à meia noite".(137)
127. Essas várias orações especialmente por iniciativa e obra dos monges e dos ascetas, aperfeiçoaram-se cada dia mais, e pouco a pouco foram introduzidas no uso da sagrada liturgia por autoridade da Igreja.
128. O Ofício divino é, pois, a oração do corpo místico de Cristo, dedicada a Deus em nome de todos os cristãos e em seu beneficio, feita pelos sacerdotes, por outros ministros da Igreja e pelos religiosos delegados da própria Igreja para isso.
129. Qual deva ser o caráter e eficácia desse louvor divino, deduz-se das palavras que a Igreja sugere dizer antes de iniciar-se a oração do Ofício, prescrevendo que sejam recitadas "digna, atenta e devotamente".
130. Assumindo a natureza humana, o Verbo de Deus introduziu no exílio terreno o hino que se canta no céu por toda a eternidade. Une a si toda a comunidade humana e a associa no canto deste hino de louvores. Confessemos com humildade que "não sabemos o que devemos convenientemente pedir, mas o próprio Espírito reza por nós com gemidos inenarráveis". (138) E ainda Cristo, por meio do seu Espírito, invoca em nós o Pai. "Deus não poderia fazer aos homens um dom maior... reza (Jesus) por nós como nosso sacerdote; reza em nós como nossa cabeça; é invocado por nós como nosso Deus... reconheçamos, pois, as nossas vozes nele e a sua voz em nós... Rezamos a ele como a Deus, ele reza como servo: lá o Criador, aqui um ser criado, enquanto, sem sofrer mudança, tomou uma natureza mutável, fazendo de nós um só homem com ele: cabeça e corpo".(139)
131. A excelsa dignidade dessa oração da Igreja deve corresponder a intensa devoção da nossa alma e, visto que a voz do orante repete os poemas escritos por inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos louvores e ações de graças: "Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde com a nossa voz". (140) Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus para que nos consagremos, nós e todas as nossas ações, a ele, unidos com Jesus Cristo.
132. Disso depende certamente, em não pequena parte, a eficácia das orações, as quais, se não se dirigem ao próprio Verbo feito homem, concluem com estas palavras: "Por nosso Senhor Jesus Cristo" que, mediador entre nós e Deus, mostra ao Pai celeste os seus estigmas gloriosos, "sempre viva para interceder por nós".(141)
133. Os salmos, como todos sabem, constituem parte principal do Oficio divino. Eles abrangem todo o curso do dia e lhe dão um contato e um ornamento de santidade. Cassiodoro disse belamente a propósito dos salmos distribuídos no Oficio divino do seu tempo: "Eles... com júbilo matutino nos tornam favorável o dia que está para começar, santificam a primeira hora do dia, consagram a terceira hora, alegram a sexta na fração do pão, assinalam, à nona, o fim do jejum, concluem o término do dia e impedem o nosso espírito de obscurecer-se ao avizinhar-se a noite".(142)
134. Eles lembram as verdades reveladas por Deus ao povo eleito, às vezes terríveis, às vezes impregnadas de suavíssima doçura; repetem e acendem a esperança no Libertador prometido que outrora era animada com o canto em torno da lareira doméstica e na própria majestade do templo; põem em maravilhosa luz a profetizada glória de Jesus Cristo e o seu sumo e eterno poder, a sua vinda e o seu aniquilamento neste exílio terreno, a sua dignidade real e o seu poder sacerdotal, as suas benéficas fadigas e o seu sangue derramado pela nossa redenção. Exprimem igualmente a alegria das nossas almas, a tristeza, a esperança, o temor, a correspondência do amor e o abandono a Deus qual mística ascensão para os divinos tabernáculos.
135. "O salmo... é a bênção do povo, o louvor de Deus, o elogio do povo, o aplauso de todos, a linguagem geral, a voz da Igreja, a harmoniosa confissão de fé, o pleno devotamento à autoridade, a alegria da liberdade, o grito de entusiasmo, o eco da alegria."(143)
136. Na antiguidade, a assistência dos fiéis a essas orações do Ofício era maior; mas gradativamente diminuiu como dissemos; e como acabamos de dizer, a sua recitação atualmente é reservada ao clero e aos religiosos. Em rigor de lei, nada é prescrito aos leigos nesta matéria, mas é muito de desejar que eles tomem parte ativa no canto ou na recitação do Oficio de Vésperas nos dias festivos, na própria paróquia. Recomendamos vivamente, veneráveis irmãos, a vós e aos vossos féis que não cesse este piedoso hábito e que, se possível, se ponha em vigor onde tiver desaparecido. Isso acontecerá certamente com frutos salutares se as Vésperas forem cantadas não só digna e decorosamente mas de maneira que nutra suavemente de vários modos a piedade dos fiéis. Seja sagrada a observância dos dias festivos que devem ser dedicados e consagrados a Deus de modo particular; e; sobretudo, do domingo, que os apóstolos, instruídos pelo Espírito Santo, substituíram ao sábado. Se foi ordenado aos judeus: "Trabalhareis durante seis dias; no sétimo dia que é sábado, repouso santo do Senhor, quem trabalhar neste dia será condenado à morte";(144) como não terão a morte espiritual aqueles cristãos que fazem obra servil nos dias festivos e durante o repouso festivo não se dedicam à piedade nem à religião, mas se abandonam demasiadamente aos atrativos deste século? O domingo e os dias festivos devem ser consagrados ao culto divino com o qual se adora a Deus e a alma se nutre do alimento celeste; e se bem que a Igreja prescreva somente que os fiéis devam abster-se do trabalho servil e devam assistir ao sacrifício eucarístico, e não dê nenhum preceito para o culto vespertino, note-se que, além dos preceitos existem também suas insistentes recomendações e desejos, o que ainda mais é exigido pela necessidade que todos têm de tornar propício o Senhor para impetrar benefícios. Contrista-se profundamente nossa alma ao ver como em nossos tempos o povo cristão passa a tarde do dia festivo: enchem-se os lugares de espetáculos públicos e de jogos, enquanto as igrejas são menos freqüentadas do que conviria. Mas é necessário, sem dúvida, que todos vão aos nossos templos para ser instruídos na verdade da fé "católica, para cantar os louvores de Deus, para serem enriquecidos pelo sacerdote com a bênção eucarística e munidos do auxílio celeste contra a adversidade da vida presente. Procurem todos aprender as fórmulas que se cantam nas Vésperas e penetrar-lhes o íntimo sentido; sob o influxo dessas orações experimentarão aquilo que santo Agostinho afirmava de si mesmo: "Quanto chorei entre hinos e cânticos, vivamente comovido pelo canto suave da tua Igreja! Aquelas vozes ressoavam nos meus ouvidos, instilavam a verdade no meu coração, em mim ardiam sentimentos de devoção, e as lágrimas corriam, fazendo-me bem".(145)
II. Ciclo dos mistérios do ano litúrgico
137. Durante todo o correr do ano a celebração do sacrifício eucarístico e o Oficio divino se desenvolvem sobretudo em torno da pessoa de Jesus Cristo e se organizam de modo tão harmonioso e adequado que faz dominar o nosso Salvador nos seus mistérios de humilhação, de redenção e de triunfo.
138. Evocando esses mistérios de Jesus Cristo, a sagrada liturgia visa a fazer deles participar todos os crentes de modo que a divina Cabeça do corpo místico viva na plenitude da sua santidade nos membros. Sejam as almas dos cristãos como altares nos quais se repetem e se reavivam as várias fases do sacrifício que o sumo Sacerdote imola; isto é, as dores e as lágrimas que lavam e expiam os pecados; a oração dirigida a Deus que se eleva até o céu; a própria imolação feita com ânimo pronto, generoso e solícito e, enfim, a íntima união com a qual nos abandonamos, nós e nossas coisas a Deus e nele repousamos "sendo o essencial da religião imitar aquele que adoras". (146)
139. Conforme esses modos e motivos com os quais a liturgia propõe à nossa meditação em tempos fixos a vida de Jesus Cristo, a Igreja nos mostra os exemplos que devemos imitar e os tesouros de santidade que fazemos nossos, porque é necessário crer com a mente aquilo que se canta com a boca, e traduzir na prática dos costumes particulares e públicos o que se crê com a mente.
140. Com efeito, no tempo do advento, excita em nós a consciência dos pecados miseramente cometidos; e nos exorta a fim de que, refreando os desejos com a mortificação voluntária do corpo, nos recolhamos em pia meditação e sejamos impelidos pelo desejo de voltar a Deus que, só ele, pode com a sua graça libertar-nos da mancha dos pecados e dos males que nos afligem.
141. Na ocorrência do Natal do Redentor parece quase reconduzir-nos à gruta de Belém para que aí aprendamos que é absolutamente necessário nascer de novo e reformar-nos radicalmente, o que só é possível quando nos unimos íntima e vitalmente ao Verbo de Deus feito homem e nos tornamos participantes da sua divina natureza à qual fomos elevados.
142. Com a solenidade da Epifania, recordando a vocação das gentes à fé cristã, quer que agradeçamos cada dia ao Senhor por tão grande benefício, desejemos com grande fé o Deus vivo, compreendamos com devoção e profundamente as coisas sobrenaturais e amemos o silêncio e a meditação para poder facilmente compreender e conseguir os dons celestes.
143. Nos dias da Septuagésima e da Quaresma, a Igreja, nossa mãe, multiplica os seus cuidados para que diligencie cada qual por se compenetrar da sua miséria, ativamente se incite à emenda dos costumes, e deteste de modo particular os pecados, suprimindo-os com a oração e a penitência, já que a assídua oração e a penitência dos pecados cometidos nos obtêm o auxílio divino sem o qual é inútil e estéril toda obra nossa. No tempo sagrado em que a liturgia nos propõe as atrozes dores de Jesus Cristo, a Igreja nos convida ao Calvário, a seguir as pegadas sanguinolentas do divino Redentor a fim de que de bom grado carreguemos a cruz com ele, tenhamos em nós os mesmos sentimentos de expiação e de propiciação e juntos morramos todos com ele.
144. Na solenidade pascal, que comemora o triunfo de Cristo, sente-se a nossa alma penetrada de íntima alegria, e devemos oportunamente pensar que também nós, junto com o Redentor, surgiremos, de uma vida fria e inerte para uma vida mais santa e fervorosa, a Deus oferecendo-nos todos, com generosidade e esquecendo-nos desta mísera terra para só aspirar ao céu: "Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas supernas, aspirai às coisas do alto".(147)
145. No tempo de Pentecostes, finalmente, exorta nossa Igreja, com os seus preceitos e a sua obra, a oferecer-nos docilmente à ação do Espírito Santo, o qual quer acender em nossos corações a divina caridade para progredirmos na virtude com maior empenho, e assim nos santificar, como são santos Cristo Senhor e o seu Pai Celeste.
146. Todo o ano litúrgico, assim, pode dizer-se um magnífico hino de louvor que a família cristã dirige ao Pai celeste por meio de Jesus, seu eterno mediador; mas requer de nós ainda um cuidado diligente e bem ordenado para conhecer e louvar sempre mais o nosso Redentor; um esforço intenso e eficaz, um adestramento incansável para imitar os seus mistérios, entrar voluntariamente no caminho de suas dores, e participar, finalmente, de sua glória e eterna beatitude.
147. De quanto foi exposto aparece claramente, veneráveis irmãos, quanto estejam longe do verdadeiro e genuíno conceito da liturgia escritores modernos, que, enganados por uma pretensa disciplina mística mais alta, ousam afirmar que não nos devemos concentrar no Cristo histórico mas no Cristo "pneumático e glorificado"; e não duvidam asseverar que na piedade dos fiéis se tenha verificado certa mudança, pela qual Cristo foi como que destronado com o apegamento de Cristo glorificado que vive e reina nos séculos dos séculos, assentado à direita do Pai, enquanto em seu lugar foi colocado o Cristo da vida terrena. Alguns, por isso, chegam ao ponto de querer tirar das Igrejas as imagens do divino Redentor que sofre na cruz.
148. Mas essas falsas opiniões são de todo contrárias à sagrada doutrina tradicional. "Crê em Cristo nascido na carne – diz santo Agostinho – e chegarás a Cristo nascido de Deus, Deus de Deus".(148) A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: "Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos". (149) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.
149. E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz.(150)
150. Assim o ano litúrgico, que a piedade da Igreja alimenta e acompanha, não é uma fria e inerte representação de fatos que pertencem ao passado, ou uma simples e nua evocação da realidade de outros tempos. É, antes, o próprio Cristo, que vive sempre na sua Igreja e que prossegue o caminho de imensa misericórdia por ele iniciado, piedosamente, nesta vida mortal, quando passou fazendo o bem!(151) com o fim de colocar as almas humanas em contato com os seus mistérios e fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente presentes e operantes, não de modo incerto e nebuloso, de que falam alguns escritores recentes, mas porque, como nos ensina a doutrina católica e segundo a sentença dos doutores da Igreja, são exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte de graça divina pelos méritos e intercessão do Redentor; e porque perduram em nós no seu efeito, sendo cada um deles, de modo consentâneo à própria índole, a causa da nossa salvação. Acresce que a pia Madre Igreja, enquanto propôs à nossa contemplação os mistérios de Cristo, invoca com as suas preces os dons sobrenaturais pelos quais os seus filhos se compenetram do espírito desses mistério por virtude de Cristo. Por influxo e virtude dele podemos, com a colaboração da nossa vontade, assimilar a força vital como ramos da árvore, como membros da cabeça, e progressiva e laboriosamente transformar-nos "segundo a medida da idade plena de Cristo".(152)
III. As festas dos santos
151. No decurso do ano litúrgico relembram-se não só os mistérios de Jesus Cristo, mas ainda as festas dos santos, nas quais, se bem que se trate de uma ordem inferior e subordinada, a Igreja tem sempre a preocupação de propor aos fiéis exemplos de santidade que os levem a adornar-se das mesmas virtudes do Divino Redentor. (152). É necessário, com efeito, que imitemos as virtudes dos santos, nas quais brilha, de modo vário, a própria virtude de Cristo, porque dele foram imitadores, visto que, em alguns fulgiu o zelo do apostolado; em outros se demonstrou a fortaleza dos nossos heróis até a efusão do sangue; em outros brilhou a constante vigilância na espera do Redentor; em outros resplandeceu o candor virginal da alma e a modesta doçura da humildade cristã; em todos arde uma fervidíssima caridade para com Deus e para com o próximo. A liturgia põe diante de nossos olhos todos esses belos ornamentos de santidade, para que salutarmente os olhemos e para que "nós que gozamos dos seus méritos sejamos inflamados pelos seus exemplos". (153) É necessário, pois, conservar "a inocência na simplicidade", a concórdia na caridade, a modéstia na humildade, a diligência no governo, a atenção em ajudar o que sofre, a misericórdia em cuidar dos pobres, a constância em defender a verdade, a justiça na severidade da disciplina, para que não falte em nós nenhuma de todas as virtudes que nos foram propostas para exemplo. Essas são as pegadas que os santos, na sua volta à pátria nos deixaram, para, palmilhando os seus caminhos, podermos segui-los na bem-aventurança... (154) E para salutarmente impressionar também os nossos sentidos, quer a Igreja que em nossos templos estejam expostas as imagens dos santos, sempre, porém, com o mesmo fim, isto é, que "imitemos as virtudes daqueles cujas imagens veneramos".(155)
153. Mas há ainda outro motivo no culto do povo cristão aos santos: o de implorar a sua ajuda, e o de "ser amparados pelo patrocínio daqueles em cujo louvor nos deleitamos". (156) Disso facilmente se deduz o porquê das numerosas fórmulas de oração que a Igreja nas propõe para invocar a proteção dos santos.
154. Entre os santos há um culto proeminente a Maria virgem Mãe de Deus. A sua vida, pela missão comada por Deus, está estreitamente inserida nos mistérios de Jesus Cristo e ninguém, certamente, mais do que ela, seguiu tão de perto e com maior eficácia, as pegadas do Verbo encarnado, ninguém goza de maior graça e poder junto do coração sacratíssimo do Filho de Deus e, através do Filho, junto do Pai celeste ela é mais santa do que os querubins e os serafins e, sem nenhuma comparação, mais gloriosa do que todos os outros santos, porque é "cheia de graça", (157 ) Mãe de Deus, e por nos haver dado, com o seu parto feliz, o Redentor. A ela, que é "mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa" recorramos todos nós "gemendo e chorando neste vale de lágrimas".(158) À sua proteção, entreguemo-nos confiantes, nós e todas as nossas coisas. Ela se tornou nossa mãe quando o divino Redentor cumpria o sacrifício de si mesmo, e por isso, ainda por esse título, somos seus filhos. Ela nos ensina todas as virtudes, dá-nos seu Filho e, com ele, todos os auxílios que nos são necessários, porque Deus "quis que tudo nos viesse por meio de Maria".(159)
155. Por esse caminho litúrgico que nos é, cada ano, aberto de novo, sob a ação santificadora da Igreja, confortados com os auxílios e os exemplos dos santos, sobretudo da imaculada virgem Maria, "aproximemo-nos com sincero coração, com plenitude de fé, purificado o coração da consciência de culpa e lavado o corpo com água pura", (160) do "grande Sacerdote",(161) para viver e sentir com ele e penetrar por seu intermédio "até além do véu" (162) e aí honrar o Pai celeste por toda a eternidade.
156. Tal é a essência e a razão de ser da sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, afim de ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
QUARTA PARTE
DIRETRIZES PASTORAIS
I.. Não se descuidem as outras formas de piedade
157. Para afastar da Igreja os erros e os exageros de que acima falamos e para que possam os fiéis, guiados por mais seguras normas, praticar o apostolado litúrgico com abundantes frutos, achamos oportuno, veneráveis irmãos, acrescentar alguma coisa para a prática da doutrina exposta.
158. Tratando da genuína piedade, afirmamos que entre a liturgia e os outros atos de religião – desde que sejam retamente ordenados e tendam ao justo fim – não pode haver verdadeiro contraste; há, até, alguns exercícios de piedade que a Igreja recomenda grandemente ao clero e aos religiosos.
159. Ora, desejamos que também o povo cristão não fique alheio destes exercícios. Estes são – para falar apenas dos principais – a meditação de assuntos espirituais, o exame de consciência, os retiros espirituais, instituídos para a reflexão mais intensa das verdades eternas, a visita ao santíssimo sacramento e as orações particulares em honra da bem-aventurada virgem Maria, entre as quais excele, como todos sabem, o rosário.(163)
160. A essas múltiplas formas de piedade não pode ser estranha a inspiração e a ação do Espírito Santo; elas, com efeito – se bem que de várias maneiras – visam todas a voltar e dirigir para Deus as nossas almas, porque as purificam dos pecados, as dispõem à conquista da virtude e as estimulam à verdadeira piedade, habituando-as à meditação das verdades eternas, e tornando-as mais capazes da contemplação dos mistérios da natureza humana e divina de Cristo. Além disso, nutrindo intensamente nos fiéis a vida espiritual, preparam-nos para participar das sagradas funções com fruto maior, e evitam o perigo de se reduzirem as orações litúrgicas a um ritualismo vão.
161. Não vos canseis, pois, veneráveis irmãos, no vosso zelo pastoral, recomendando e encorajando esses exercícios de piedade, dos quais brotam sem dúvida para o povo que vos foi confiado frutos salutares. Sobretudo, não permitais – como alguns pretendem, ou com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos – que as Igrejas sejam fechadas durante as horas não destinadas às funções públicas, como já acontece em algumas regiões; que a adoração e a visita ao santíssimo sacramento sejam menosprezadas; que se desaconselhe a confissão dos pecados feita com o fim único de devoção; que se desleixe, especialmente entre a juventude, o culto da virgem Mãe de Deus, que, no dizer dos santos, é sinal de predestinação. São esses frutos envenenados, sumamente nocivos à piedade cristã, que repontam de ramos infectos de uma árvore sã; é necessário, por isso, extirpá-los, para que a seiva da árvore possa nutrir somente frutos agradáveis e ótimos.
162. Visto que as opiniões manifestadas por alguns a propósito da confissão freqüente são de todo alheias ao Espírito de Cristo e de sua esposa imaculada, e verdadeiramente funestas para a vida espiritual, recordamos o que a propósito escrevemos, com pesar, na encíclica "Mystici Corporis"; e insistimos de novo para que proponhais à séria meditação e à docil atuação dos vossos rebanhos e especialmente dos candidatos ao sacerdócio e do jovem clero, quanto ali vos dissemos em graves palavras.
163. Zelai, pois, de modo particular, para que muitíssimos, não só do clero mas ainda do laicato, e especialmente os pertencentes aos sodalícios religiosos e às fileiras da Ação católica, tomem parte nos retiros mensais e nos exercícios espirituais realizados em determinados dias para incrementar a piedade. Como dissemos acima, esses exercícios espirituais são utilíssimos e até necessários, para instilar nas almas a genuína piedade, e para formá-las à santidade, de modo que possam haurir da sagrada liturgia benefícios mais eficazes e abundantes.
164. Quanto aos vários modos sob os quais se costuma praticar esses exercícios, fique bem conhecido e claro a todos, que na Igreja terrena, como na celeste, há "muitas moradas"; (164) e que a ascética não pode ser monopólio de ninguém. Um é o Espírito, o qual, porém, "sopra onde quer";(165) e com diversos dons e por diversas vias dirige as almas por ele iluminadas à consecução da santidade. A sua liberdade e a ação sobrenatural do Espírito Santo nelas seja coisa sacrossanta, que a ninguém é lícito, a nenhum título, perturbar e conculcar.
165. É sabido, entretanto, que os exercícios espirituais de santo Inácio foram plenamente aprovados e insistentemente recomendados pelos nossos predecessores por causa de sua admirável eficácia; e nós, também, pela mesma razão, os aprovamos e recomendamos, como presentemente com prazer o tornamos a fazer.
166. É absolutamente necessário, porém, que a inspiração a seguir e praticar determinados exercícios de piedade, venha do Pai das luzes, do qual provém todo bem, e todo dom perfeito;(166) e disso será índice a eficácia com a qual servirão para que o culto divino seja sempre mais amado e amplamente promovido, e os fiéis sejam solicitados por um mais intenso desejo à participação dos sacramentos e à devida honra e respeito de todas as coisas sagradas. Se eles, ao contrário, se transformassem em obstáculo ou se revelassem em contraste com os princípios e normas do culto divino, então sem dúvida se deveria tê-los como não ordenados por pensamento reto, nem guiados por zelo iluminado.
167. Além disso, há outros exercícios de piedade que, se bem não pertençam a rigor e de direito à sagrada liturgia, se revestem de particular dignidade e importância, de modo que são tidos por insertos no quadro litúrgico, e gozam de repetidas aprovações e louvores desta Sé Apostólica e dos bispos. Entre esses se devem enumerar as orações que se costuma fazer durante o mês de maio em honra da virgem Mãe de Deus, ou durante o mês de junho em honra do sacratíssimo coração de Jesus, os tríduos e novenas, a "Via sacra" e outros semelhantes.
168. Essas piedosas práticas, que exercitam o povo cristão a uma assídua freqüência do sacramento da penitência e a uma devota participação no sacrifício eucarístico e na mesa divina, como também à meditação dos mistérios da nossa Redenção e à imitação dos grandes exemplos dos santos, por isso mesmo contribuem com fruto salutar para a nossa participação no culto litúrgico.
169. Por isso faria obra perniciosa e de todo errônea quem ousasse temerariamente assumir a reforma desses exercícios de piedade, para enquadrá-los apenas nos esquemas litúrgicos. É necessário, todavia, que o espírito da sagrada liturgia e os seus preceitos influam beneficamente neles, para evitar que aí se introduza algo de inepto ou de indigno ao decoro da casa de Deus, ou seja em detrimento das sagradas funções e contrário à sã piedade.
170. Cuidai, pois, veneráveis irmãos, para que essa pura e genuína piedade prospere sob os vossos olhos, e floresça sempre mais. Não vos canseis, sobretudo, de inculcar a cada um que a vida cristã não consiste na multiplicidade e variedade das orações e dos exercícios de piedade, mas acima de tudo em que eles contribuam realmente para o progresso espiritual dos fiéis e ao incremento de toda a Igreja, porquanto o Pai Eterno "nos elegeu nele (Cristo) antes da fundação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença". (167) Devem, pois, tender todas as nossas orações e todas as nossas práticas devotas a dirigir todos os nossos recursos espirituais à realização desse supremo e nobilíssimo fim.
II. Espírito litúrgico e apostolado litúrgico
171. Nós vos exortamos instantemente, veneráveis irmãos, a que, desfeitos os erros e a falsidade, e proibido tudo o que está fora da verdade e da ordem, promovais as iniciativas que dão ao povo um mais profundo conhecimento da sagrada liturgia, de modo que ele possa mais adequada e mais facilmente participar dos ritos divinos, com disposição verdadeiramente cristã.
172. É necessário, antes de tudo, empenhar-vos por que todos obedeçam com a devida reverência e fé aos decretos publicados pelo concílio de Trento, pelos pontífices romanos, pela Congregação dos ritos, e a todas as disposições dos livros litúrgicos naquilo que respeita à ação externa do culto público.
173. Em todas as coisas da liturgia devem brilhar sobretudo estes três ornamentos de que fala o nosso predecessor Pio X: a santidade, que rejeita toda influência profana; a nobreza das imagens e das formas, às quais serve toda arte genuína e superior; a universalidade, enfim, a qual – conservando os legítimos usos e costumes regionais – exprime a unidade católica da Igreja.(168)
174. Desejamos e recomendamos calorosamente, ainda uma vez, o decoro dos sagrados edifícios e altares. Sinta-se cada um animado pela palavra divina: "O zelo de tua casa me devora"(169) e se empenhe segundo as suas forças para que tudo, quer nos sagrados edifícios, quer nas vestes e nas alfaias litúrgicas, ainda que não brilhe por excessiva riqueza e esplendor, seja, todavia, apropriado e limpo, estando tudo consagrado à divina Majestade. Se já reprovamos, acima, o modo não reto de proceder daqueles que, a pretexto de restaurar o antigo, querem excluir dos templos as imagens sagradas temos que é nossa obrigação repreender a piedade não bem formada daqueles que, nas Igrejas e em seus próprios altares, propõem à veneração, sem justo motivo, múltiplos simulacros e efígies; daqueles que expõem relíquias não reconhecidas pela legítima autoridade; daqueles, enfim, que insistem em coisas particulares e de pouca importância, enquanto descuram as principais e necessárias, e, assim, tornam ridícula a religião, e envilecem a gravidade do culto.
175. Lembramos ainda o decreto "sobre novas formas de culto e de devoção a não introduzir",(170) cuja religiosa observância recomendamos à vossa vigilância.
176. Quanto à música, observem-se escrupulosamente as determinadas e claras normas emanadas desta Sé Apostólica. O canto gregoriano que a Igreja romana considera coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles, prescrito como é de modo absoluto em algumas partes da liturgia,(171) não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes. A esse propósito nossos predecessores de imortal memória, Pio X e Pio XI, estabeleceram – e nós de bom grado confirmamos com a nossa autoridade as disposições por eles dadas – que nos seminários e nos Institutos religiosos seja cultivado com estudo e diligência o canto gregoriano, e que, ao menos nas Igrejas mais importantes, sejam restauradas as antigas "Scholae cantorum"; como já foi feito com feliz resultado em não poucos lugares.(172)
177. Além disso, "para que os féis participem mais ativamente do culto divino, seja restaurado o canto gregoriano até no uso popular na parte que respeita ao povo. E urge verdadeiramente que os fiéis assistam às sagradas cerimônias não como espectadores mudos e estranhos, mas penetrados, intimamente, da beleza da liturgia... que alternem, segundo as normas prescritas, sua voz com a voz do sacerdote e dos cantores; se isso graças a Deus se verificar, então não acontecerá mais que o povo responda apenas com um leve e submisso murmúrio às orações comuns ditas em latim e em língua vulgar".(173) A multidão que assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com os seus filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa caridade, certamente não poderá calar, pois "cantar é proprio de quem ama",(174) e como já dizia o provérbio antigo: "Quem canta bem, reza duas vezes". Assim, a Igreja militante, clero e povo juntos, une a sua voz aos cantos da Igreja triunfante e aos coros angélicos, e todos juntos cantam um magnífico e eterno hino de louvor à Santíssima Trindade, como está escrito: "Com os quais te imploramos que sejam ouvidas ainda as nossas vozes".(175)
178. Não se pode, todavia, asseverar que a música e o canto moderno devam ser de todo excluídos do culto católico. Aliás, se nada têm de profano e de inconveniente à santidade do lugar e da ação sagrada, nem derivam de uma procura vã de efeitos extraordinários, certamente devemos abrir-lhes as portas de nossas Igrejas, podendo ambos contribuir não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para a elevação das mentes e, ao mesmo tempo, para a verdadeira devoção.
179. Nós vos exortamos ainda, veneráveis irmãos, a que tomeis cuidado em promover o canto religioso popular e a sua acurada execução feita com a dignidade conveniente, podendo isso estimular e aumentar a fé e a piedade das populações cristãs. Suba ao céu o canto uníssono e possante de nosso povo como o fragor das ondas do mar,(176) expressão canora e vibrante de um só coração e uma só alma, (177) como convém a irmãos e filhos de um mesmo Pai.(180). O que dissemos da música, se aplica às outras artes e especialmente à arquitetura, à escultura e à pintura. Não se devem desprezar e repudiar genericamente e por preconceitos as formas e imagens recentes, mais adaptadas aos novos materiais com os quais são hoje confeccionados; mas, evitando com sábio equilíbrio o excessivo realismo de uma parte e o exagerado simbolismo de outra, e tendo em conta as exigências da comunidade cristã, mais do que o juízo e o gosto pessoal dos artistas, é absolutamente necessário dar livre campo também à arte moderna, se esta serve com a devida reverência e a devida honra aos sagrados edifícios e ritos; de modo que ela possa unir a sua voz ao admirável cântico de glória que os gênios cantaram nos séculos passados a fé católica.
Não podemos deixar, porém, por dever de consciência, de deplorar e reprovar aquelas imagens e formas por alguns recentemente introduzidas, que parecem ser depravação e deformação da verdadeira arte e que, muitas vezes, repugnam abertamente ao decoro, à modéstia e à piedade cristã e ofendem, lamentavelmente, o genuíno sentimento religioso; elas devem ser mantidas absolutamente afastadas e postas fora das nossas igrejas como "em geral tudo que não está em harmonia com a santidade do lugar".(178)
181. Fiéis às normas e decretos dos pontífices, cuidai diligentemente, veneráveis irmãos, de iluminar e dirigir a mente e a alma dos artistas, aos quais será confiado hoje o encargo de restaurar e reconstruir tantas Igrejas destruídas ou arruinadas pela violência da guerra; possam e queiram eles, inspirando-se na religião, encontrar os motivos mais dignos e adaptados às exigências do culto; assim, com efeito, felizmente acontecerá que as artes humanas, como vindas do céu, brilhem com luz serena, promovam sumamente a humana civilização e contribuam para a glória de Deus e a santificação das almas, pois que as artes são, em verdade, como armas para a religião, quando servem "como nobilíssimas servas do culto divino".(179)
182. Mas há ainda uma coisa mais importante, veneráveis irmãos, que recomendamos de modo especial à vossa solicitude e ao vosso zelo apostólico. Tudo o que diz respeito ao culto religioso externo tem sua importância, mas urge sobretudo que os cristãos vivam a vida litúrgica e alimentem e fortaleçam seu espírito sobrenatural.
183. Providenciai, pois, alacremente, porque o jovem clero seja formado na inteligência das cerimônias sagradas, na compreensão de sua beleza e majestade, e aprenda diligentemente as rubricas, em harmonia com a sua formação ascética, teológica, jurídica e pastoral. E isso não somente por razões de cultura, não apenas para que o seminarista possa um dia cumprir os ritos da religião com a ordem, o decoro e a dignidade necessárias, mas sobretudo para que seja educado em íntima união com Cristo sacerdote e se torne um santo ministro de santidade.
184. Velai ainda de todo o modo para que, com os meios e subsídios que a vossa prudência julgar mais aptos, sejam o clero e o povo uma só mente e uma só alma; e, assim, o povo cristão participe ativamente da liturgia que se tornará em verdade a ação sagrada, pela qual o sacerdote que atende ao cuidado das almas em sua paróquia, unido com a assembléia do povo, renda ao Senhor o culto devido.
185. Para obter isso, será certamente útil que, piedosos meninos, bem instruídos sejam escolhidos entre todas as classes de fiéis, para que, com desinteresse e boa vontade, sirvam devota e assiduamente ao altar – encargo que deveria ser tido em grande consideração pelos pais, ainda que de alta condição social e cultura. Se esses jovens forem instruídos com o necessário cuidado e sob a vigilância de um sacerdote para que cumpram este seu ofício com reverência e constância, e em horas determinadas, tornar-se-á fácil o brotar entre eles de novas vocações sacerdotais; e não se queixará o clero de não encontrar – como infelizmente acontece por vezes até em regiões catolicíssimas – alguém que na celebração do augusto sacrifício lhe responda e o sirva.
186. Procurai, sobretudo, obter, com o vosso diligentíssimo zelo, que todos os fiéis assistam ao sacrifício eucarístico e dele recebam os mais abundantes frutos de salvação; exortai-os portanto assiduamente a dele participarem com devoção por todos aqueles modos legítimos dos quais falamos acima. O augusto sacrifício do altar é o ato fundamental do culto divino; é necessário, por isso, que ele seja a fonte, o centro da piedade cristã. Considerai que não tereis jamais suficientemente satisfeito ao vosso zelo apostólico senão quando virdes os vossos filhos aproximarem-se em grande número do celestial banquete que é "sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade". (180)
187. Para que, pois, o povo cristão possa conseguir esses dons sobrenaturais, sempre com maior abundância, instrui-o com zelo por meio de pregações oportunas e, especialmente, com discursos e ciclos de conferências, com semanas de estudo e com outras manifestações semelhantes, a respeito dos tesouros de piedade contidos na sagrada liturgia. Para esse fim estarão certamente à vossa disposição os membros da Ação católica, sempre prontos a colaborar com a hierarquia em promover o reino de Jesus Cristo.
188. É absolutamente necessário, porém, que em tudo isso vigieis atentamente a fim de que, no campo do Senhor, não se introduza o inimigo para semear a cizânia no meio do trigo,(181) para que, em outras palavras, não se infiltrem no vosso rebanho os perniciosos e sutis erros de um falso "misticismo" e de um nocivo "quietismo" – erros por nós já condenados como sabeis(182) – e para que as almas não sejam seduzidas por um perigoso "humanismo", nem se introduza uma falsa doutrina que altera a própria noção da fé, nem, enfim, um excessivo "arqueologismo" em matéria litúrgica. Cuidai com igual diligência por que não se difundam as falsas opiniões daqueles que erradamente crêem e ensinam que a natureza humana de Cristo glorificada esteja realmente e com a sua continua presença nos justificados, ou que uma graça única e idêntica junte Cristo com os membros do seu Corpo.
189. Não vos deixeis desanimar pelas dificuldades que nascem; jamais se desencoraje o vosso zelo pastoral. "Fazei soar a trombeta em Sião, convocai a assembléia, reuni o povo, santificai a Igreja, juntai os velhos, recolhei os meninos e os recém-nascidos" (183) e fazei por todos os meios que se encham em todos os lugares as Igrejas e os altares de cristãos, os quais, como membros vivos unidos à sua Cabeça divina, sejam revigorados pelas graças dos sacramentos, celebrem o augusto sacrifício com ele e por ele e dêem ao Eterno Pai os louvores devidos.
EPÍLOGO
190. Todas essas coisas, veneráveis irmãos, pretendíamos escrever-vos e o fazemos a fim de que os nossos e os vossos filhos compreendam melhor e mais estimem o preciosíssimo tesouro contido na sagrada liturgia – isto é, o sacrifício eucarístico que representa e renova o sacrifício da cruz, os sacramentos, rios de graça e de vida divina, e o hino de louvor que o céu e a terra elevam cada dia a Deus.
191. Seja-nos lícito esperar que estas nossas exortações excitem os tíbios e os recalcitrantes não somente a um estudo mais intenso e iluminado da liturgia, mas ainda a traduzir na prática da vida o seu espírito sobrenatural, como diz o apóstolo: "Não queirais extinguir o Espírito".(184)
192. Àqueles que um zelo excessivo leva muitas vezes a dizer e a fazer coisas que nos pesa não poder aprovar, repetimos a advertência de são Paulo: "Ponde tudo à prova; ficai com o que é bom";(185) e os admoestamos com ânimo paterno a consentirem haurir o seu modo de pensar e de agir da doutrina cristã, conforme os preceitos da imaculada esposa de Jesus Cristo e mãe dos santos.
193. A todos, enfim, lembramos a necessidade de uma generosa e fel obediência aos pastores, aos quais compete o direito e incumbe o dever de regular toda a vida da Igreja, sobretudo a espiritual. "Obedecei aos vossos superiores e sede-lhes dóceis. Eles, com efeito, velam sobre as vossas almas, e disso prestarão contas. Assim poderão fazê-lo com alegria e não gemendo".(186)
194. O Deus que adoramos, e que "não é Deus de discórdia mas de paz"(187), conceda, benigno a todos nós, participar neste exílio terreno, com uma só mente e um só coração, na sagrada liturgia, a qual seja como que preparação e prenúncio daquela celeste liturgia, com a qual, segundo confiamos, em companhia da excelsa Mãe de Deus e dulcíssima mãe nossa, cantaremos: "Àquele que se senta no trono e ao Cordeiro: louvor, honra e gloria por todos os séculos".(188)
Com essa exultante esperança a vós todos e a cada um, veneráveis irmãos e aos rebanhos confiados à vossa vigilância, como penhor dos dons celestes, e atestado da nossa particular benevolência, concedemos com grandíssimo afeto a bênção apostólica.
Dado em Castel Gandolfo, junto de Roma, no dia 20 de novembro do ano de 1947, IX do nosso pontificado.
PIO PP. XII
Notas
1. Tm 2, 5.
2. Cf. Hb 4,14.
3. Cf. Hb 9,14.
4. Cf. Ml 1,11.
5. Cf. Conc. Trid., sess. XXII, c.l.
6. Cf. Ibid., c.2.
7. Carta. Encicl, Caritate Christi de 3 de maio do ano 1932.
8. Cf. Carta. Ap., Motu Proprio In cotidianis precibus do dia 24 de março do ano 1945.
9. 1 Cor 10,17
10. S. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 81, a. 1.
11. Cf. Levítico.
12. Cf. Hb 10,1.
13. Jo 1,14.
14. Hb 10,5-7.
15. Hb 10,10.
16. Jo 1,9.
17. Hb 10,39.
18. Cf. 1 Jo 2, 1.
19. Cf. 1 Tm 3,15.
20. Cf. Bonif. IX, Ab origine mundi, do dia 7 de Outubro do ano 1391; Callist. III, Summus Pontifex, de 1 de janeiro do ano 1456; Pius II, Triumphans Pastor, de 22 de abril de 1459; Innoc. XI, Triumphans Pastor, de 3 de outubro do ano 1678.
21. Ef 2,19-22.
22. Mt 18,20.
23. At 2,42.
24. Cl 3,16.
25. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.
.26. Missal Rom., Prefácio da Nativ.
27. I. Card. Bona, De divina psalmodia, c 19, § 3,1.
28. Missal Rom., Secreta da féria V depois do II Dom. de Quaresma.
29. Cf. Mc 7,6 e Is 29,13.
30. 1 Cor 11, 28.
31. Missal Rom., Féria IV de Cinzas: oração depois da imposição das cinzas.
32. De praedestinatione sanctorum, 31.
33. Cf. s. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 82, a, 1.
34. Cf. 1 Cor 3,23.
35. Hb 10,19-24.
36. Cf. 2 Cor 6,1.
37.Cf. CIC, cân 125,126, 565, 571, 595,1367.
38. Col 3,11.
39. Cf. Gl 4,19.
40. Jo 20,21.
41. Lc 10, 16
42. Mc 16,15-16.
43. Pont. Rom., De ordinatione presbyteri, in manuum unctione.
44. Enchiridion, c. 3.
45. De gratia Dei "Indiculus"; Dz 246.
46. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.
47. Cf. Const. Divini cultus, de 20 de dezembro do ano 1928.
48. Const. Immensa, do dia 22 de janeiro de 1588.
49. Cf. CIC, cân. 253.
50. Cf. CIC, cân.1257.
51. Cf. CIC, cân.1261.
52. Cf. Mt 28,20.
53. Cf. Pio VI, Const. Auctorem fidei, do dia 28 de agosto de 1794, nn. XXXI, XXXIV, XXXIX, LXII, LXVI, LXIX-LXXIV
54. Cf. Jo 21,15-17.
55. At 20,28,
56. Sl 109,4.
57. Jo 13,1.
58. Conc. Trid., Sess. XXII. c, 1.
59. Ibidem, c. 2.
60. Cf. s. Tomás, Summa Theol., III, q. 22, a. 4.
61. João Cris. In Joan. Hom., 86,4.
62. Rm 6,9.
63. Cf . Missal Rom., Prefácio.
64. Cf. Ibidem, Cânon.
65. Mc 14,23.
66. Missal Rom., Prefácio.
67. 1 Jo 2,2 .
68. Missal Rom., Cânon.
69. S. Agostinho, De Trinit., 1. XIII, c.19.
70. Hb 5, 7.
71. Cf. Sess. XXII, c.1.
72. Cf. Hb 10,14.
73. S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16.
74. Gl 2,19-20.
75. Carta. Encicl. Mystici Corporis, do dia 29 de junho de 1943.
76. Missal Rom., Secreta do Dom. IX depois de Pentec.
77. Cf. Sess. XXII. c. 2 e cân. 4.
78. Cf. Gl 6,14.
79. Ml 1,11.
80. Fl 2,5.
81.Gl 2,19.
82. Cf. Conc. Trid. Sess., XXIII, c. 4.
83. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa, II, c 4.
84. De Sacro Altaris Mysterio, III, 6.
85. De Missa, I. cap. 27.
86. Missal Rom., Ordinário da Missa.
87. Ibidem, Cânon da Missa.
88. Missal Rom., Cânon da Missa.
92. Pontif. Rom., De Ordinatione presbyteri.
93. Ibidem, De altaris consecrat., Praefatio.
94. Cf. Conc. Trid. Sess. XXII, c. 5.
95. Gl ,19-20.
96. Cf. Serm. 272.
97. Cf. l Cor 12,27.
98. Cf. Ef 5,30.
99. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa , II, c. 8
100. De Civ. Dei, 1. X. c. 6.
101. Missal Rom., Cânon da Missa.
102. Cf. 1 Tm 2,5.
103. Carta Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 1.
104. Conc. Trid. Sess. XXII, cân. 8.
105. Missal Rom., Coleta da Festa Corp. Christi.
106. 1 Cor 11,24.
107. Sess. XXII, c. 6.
108. Carta. Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 3.
109. Cf. Lc 14,23.
110. Cor 10,17.
111. Cf. S. Inácio. Mártir, Ad. Ephes., 20.
112. Missal Rom., Cânon da Missa.
113. Ef 5,20.
114. Missal Rom., Postcommunio do Domingo da Oitava da Ascensão.
115. Ibidem, Postcommunio do Domingo I depois de Pentec.
116. CIC, cân. 810
117. Lib . IV, cap.l2.
118. Dn 3,57.
119. Cf. Jo 16,23.
120. Missal Rom., Secreta da Missa da SS. Trindade.
121. Jo 15,4.
122. Conc. Trid., Sess. XIII, can. 1.
123. Conc. Constant. II, Anath. de trib. Capit., cân. 9 collat. Con. Efes. Anath. Cyrill, cân. 8. Cf. Conc. Trid. Sess. XIII, cân. 6; Pio VI, Const. Auctorem fidei n. LXI.
124. Cf. Enarr. in, Ps. 98, 9.
125. Ap 5,12; 7,10.
126. Cf. Conc. Trid., Sess., XIII, c. 5 e cân. 6.
127. In ad Cor., XXIV, 4.
128. Cf. 1 Pd 1,19.
129. Mt 11,28.
130. Cf. Missal Rom., Coll. da Missa da Dedic. de uma Igreja.
131. Missal Rom., Seq. Lauda Sion na festa do Corpus Christi.
132. Lc 18, 1.
133. Hb 13,15.
134. Cf. At 2,1-15.
135. At 10,9.
136. At 3,1.
137. At 16,25
138. Rm 8,26.
139. S. Agostinho, Enarr. in Ps. 85, n. 1.
140. S. Bento, Regula Monachorum, c. XIX.
141. Hb 7,25.
142. Explicatio in Psalterium, Prefácio; PL 70,10.
143. S. Ambrósio, Enarrat. in Ps. l, n. 9.
144. Ex 31,15.
145. Confess. I. IX, c. 6.
146. S. Agostinho, De Civ. Dei, 1. VIII, cap.l7.
147. Col 3,1-2.
148. S. Agostinho, Enarr. in Ps.123, 2.
149. Hb 13,8.
150. S. Tomás, Summa Theol. III, q. 49 e q. 62, a. 5.
151. Cf. At 10, 38.
152. Ef 4,13.
153. Missal Rom., Coleta da III Missa pro plur. Martyr. extra T.P
154. S. Beda Vener., Hom. LXX na solenidade de todos os santos.
155. Missal Rom., Coleta da Missa de s. João Damasceno.
156. S. Bernardo, Sereno II in festo omnium Sanct.
157. Luc.1, 28.
158. "Salve Regina".
159. S. Bernardo, In Nativ. B.M.V., 7.
160. Hb 10,22.
161. Hb 10,21.
162. Hb 6, 19
163. Cf. CIC, cân.125.
164. Cf. Jo 14,2.
165. Jo 3,8.
166. Cf. Tg 1,17.
167. Ef 1,4.
168. Cf. Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini; de 22 de nov de 1903.
169. Sl 68,10; Jo 2,17.
170. Congr. S. Oficio: Decretum de 26 de maio de 1937.
171. Cf. Pio X, Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini.
172. Cf. Pio X, loc. cit.; Pio XI, Const. Divini cultus, II, V.
173. Pio XI, Const. Divini cultus, IX.
174. S. Agostinho, Serm. 336, n. 1.
175. Missal Rom., Prefácio.
176. Cf. s. Ambrosio, Hexameron, III, 5, 23.
177. Cf. At 4,32.
178. CIC, can.1178.
179. Pio XI, Const. Divini Cultus.
180. Cf. s. Agostinho, Tract. XXVI in Joan., 13.
181. Cf. Cf. Mt 13,24-25.
182. Carta. Encicl. Mystici Corporis.
183. Jl 2,5-16.
184. 1 Ts 5,19.
185. 1 Ts 5,21.
186. Hb 13,17.
187. 1 Cor 14,33.
188. Ap 5,13.
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Mesmo diante das reformas de Gregório VII e Inocêncio III, a liturgia continua distante do povo e cada vez mais clerical, ou seja, reservada ao sacerdote.
· Enquanto o padre reza a missa no altar distante, o povo se entretém com as devoções particulares. A comunhão é substituída pela adoração da hóstia. Ver a hóstia de longe, adorando-a, tornou-se uma forma de comungar. Por isso que na consagração, os padres adotaram o costume de elevar a hóstia e mais tarde o cálice. Este era o ponto mais importante da missa. Era um momento importante para os fiéis. Para tal, introduziram o uso da campainha para chamar atenção do povo e enfatizar este momento.
· A adoração eucarística substituiu o verdadeiro sentido da eucaristia vivido nas comunidades primitivas (assembléia, caridade, comunhão e sacrifício). Surge também no séc. XIII a festa de Corpus Christi[10], tornando-se a festa mais importante do ano litúrgico, estando acima da festa da Páscoa.
· É muito forte o costume devocional das missas privadas pelos defuntos, em honra aos santos e por diferentes intenções particulares. Conseqüentemente cresce o número de padres ordenados somente para rezar missa (altaristas) e a dramatização dos gestos litúrgicos durante a missa[11] (sinal da cruz constante, genuflexões e movimentos de um lado para o outro). A liturgia era um teatro religioso medieval.
· Os sacramentos perderam a sua originalidade, ou seja, como celebração do mistério pascal e passou a serem vistos como remédio que cura, purifica, previne e fortalece.
3.3 Reforma litúrgica do Concílio de Trento
O Concílio[12], celebrado na cidade de Trento nos anos de 1545-1563, foi de grande importância para a vida da Igreja, pois o séc. XVI foi um período muito conturbado na Igreja. Em 1517 eclodiu-se a reforma protestante liderada por Martinho Lutero, rompendo-se com a Igreja e fundando a igreja luterana, e mais tarde, na Inglaterra, o rei Henrique VIII também rompe com Roma e funda o Anglicanismo. Um novo cisma abalou as estruturas internas e externas da Igreja Católica. Lutero questionava os abusos existentes dentro da Igreja, também no que diz respeito à liturgia. O Concílio de Trento promoveu algumas reformas litúrgicas importantes, porém parcial, pois não havia tempo para fazer a reforma completa da liturgia.
Os reformadores reivindicavam uma renovação na Igreja, sobretudo na liturgia. Para eles havia uma falta de espírito evangélico e exigia o uso da língua de cada nação, a participação ativa de todos, a recitação das orações em voz alta, comunhão sob duas espécies, abolir o uso exclusivo de celebrações privadas. Estas práticas não foram assumidas por Trento e veremos que acontecerá somente com Vaticano II.
O Concílio de Trento teve um caráter mais doutrinário do que pastoral, portanto, dos assuntos discutidos, afirmou-se o caráter sacrifical da missa e a presença real de Jesus na eucaristia. Por falta de tempo, o Concílio não aprofundou o aspecto litúrgico da Igreja, mas manteve a liturgia romana que perdurou por quatro séculos e confiou ao Papa a publicação dos livros litúrgicos[13], que passaram a ser de uso obrigatório para toda a Igreja, menos as dioceses e ordens religiosas com tradições próprias de mais de dois séculos.
Em resposta à reforma protestante, surge um movimento cultural que expressava bem o espírito da contra-reforma. A este chamamos de barroco. Foi um período de superação das crises provocadas pelo protestantismo, onde a Igreja Católica se sentiu vitoriosa, segura e forte. A Igreja assume um caráter triunfalista acentuando a presença real de Cristo na eucaristia e insistindo cada vez mais na dignidade dos sacerdotes. Continua-se o modelo de separação entre o padre e o povo.
As celebrações são brilhantes, com caráter triunfalista, porém fora do verdadeiro espírito da liturgia. Nas igrejas os altares laterais se multiplicam, como também a imagem dos santos e de Maria. A homilia se torna sermão e era feita no púlpito. Os sacrários são luxuosos, se desenvolve a música sacra e a missa era apenas ouvida. A festa por excelência no período do barroco foi a de Corpus Christi com a solene procissão em honra ao rei eucarístico.
Sendo a missa animada pela orquestra e o coro em voz alta, a participação do povo foi quase zero. Muitos aproveitavam a ocasião para recitar o rosário e se entregar às suas devoções populares.
O conhecimento da liturgia no período tridentino e pós-tridentino é importante para compreendermos as raízes históricas de nossa própria cultura religiosa brasileira e latino-americana. Queremos dar ênfase à liturgia que herdamos, sobretudo no período colonial, e “para algumas adaptações desta liturgia no nosso contexto social e religioso.
A liturgia que herdamos foi a liturgia do período medieval e pós-tridentino, que os colonizadores e os missionários portugueses e espanhóis trouxeram para o continente latino americano a partir de 1492. Uma liturgia de índole romano-franco-germânica e de língua única e obrigatória (latim) para todos os povos do ocidente. Uma liturgia igual para todos, porém com o passar do tempo houve adaptações, o que hoje chamamos de inculturação.
Ainda estava muito longe de ter uma liturgia, cuja finalidade seria a celebração do mistério pascal comunitariamente celebrado sob a presidência de seus pastores. Permanecia o ritual meio mágico celebrado pelo clero, distante do povo. Herdamos uma liturgia feita apenas para o clero, e o povo assistia passivamente as cerimônias feitas pelos padres lá no altar.
A devoção popular tomou fôlego neste período. O povo se dedicava mais à devoção aos santos, novenas, reza do terço, etc. Os sacramentos eram vistos como remédio espiritual para curar os males e manter uma boa relação de amizade com Deus e não como a celebração do mistério pascal em nossa vida. Foi uma liturgia que predominava o individualismo religioso. Cada pessoa cuidava da sua vida espiritual sem nenhum compromisso eclesial e de transformação social, sem sentir-se irmão uns dos outros e membros do corpo místico de Cristo. Em síntese, não se contemplava o valor da assembléia.
Esta é a liturgia católica que herdamos durante cinco séculos, o que formou neste continente uma cultura tipicamente religiosa. Por um lado, o catolicismo popular teve seus elementos positivos (solidariedade, hospitalidade, piedade, gosto pela festa, espírito jovial, etc) e negativos (superstição, idolatria do poder, falta de formação, sincretismo, redução da fé a um contrato com Deus, individualismo religioso, etc).
A liturgia teve que se adaptar no contato com os povos desta terra (negros, índios, colonizadores e mestiços). Um exemplo é a tentativa de adaptação da celebração do batismo entre os índios do Brasil. Os missionários fizeram a tradução dos textos para a língua tupi.
Uma das adaptações mais interessantes é a que aparece na organização do espaço das celebrações nas igrejas no Brasil. O espaço era dividido em seis recintos:
· Recinto clerical: presbitério
· Recinto central: reservado às mulheres
· Recintos laterais: num plano mais elevado, reservado para os homens bons, livres e simbolizava a superioridade, tanto diante do clero quanto das mulheres.
· O espaço em torno das portas: reservado aos negros e escravos
· Um lugar de destaque entre a nave central e o presbitério era reservado para pessoas mais importantes.
· O coro, sobre a porta da Igreja, era reservado para os cantores e a orquestra.
No Brasil colônia existia igrejas para os escravos e os negros e igrejas para os homens brancos, como é visível nas antigas cidades mineiras do Brasil colônia (Ouro Preto, Mariana, etc). As casas, normalmente tinham seus oratórios para a liturgia familiar. Eles se reuniam para rezar o terço e a oração da noite. O rezador geralmente era pessoa muito simples e mesmo se houvesse um padre, ele presidia as orações. As missas eram celebradas com grande pompa barroca adaptada ao ambiente social do Brasil colônia. No séc. XVI, os jesuítas permitiam o uso de instrumentos musicais indígenas nas celebrações. Era uma grande festa e faziam uso de recursos da liturgia barroca para atrair os índios: músicas, procissões, cruz alçada, paramentos, multicores, bandeiras, batinas, folhas de palmeiras a serem agitadas nas procissões, imagens teatros, dramatizações, etc.
São exemplos de adaptações da liturgia medieval e pós-tridentina no contexto do Brasil colônia. No seu espírito ela permanecia a mesma, ao passo que o essencial continuava em segundo plano.
3.5 O caminho da renovação: O movimento litúrgico
No início do séc. XX inicia-se um grande movimento de renovação litúrgica na Igreja do ocidente. É o chamado movimento litúrgico, que teve a sua pré-história no período do iluminismo (séc. XVIII) e da restauração católica (séc. XIX).
O movimento litúrgico aparece na Europa por volta do séc. XVIII com o intuito de se contrapor ao barroco: o iluminismo. Teve grande influência na liturgia. Desencadeou um processo contra a centralidade tridentina e a exagerada exteriorização barroca. Os católicos exigiam uma liturgia mais simples, que se adequasse à realidade do povo e fosse por eles compreendida. O problema é que os católicos viam a liturgia mais como função educadora do povo do que celebração do mistério de Cristo. O que comprometeu o trabalho de reforma. Em todo caso, este movimento se culminará com a reforma litúrgica do Vaticano II. E a partir daí compreenderemos que a liturgia é a fonte primordial da vida cristã.
No Brasil, o movimento litúrgico surge em 1933 e teve como expoente o monge beneditino Martinho Micheler. Foi muito bem aceito nos movimentos de Ação Católica e divulgado em quase todo país, pois pregava o retorno às fontes. As propostas do movimento, às vezes não foram colocadas de modo feliz por seus divulgadores e acabou formando um antagonismo com os católicos tradicionais brasileiros. Por um lado os liturgistas e por outro os devocionistas. Os devocionistas eram mais reacionários e acusavam o movimento de tentar abolir as devoções populares (culto aos santos,bao papa, à Virgem Maria e ao Santíssimo Sacramento).
Graças ao movimento litúrgico, o Concílio Vaticano II pôde concretizar a reforma litúrgica.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
O Vaticano II (1962-1965) foi um Concílio de cunho mais pastoral. Era urgente uma reforma no interior da Igreja e o beato Papa João XXII considerou como um “Novo Pentecostes para a Igreja”. O primeiro documento aprovado foi a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. No artigo 1°, o documento afirma que o Concílio deseja fomentar sempre mais a vida cristã dos fiéis e favorecer para que tudo se convirja para os que crêem em Cristo.
Trata-se de um Concílio que vem de encontro com a realidade sócio cultural do séc. XX, dialogando com o homem moderno. A liturgia a partir do Vaticano II foi um verdadeiro retorno às fontes. Procurou adaptar-se à realidade cultural de cada nação. Um dos grandes méritos foi a missa celebrada de frente para o povo, tornando assim uma celebração comunitária em que o centro da celebração é o Cristo.
Texto elaborado pelo Cl. Geovani dos Santos Pereira
[1] É o conjunto das cerimónias litúrgicas. Nelas se atualiza a ação salvadora de Jesus Cristo realizada de uma vez por todas.
[2] Memória significa recordar um fato acontecido no passado. Ao mesmo tempo, temos a certeza de participarmos deste mesmo acontecimento e de seus efeitos salvíficos.
[3] O mistério é algo oculto que podemos conhecê-lo aos olhos da fé. Toda liturgia é um mistério celebrado porque narra toda a história da salvação e nos coloca diante do grande mistério que é Deus, revelado no seu Filho Jesus Cristo. Neste sentido, o mistério é a presença de Deus. O mistério deve ser entendido como uma vontade salvífica de Deus em salvar a humanidade. Sem dúvida alguma, este deve brotar da nossa espiritualidade. Deus é mistério em si mesmo porque é comunhão de vida, de amor e de fidelidade em si mesmo.
[4] O paganismo significa a adoração a vários deuses (politeísmo). Era muito comum entre os gregos nos primeiros séculos.
[5] Local onde as primeiras comunidades receberam o nome de cristãos pela primeira vez.
[6] Ler o Catecismo da Igreja Católica nn. 1200 – 1202.
[7] BUYST, Ione. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas. p. 35.
[8] É uma junção da liturgia de Roma e dos impérios franco e germânicos.
[9] O Breviário é um livro que contem as orações da Igreja distribuídas seis momentos ao longo do dia. É o livro oficial das comunidades religiosas e todo povo de Deus (leigos e leigas) é convidado a seguir esta prática.
[10] Corpus Christi surgiu com o intuito de exaltar a realeza de Jesus, atribuindo à ele todas as pompas reais, até então ostentada pelos homens terrenos. Tornou-se uma festa devocional e até hoje nas procissões as vias são ornadas com tapetes luxuosos. Ainda é muito presente esta prática em Minas Gerais.
[11] O clero celebrava frequentemente as missas votivas e faziam da Igreja um comércio espiritual.
[12] O Concílio é uma assembléia da Igreja que reúne os bispos com o objetivo de tratar de assuntos referentes à vida da Igreja.
[13] Pio V publicou o breviário (1568) e o missal romano (1570). Clemente VIII publicou o pontifical romano (1596) e o cerimonial dos bispos (1600).
DEPARTAMENTO DAS CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS
DO SUMO PONTÍFICE
Ensinamentos sobre a liturgia do Santo Padre Francisco
Liturgia e beleza
Amados irmãos e irmãs,
Com alegria, celebro pela primeira vez a Missa Crismal como Bispo de Roma. Saúdo com afecto a todos vós, especialmente aos amados sacerdotes que hoje recordam, como eu, o dia da Ordenação
As Leituras e o Salmo falam-nos dos «Ungidos»: o Servo de Javé referido por Isaías, o rei David e Jesus nosso Senhor. Nos três, aparece um dado comum: a unção recebida destina-se ao povo fiel de Deus, de quem são servidores; a sua unção «é para» os pobres, os presos, os oprimidos… Encontramos uma imagem muito bela de que o santo crisma «é para» no Salmo 133: «É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes» (v. 2). Este óleo derramado, que escorre pela barba de Aarão até à orla das suas vestes, é imagem da unção sacerdotal, que, por intermédio do Ungido, chega até aos confins do universo representado nas vestes.
As vestes sagradas do Sumo Sacerdote são ricas de simbolismos; um deles é o dos nomes dos filhos de Israel gravados nas pedras de ónix que adornavam as ombreiras do efod, do qual provém a nossa casula actual: seis sobre a pedra do ombro direito e seis na do ombro esquerdo (cf. Ex 28, 6-14). Também no peitoral estavam gravados os nomes das doze tribos de Israel (cf. Ex 28, 21). Isto significa que o sacerdote celebra levando sobre os ombros o povo que lhe está confiado e tendo os seus nomes gravados no coração. Quando envergamos a nossa casula humilde pode fazer-nos bem sentir sobre os ombros e no coração o peso e o rosto do nosso povo fiel, dos nossos santos e dos nossos mártires, que são tantos neste tempo.
Depois da beleza de tudo o que é litúrgico – que não se reduz ao adorno e bom gosto dos paramentos, mas é presença da glória do nosso Deus que resplandece no seu povo vivo e consolado –, fixemos agora o olhar na acção. O óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, não se limita a perfumá-lo a ele, mas espalha-se e atinge «as periferias». O Senhor dirá claramente que a sua unção é para os pobres, os presos, os doentes e quantos estão tristes e abandonados. A unção, amados irmãos, não é para nos perfumar a nós mesmos, e menos ainda para que a conservemos num frasco, pois o óleo tornar-se-ia rançoso... e o coração amargo.
Liturgia e vida
O bom sacerdote reconhece-se pelo modo como é ungido o seu povo; temos aqui uma prova clara. Nota-se quando o nosso povo é ungido com óleo da alegria; por exemplo, quando sai da Missa com o rosto de quem recebeu uma boa notícia. O nosso povo gosta do Evangelho quando é pregado com unção, quando o Evangelho que pregamos chega ao seu dia a dia, quando escorre como o óleo de Aarão até às bordas da realidade, quando ilumina as situações extremas, «as periferias» onde o povo fiel está mais exposto à invasão daqueles que querem saquear a sua fé. As pessoas agradecem-nos porque sentem que rezámos a partir das realidades da sua vida de todos os dias, as suas penas e alegrias, as suas angústias e esperanças. E, quando sentem que, através de nós, lhes chega o perfume do Ungido, de Cristo, animam-se a confiar-nos tudo o que elas querem que chegue ao Senhor: «Reze por mim, padre, porque tenho este problema», «abençoe-me, padre», «reze para mim»… Estas confidências são o sinal de que a unção chegou à orla do manto, porque é transformada em súplica – súplica do Povo de Deus. Quando estamos nesta relação com Deus e com o seu Povo e a graça passa através de nós, então somos sacerdotes, mediadores entre Deus e os homens. O que pretendo sublinhar é que devemos reavivar sempre a graça, para intuirmos, em cada pedido – por vezes inoportuno, puramente material ou mesmo banal (mas só aparentemente!) –, o desejo que tem o nosso povo de ser ungido com o óleo perfumado, porque sabe que nós o possuímos. Intuir e sentir, como o Senhor sentiu a angústia permeada de esperança da hemorroíssa quando ela Lhe tocou a fímbria do manto. Este instante de Jesus, no meio das pessoas que O rodeavam por todos os lados, encarna toda a beleza de Aarão revestido sacerdotalmente e com o óleo que escorre pelas suas vestes. É uma beleza escondida, que brilha apenas para aqueles olhos cheios de fé da mulher atormentada com as perdas de sangue. Os próprios discípulos – futuros sacerdotes – não conseguem ver, não compreendem: na «periferia existencial», vêem apenas a superficialidade duma multidão que aperta Jesus de todos os lados quase O sufocando (cf. Lc 8, 42). Ao contrário, o Senhor sente a força da unção divina que chega às bordas do seu manto.
É preciso chegar a experimentar assim a nossa unção, com o seu poder e a sua eficácia redentora: nas «periferias» onde não falta sofrimento, há sangue derramado, há cegueira que quer ver, há prisioneiros de tantos patrões maus. Não é, concretamente, nas auto-experiências ou nas reiteradas introspecções que encontramos o Senhor: os cursos de auto-ajuda na vida podem ser úteis, mas viver a nossa vida sacerdotal passando de um curso ao outro, de método em método leva a tornar-se pelagianos, faz-nos minimizar o poder da graça, que se activa e cresce na medida em que, com fé, saímos para nos dar a nós mesmos oferecendo o Evangelho aos outros, para dar a pouca unção que temos àqueles que não têm nada de nada.
O sacerdote, que sai pouco de si mesmo, que unge pouco – não digo «nada», porque, graças a Deus, o povo nos rouba a unção –, perde o melhor do nosso povo, aquilo que é capaz de activar a parte mais profunda do seu coração presbiteral. Quem não sai de si mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um gestor. A diferença é bem conhecida de todos: o intermediário e o gestor «já receberam a sua recompensa». É que, não colocando em jogo a pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres tristes, e transformados numa espécie de coleccionadores de antiguidades ou então de novidades, em vez de serem pastores com o «cheiro das ovelhas» – isto vo-lo peço: sede pastores com o «cheiro das ovelhas», que se sinta este –, serem pastores no meio do seu rebanho, e pescadores de homens. É verdade que a chamada crise de identidade sacerdotal nos ameaça a todos e vem juntar-se a uma crise de civilização; mas, se soubermos quebrar a sua onda, poderemos fazer-nos ao largo no nome do Senhor e lançar as redes. É um bem que a própria realidade nos faça ir para onde, aquilo que somos por graça, apareça claramente como pura graça, ou seja, para este mar que é o mundo actual onde vale só a unção – não a função – e se revelam fecundas unicamente as redes lançadas no nome d’Aquele em quem pusemos a nossa confiança: Jesus.
Amados fiéis, permanecei unidos aos vossos sacerdotes com o afecto e a oração, para que sejam sempre Pastores segundo o coração de Deus.
Amados sacerdotes, Deus Pai renove em nós o Espírito de Santidade com que fomos ungidos, o renove no nosso coração de tal modo que a unção chegue a todos, mesmo nas «periferias» onde o nosso povo fiel mais a aguarda e aprecia. Que o nosso povo sinta que somos discípulos do Senhor, sinta que estamos revestidos com os seus nomes e não procuramos outra identidade; e que ele possa receber, através das nossas palavras e obras, este óleo da alegria que nos veio trazer Jesus, o Ungido. Amen.
Culto ed Eucaristia
Cari fratelli e sorelle,
nel Vangelo che abbiamo ascoltato, c’è un’espressione di Gesù che mi colpisce sempre: «Voi stessi date loro da mangiare» (Lc 9,13). Partendo da questa frase, mi lascio guidare da tre parole: sequela, comunione, condivisione.
1. Anzitutto: chi sono coloro a cui dare da mangiare? La risposta la troviamo all’inizio del brano evangelico: è la folla, la moltitudine. Gesù sta in mezzo alla gente, l’accoglie, le parla, la cura, le mostra la misericordia di Dio; in mezzo ad essa sceglie i Dodici Apostoli per stare con Lui e immergersi come Lui nelle situazioni concrete del mondo. E la gente lo segue, lo ascolta, perché Gesù parla e agisce in un modo nuovo, con l’autorità di chi è autentico e coerente, di chi parla e agisce con verità, di chi dona la speranza che viene da Dio, di chi è rivelazione del Volto di un Dio che è amore. E la gente, con gioia, benedice Dio.
Questa sera noi siamo la folla del Vangelo, anche noi cerchiamo di seguire Gesù per ascoltarlo, per entrare in comunione con Lui nell’Eucaristia, per accompagnarlo e perché ci accompagni. Chiediamoci: come seguo io Gesù? Gesù parla in silenzio nel Mistero dell’Eucaristia e ogni volta ci ricorda che seguirlo vuol dire uscire da noi stessi e fare della nostra vita non un nostro possesso, ma un dono a Lui e agli altri.
2. Facciamo un passo avanti: da dove nasce l’invito che Gesù fa ai discepoli di sfamare essi stessi la moltitudine? Nasce da due elementi: anzitutto dalla folla che, seguendo Gesù, si trova all’aperto, lontano dai luoghi abitati, mentre si fa sera, e poi dalla preoccupazione dei discepoli che chiedono a Gesù di congedare la folla perché vada nei paesi vicini a trovare cibo e alloggio (cfr Lc 9,12). Di fronte alla necessità della folla, ecco la soluzione dei discepoli: ognuno pensi a se stesso; congedare la folla! Ognuno pensi a se stesso; congedare la folla! Quante volte noi cristiani abbiamo questa tentazione! Non ci facciamo carico delle necessità degli altri, congedandoli con un pietoso: “Che Dio ti aiuti”, o con un non tanto pietoso: “Felice sorte”, e se non ti vedo più… Ma la soluzione di Gesù va in un’altra direzione, una direzione che sorprende i discepoli: «Voi stessi date loro da mangiare». Ma come è possibile che siamo noi a dare da mangiare ad una moltitudine? «Non abbiamo che cinque pani e due pesci, a meno che non andiamo noi a comprare viveri per tutta questa gente» (Lc 9,13). Ma Gesù non si scoraggia: chiede ai discepoli di far sedere la gente in comunità di cinquanta persone, alza gli occhi al cielo, recita la benedizione, spezza i pani e li dà ai discepoli perché li distribuiscano (cfr Lc 9,16). E’ un momento di profonda comunione: la folla dissetata dalla parola del Signore, è ora nutrita dal suo pane di vita. E tutti ne furono saziati, annota l’Evangelista (cfr Lc 9,17).
Questa sera, anche noi siamo attorno alla mensa del Signore, alla mensa del Sacrificio eucaristico, in cui Egli ci dona ancora una volta il suo Corpo, rende presente l’unico sacrificio della Croce. E’ nell’ascoltare la sua Parola, nel nutrirci del suo Corpo e del suo Sangue, che Egli ci fa passare dall’essere moltitudine all’essere comunità, dall’anonimato alla comunione. L’Eucaristia è il Sacramento della comunione, che ci fa uscire dall’individualismo per vivere insieme la sequela, la fede in Lui. Allora dovremmo chiederci tutti davanti al Signore: come vivo io l’Eucaristia? La vivo in modo anonimo o come momento di vera comunione con il Signore, ma anche con tutti i fratelli e le sorelle che condividono questa stessa mensa? Come sono le nostre celebrazioni eucaristiche?
3. Un ultimo elemento: da dove nasce la moltiplicazione dei pani? La risposta sta nell’invito di Gesù ai discepoli «Voi stessi date…», “dare”, condividere. Che cosa condividono i discepoli? Quel poco che hanno: cinque pani e due pesci. Ma sono proprio quei pani e quei pesci che nelle mani del Signore sfamano tutta la folla. E sono proprio i discepoli smarriti di fronte all’incapacità dei loro mezzi, alla povertà di quello che possono mettere a disposizione, a far accomodare la gente e a distribuire – fidandosi della parola di Gesù - i pani e pesci che sfamano la folla. E questo ci dice che nella Chiesa, ma anche nella società, una parola chiave di cui non dobbiamo avere paura è “solidarietà”, saper mettere, cioè, a disposizione di Dio quello che abbiamo, le nostre umili capacità, perché solo nella condivisione, nel dono, la nostra vita sarà feconda, porterà frutto. Solidarietà: una parola malvista dallo spirito mondano!
Questa sera, ancora una volta, il Signore distribuisce per noi il pane che è il suo Corpo, Lui si fa dono. E anche noi sperimentiamo la “solidarietà di Dio” con l’uomo, una solidarietà che mai si esaurisce, una solidarietà che non finisce di stupirci: Dio si fa vicino a noi, nel sacrificio della Croce si abbassa entrando nel buio della morte per darci la sua vita, che vince il male, l’egoismo e la morte. Gesù anche questa sera si dona a noi nell’Eucaristia, condivide il nostro stesso cammino, anzi si fa cibo, il vero cibo che sostiene la nostra vita anche nei momenti in cui la strada si fa dura, gli ostacoli rallentano i nostri passi. E nell’Eucaristia il Signore ci fa percorrere la sua strada, quella del servizio, della condivisione, del dono, e quel poco che abbiamo, quel poco che siamo, se condiviso, diventa ricchezza, perché la potenza di Dio, che è quella dell’amore, scende nella nostra povertà per trasformarla.
Chiediamoci allora questa sera, adorando il Cristo presente realmente nell’Eucaristia: mi lascio trasformare da Lui? Lascio che il Signore che si dona a me, mi guidi a uscire sempre di più dal mio piccolo recinto, a uscire e non aver paura di donare, di condividere, di amare Lui e gli altri?
Fratelli e sorelle: sequela, comunione, condivisione. Preghiamo perché la partecipazione all’Eucaristia ci provochi sempre: a seguire il Signore ogni giorno, ad essere strumenti di comunione, a condividere con Lui e con il nostro prossimo quello che siamo. Allora la nostra esistenza sarà veramente feconda. Amen.
Dall’Omelia nella Domus Sanctae Marthae, 31 maggio 2013
“E’ proprio lo Spirito che ci guida: Lui è l’autore della gioia, il Creatore della gioia. E questa gioia nello Spirito, ci dà la vera libertà cristiana. Senza gioia, noi cristiani non possiamo diventare liberi, diventiamo schiavi delle nostre tristezze. Il grande Paolo VI diceva che non si può portare avanti il Vangelo con cristiani tristi, sfiduciati, scoraggiati. Non si può. Questo atteggiamento un po’ funebre, eh? Tante volte i cristiani hanno la faccia di andare più a un corteo funebre che di andare a lodare Dio, no? E da questa gioia viene la lode, questa lode di Maria, questa lode che dice Sofonia, questa lode di Simeone, di Anna: la lode di Dio!”
“’Lei che è qui a Messa, lei loda Dio o soltanto chiede a Dio e ringrazia Dio? Ma loda Dio?’. E’ una cosa nuova quella, nuova nella nostra vita spirituale. Lodare Dio, uscire da noi stessi per lodare; perdere del tempo lodando. ‘Questa Messa, che lunga s’è fatta!’. Se tu non lodi Dio, non sai quella gratuità di perdere il tempo lodando a Dio, è lunga la Messa. Ma se tu vai su questo atteggiamento della gioia, della lode a Dio, quello è bello! L’eternità sarà quello: lodare Dio! E quello non sarà noioso: sarà bellissimo! Questa gioia ci fa liberi”.
“Dobbiamo pregare la Madonna, perché portando Gesù ci dia la grazia della gioia, della libertà della gioia. Ci dia la grazia di lodare, di lodare con una preghiera di lode gratuita, di lode, perché Lui è degno di lode sempre. Pregare la Madonna e dirle come le dice la Chiesa: Veni, Precelsa Domina, Maria, tu nos visita, Signora, tu che sei tanto grande, visita noi e donaci la gioia!”.
(fonte: Radio Vaticana)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
PÓS-SINODAL
SACRAMENTUM CARITATIS
DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
FONTE E ÁPICE DA VIDA
E DA MISSÃO DA IGREJA
Introdução [1]
O alimento da verdade [2]
O desenvolvimento do rito eucarístico [3]
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia [4]
Finalidade do documento [5]
A fé eucarística da Igreja [6]
O pão descido do céu [7]
Dom gratuito da Santíssima Trindade [8]
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro [9]
A instituição da Eucaristia [10]
A figura deu lugar à Verdade [11]
Jesus e o Espírito Santo [12]
Espírito Santo e celebração eucarística [13]
Eucaristia, princípio causal da Igreja [14]
Eucaristia e comunhão eclesial [15]
Sacramentalidade da Igreja [16]
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã [17]
A ordem dos sacramentos da iniciação [18]
Iniciação, comunidade eclesial e família [19]
Sua ligação intrínseca [20]
Alguns cuidados pastorais [21]
Na pessoa de Cristo cabeça [23]
Eucaristia e celibato sacerdotal [24]
Escassez de clero e pastoral vocacional [25]
Gratidão e esperança [26]
Eucaristia, sacramento esponsal [27]
Eucaristia e unidade do Matrimónio [28]
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio [29]
Eucaristia, dom para o homem a caminho [30]
O banquete escatológico [31]
Oração pelos defuntos [32]
Norma da oração e norma de fé [34]
Beleza e liturgia [35]
Cristo inteiro: cabeça e corpo [36]
Eucaristia e Cristo ressuscitado [37]
Arte da celebração [38]
O bispo, liturgista por excelência [39]
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais [40]
Arte ao serviço da celebração [41]
O canto litúrgico [42]
Unidade intrínseca da acção litúrgica [44]
A liturgia da palavra [45]
A homilia [46]
Apresentação das oferendas [47]
A Oração Eucarística [48]
Saudação da paz [49]
Distribuição e recepção da Eucaristia [50]A despedida: « Ite, missa est » [51]
Autêntica participação [52]
Participação e ministério sacerdotal [53]
Celebração eucarística e inculturação [54]
Condições pessoais para uma participação activa [55]
Participação dos cristãos não católicos [56]
Participação através dos meios de comunicação [57]
Participação activa dos doentes [58]A solicitude pelos presos [59]Os migrantes e a participação na Eucaristia [60]As grandes concelebrações [61]A língua latina [62]Celebrações eucarísticas em pequenos grupos [63]
Catequese mistagógica [64]
A reverência à Eucaristia [65]
A relação intrínseca entre celebração e adoração [66]
A prática da adoração eucarística [67]
Formas de devoção eucarística [68]
O lugar do sacrário na igreja [69]
O culto espiritual [70]
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico [71]
Viver segundo o domingo [72]
Viver o preceito dominical [73]
O sentido do repouso e do trabalho [74]
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote [75]
Uma forma eucarística da existência cristã, a pertença eclesial [76]Espiritualidade e cultura eucarística [77]Eucaristia e evangelização das culturas [78]Eucaristia e fiéis leigos [79]Eucaristia e espiritualidade sacerdotal [80]Eucaristia e vida consagrada [81]Eucaristia e transformação moral [82]Coerência eucarística [83]
Eucaristia e missão [84]
Eucaristia e testemunho [85]
Jesus Cristo, único Salvador [86]
Liberdade de culto [87]
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo [88]
As implicações sociais do mistério eucarístico [89]
O alimento da verdade e a indigência do homem [90]
A doutrina social da Igreja [91]
Santificação do mundo e defesa da criação [92]
Utilidade dum Compêndio Eucarístico [93]
Conclusão [94-97]
INTRODUÇÃO
1. Sacramento da Caridade, (1) a santíssima Eucaristia é a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste sacramento admirável, manifesta-se o amor « maior »: o amor que leva a « dar a vida pelos amigos » (Jo 15, 13). De facto, Jesus « amou-os até ao fim » (Jo 13, 1). Com estas palavras, o evangelista introduz o gesto de infinita humildade que Ele realizou: na vigília da sua morte por nós na cruz, pôs uma toalha à cintura e lavou os pés aos seus discípulos. Do mesmo modo, no sacramento eucarístico, Jesus continua a amar-nos « até ao fim », até ao dom do seu corpo e do seu sangue. Que enlevo se deve ter apoderado do coração dos discípulos à vista dos gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que maravilha deve suscitar, também no nosso coração, o mistério eucarístico!
O alimento da verdade
2. No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar verdadeiramente livres (Jo 8, 36), Cristo faz-Se alimento de Verdade para nós. Com agudo conhecimento da realidade humana, Santo Agostinho pôs em evidência como o homem se move espontaneamente, e não constrangido, quando encontra algo que o atrai e nele suscita desejo. Perguntando-se ele, uma vez, sobre o que poderia em última análise mover o homem no seu íntimo, o santo bispo exclama: « Que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? » (2) De facto, todo o homem traz dentro de si o desejo insuprimível da verdade última e definitiva. Por isso, o Senhor Jesus, « caminho, verdade e vida » (Jo 14, 6), dirige-Se ao coração anelante do homem que se sente peregrino e sedento, ao coração que suspira pela fonte da vida, ao coração mendigo da Verdade. Com efeito, Jesus Cristo é a Verdade feita Pessoa, que atrai a Si o mundo. « Jesus é a estrela polar da liberdade humana: esta, sem Ele, perde a sua orientação, porque, sem o conhecimento da verdade, a liberdade desvirtua-se, isola-se e reduz-se a estéril arbítrio. Com Ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma ».(3) No sacramento da Eucaristia, Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele (opportune, importune: cf. 2 Tm 4, 2), que Deus é amor.(4) Exactamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus.
O desenvolvimento do rito eucarístico
3. Contemplando a história bimilenária da Igreja de Deus, sapientemente guiada pela acção do Espírito Santo, admiramos cheios de gratidão o desenvolvimento ordenado no tempo das formas rituais em que fazemos memória do acontecimento da nossa salvação. Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. A XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu de 2 a 23 de Outubro de 2005 no Vaticano, elevou um profundo agradecimento a Deus por esta história, reconhecendo nela a guia activa do Espírito Santo. De modo particular, os padres sinodais reconheceram e reafirmaram o benéfico influxo que teve, na vida da Igreja, a reforma litúrgica actuada a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II.(5) O Sínodo dos Bispos pôde avaliar o acolhimento que a mesma teve depois da assembleia conciliar; inúmeros foram os elogios; como lá se disse, as dificuldades e alguns abusos assinalados não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas. Trata-se, em concreto, de ler as mudanças queridas pelo Concílio dentro da unidade que caracteriza o desenvolvimento histórico do próprio rito, sem introduzir artificiosas rupturas.(6)
O Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia
4. Além disso, é necessário sublinhar a relação do recente Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia com o que sucedeu durante os últimos anos na vida da Igreja. Antes de mais, devemos pensar no Grande Jubileu do ano 2000, com o qual meu amado predecessor, o servo de Deus João Paulo II, introduziu a Igreja no terceiro milénio cristão; o Ano Jubilar teve, sem dúvida, uma caracterização intensamente eucarística. Depois, não se pode esquecer que o Sínodo dos Bispos foi precedido e, em certo sentido, preparado também pelo Ano da Eucaristia, estabelecido com grande clarividência por João Paulo II para toda a Igreja; teve início com o Congresso Eucarístico Internacional em Guadalajara no mês de Outubro de 2004 e terminou a 23 de Outubro de 2005, no final da XI Assembleia Sinodal, com a canonização de cinco beatos que se distinguiram, de forma particular, pela sua piedade eucarística: o bispo José Bilczewski, os sacerdotes Caetano Catanoso, Sigismundo Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso capuchinho Félix de Nicósia. Graças aos ensinamentos propostos por João Paulo II na Carta Apostólica Mane nobiscum Domine (7) e às preciosas sugestões da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,(8) numerosas foram as iniciativas que as dioceses e as diversas realidades eclesiais empreenderam para despertar e aumentar nos crentes a fé eucarística, para melhorar o cuidado das celebrações e promover a adoração eucarística, para encorajar uma real solidariedade que, partindo da Eucaristia, atingisse os necessitados. Por último, é preciso mencionar a importância da última Encíclica do meu venerado predecessor, a Ecclesia de Eucharistia,(9) deixando-nos através dela uma segura referência do Magistério quanto à doutrina eucarística e um derradeiro testemunho do lugar central que este sacramento divino ocupava na sua vida.
Finalidade do documento
5. Esta Exortação Apostólica pós-sinodal tem por objectivo recolher a multiforme riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos — a começar dos Lineamenta até às Propositiones, passando pelo Instrumentum laboris, asRelationes ante et post disceptationem, as intervenções dos padres sinodais, auditores e delegados fraternos —, com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. Consciente do vasto património doutrinal e disciplinar acumulado no decurso dos séculos à volta da Eucaristia,(10) neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais,(11) que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade. Com esta perspectiva, pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica — a Deus caritas est —, na qual várias vezes falei do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: « O Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que motivo o termoagape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós ».(12)
I PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO ACREDITADO
« A obra de Deus consiste
em acreditar n'Aquele que Ele enviou »
(Jo 6, 29)
A fé eucarística da Igreja
A fé eucarística da Igreja
6. « Mistério da fé! »: com esta exclamação pronunciada logo a seguir às palavras da consagração, o sacerdote proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo diante da conversão substancial do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor Jesus, realidade esta que ultrapassa toda a compreensão humana. Com efeito, a Eucaristia é por excelência « mistério da fé »: « É o resumo e a súmula da nossa fé ».(13) A fé da Igreja é essencialmente fé eucarística e alimenta-se, de modo particular, à mesa da Eucaristia. A fé e os sacramentos são dois aspectos complementares da vida eclesial. Suscitada pelo anúncio da palavra de Deus, a fé é alimentada e cresce no encontro com a graça do Senhor ressuscitado que se realiza nos sacramentos: « A fé exprime-se no rito e este revigora e fortifica a fé ».(14) Por isso, o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; « graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! » (15) Quanto mais viva for a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo.
Santíssima Trindade e Eucaristia
O pão descido do céu
7. O primeiro conteúdo da fé eucarística é o próprio mistério de Deus, amor trinitário. No diálogo de Jesus com Nicodemos, encontramos uma afirmação esclarecedora a tal respeito: « Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n'Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele » (Jo 3, 16-17). Estas palavras revelam a raiz última do dom de Deus. Na Eucaristia, Jesus não dá « alguma coisa », mas dá-Se a Si mesmo; entrega o seu corpo e derrama o seu sangue. Deste modo dá a totalidade da sua própria vida, manifestando a fonte originária deste amor: Ele é o Filho eterno que o Pai entregou por nós. Noutro passo do evangelho, depois de Jesus ter saciado a multidão pela multiplicação dos pães e dos peixes, ouvimo-Lo dizer aos interlocutores que vieram atrás d'Ele até à sinagoga de Cafarnaum: « Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão que vem do céu. O pão de Deus é o que desce do céu para dar a vida ao mundo » (Jo 6, 32-33), acabando por identificar-Se Ele mesmo — a sua própria carne e o seu próprio sangue — com aquele pão: « Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Assim Jesus manifesta-Se como o pão da vida que o Pai eterno dá aos homens.
Dom gratuito da Santíssima Trindade
8. Na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1, 9-10; 3, 8-11). Nela, o Deus-Trindade (Deus Trinitas), que em Si mesmo é amor (1 Jo 4, 7-8), envolve-Se plenamente com a nossa condição humana. No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal (Lc 22, 14-20; 1 Cor 11, 23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se comunica a nós na forma do sacramento: Deus é comunhão perfeita de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2, 7). Mas, é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem medida (Jo 3, 34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.(16) Assim Jesus Cristo, que « pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha » (Heb 9, 14), no dom eucarístico comunica-nos a própria vida divina. Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência. O « mistério da fé » é mistério de amor trinitário, no qual, por graça, somos chamados a participar. Por isso, também nós devemos exclamar com Santo Agostinho: « Se vês a caridade, vês a Trindade ».(17)
Eucaristia:
Jesus verdadeiro Cordeiro imolado
A nova e eterna aliança no sangue do Cordeiro
9. A missão, que trouxe Jesus entre nós, atinge o seu cumprimento no mistério pascal. Do alto da cruz, donde atrai todos a Si (Jo 12, 32), antes de « entregar o Espírito » Jesus diz: « Tudo está consumado » (Jo 19, 30). No mistério da sua obediência até à morte, e morte de cruz (Fil 2, 8), cumpriu-se a nova e eterna aliança. Na sua carne crucificada, a liberdade de Deus e a liberdade do homem juntaram-se definitivamente num pacto indissolúvel, válido para sempre. Também o pecado do homem ficou expiado, uma vez por todas, pelo Filho de Deus (Heb 7, 27; 1 Jo 2, 2; 4, 10). Como já tive ocasião de afirmar, « na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical ».(18) No mistério pascal, realizou-se verdadeiramente a nossa libertação do mal e da morte. Na instituição da Eucaristia, o próprio Jesus falara da « nova e eterna aliança », estipulada no seu sangue derramado (Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20). Esta finalidade última da sua missão era bem evidente já no início da sua vida pública; de facto, nas margens do Jordão, quando João Baptista vê Jesus vir ter com ele, exclama: « Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo » (Jo 1, 29). É significativo que a mesma expressão apareça, sempre que celebramos a Santa Missa, no convite do sacerdote para nos abeirarmos do altar: « Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo ». Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, que Se ofereceu espontaneamente a Si mesmo em sacrifício por nós, realizando assim a nova e eterna aliança. A Eucaristia contém nela esta novidade radical, que nos é oferecida em cada celebração.(19)
A instituição da Eucaristia
10. Deste modo, a nossa reflexão foi deter-se na instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. O facto teve lugar no âmbito duma ceia ritual, que constituía o memorial do acontecimento fundador do povo de Israel: a libertação da escravidão do Egipto. Esta ceia ritual, associada com a imolação dos cordeiros (Ex 12, 1-28. 43-51), era memória do passado, mas ao mesmo tempo também memória profética, ou seja, anúncio duma libertação futura; de facto, o povo experimentara que aquela libertação não tinha sido definitiva, pois a sua história ainda estava demasiadamente marcada pela escravidão e pelo pecado. O memorial da antiga libertação abria-se, assim, à súplica e ao anseio por uma salvação mais profunda, radical, universal e definitiva. É neste contexto que Jesus introduz a novidade do seu dom; na oração de louvor — aBerakah —, Ele dá graças ao Pai não só pelos grandes acontecimentos da história passada, mas também pela sua própria « exaltação ». Ao instituir o sacramento da Eucaristia, Jesus antecipa e implica o sacrifício da cruz e a vitória da ressurreição; ao mesmo tempo, revela-Se como o verdadeiro cordeiro imolado, previsto no desígnio do Pai desde a fundação do mundo, como se lê na I Carta de Pedro (1, 18-20). Ao colocar o dom de Si mesmo neste contexto, Jesus manifesta o sentido salvífico da sua morte e ressurreição, mistério este que se torna uma realidade renovadora da história e do mundo inteiro. Com efeito, a instituição da Eucaristia mostra como aquela morte, de per si violenta e absurda, se tenha tornado, em Jesus, acto supremo de amor e libertação definitiva da humanidade do mal.
A figura deu lugar à Verdade
11. Como vimos, Jesus insere a sua novidade (novum) radical no âmbito da antiga ceia sacrificial hebraica. Uma tal ceia, nós, cristãos, já não temos necessidade de a repetir. Como justamente dizem os Padres, figura transit in veritatem: aquilo que anunciava as realidades futuras cedeu agora o lugar à própria Verdade. O antigo rito consumou-se e ficou definitivamente superado mediante o dom de amor do Filho de Deus encarnado. O alimento da verdade, Cristo imolado por nós, pôs termo às figuras (dat figuris terminum).(20) Com a sua ordem « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-Lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão. Assim Jesus deixou-nos a missão de entrar na sua « hora »: « A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação ».(21) Ele « arrasta-nos para dentro de Si ».(22) A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de « fissão nuclear » (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28).
O Espírito Santo e a Eucaristia
Jesus e o Espírito Santo
12. Com a sua palavra e com o pão e o vinho, o próprio Senhor nos ofereceu os elementos essenciais do culto novo. A Igreja, sua Esposa, é chamada a celebrar o banquete eucarístico dia após dia em memória d'Ele. Deste modo, ela insere o sacrifício redentor do seu Esposo na história dos homens e torna-o sacramentalmente presente em todas as culturas. Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço.(23) A propósito, é necessário despertar em nós a consciência da função decisiva que exerce o Espírito Santo no desenvolvimento da forma litúrgica e no aprofundamento dos mistérios divinos. O Paráclito, primeiro dom concedido aos crentes,(24) activo já na criação (Gn 1, 2), está presente em plenitude na vida inteira do Verbo encarnado: com efeito, Jesus Cristo é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo (Mt 1, 18; Lc 1, 35); no início da sua missão pública, nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma de pomba (Mt 3, 16 e par.); neste mesmo Espírito, age, fala e exulta (Lc 10, 21); e é n'Ele que Jesus pode oferecer-Se a Si mesmo (Heb 9, 14). No chamado « discurso de despedida » referido por João, Jesus põe claramente em relação o dom da sua vida no mistério pascal com o dom do Espírito aos Seus (Jo 16, 7). Depois de ressuscitado, trazendo na sua carne os sinais da paixão, pode derramar o Espírito (Jo 20, 22), tornando os seus discípulos participantes da mesma missão d'Ele (Jo 20, 21). Em seguida, será o Espírito que ensina aos discípulos todas as coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo tinha dito (Jo 14, 26), porque compete a Ele, enquanto Espírito da verdade (Jo 15, 26), introduzir os discípulos na verdade total (Jo 16, 13). Segundo narram os Actos, o Espírito desce sobre os Apóstolos reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes (2, 1-4), e impele-os para a missão de anunciar a boa nova a todos os povos. Portanto, é em virtude da acção do Espírito que o próprio Cristo continua presente e activo na sua Igreja, a partir do seu centro vital que é a Eucaristia.
Espírito Santo e celebração eucarística
13. Neste horizonte, compreende-se a função decisiva que tem o Espírito Santo na celebração eucarística e, de modo particular, no que se refere à transubstanciação. É fácil de comprovar a consciência disto mesmo nos Padres da Igreja; nas suas Catequeses, São Cirilo de Jerusalém recorda que « invocamos Deus misericordioso para que envie o seu Santo Espírito sobre as oblações que apresentamos a fim de Ele transformar o pão em corpo de Cristo e o vinho em sangue de Cristo. O que o Espírito Santo toca, é santificado e transformado totalmente ».(25) Também São João Crisóstomo assinala que o sacerdote invoca o Espírito Santo quando celebra o Sacrifício: (26) à semelhança de Elias, o ministro atrai o Espírito Santo para que, « descendo a graça sobre a vítima, se incendeiem por meio dela as almas de todos ».(27) É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que « a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo ».(28) O Espírito, invocado pelo celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é o mesmo que reúne os fiéis « num só corpo », tornando-os uma oferta espiritual agradável ao Pai.(29)
Eucaristia e Igreja
Eucaristia, princípio causal da Igreja
14. Através do sacramento eucarístico, Jesus compromete os fiéis na sua própria « hora »; mostra-nos assim a ligação que quis entre Ele mesmo e nós, entre a sua pessoa e a Igreja. De facto, o próprio Cristo, no sacrifício da cruz, gerou a Igreja como sua esposa e seu corpo. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a semelhança que há entre a origem de Eva do lado de Adão adormecido (Gn 2, 21-23) e a da nova Eva, a Igreja, do lado aberto de Cristo mergulhado no sono da morte: do seu lado trespassado — narra João — saiu sangue e água (Jo 19, 34), símbolo dos sacramentos.(30) Um olhar contemplativo para « Aquele que trespassaram » (Jo 19, 37) leva-nos a considerar a ligação causal entre o sacrifício de Cristo, a Eucaristia e a Igreja. Com efeito, esta « vive da Eucaristia ».(31) Uma vez que nela se torna presente o sacrifício redentor de Cristo, temos de reconhecer antes de mais que « existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja ».(32) A Eucaristia é Cristo que Se dá a nós, edificando-nos continuamente como seu corpo. Portanto, na sugestiva circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a própria Igreja que faz a Eucaristia,(33) a causalidade primária está expressa na primeira fórmula: a Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na Eucaristia, precisamente porque o próprio Cristo Se deu primeiro a ela no sacrifício da Cruz. A possibilidade que a Igreja tem de « fazer » a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de Si mesmo. Também este aspecto nos persuade de quão verdadeira seja a frase de São João: « Ele amou-nos primeiro » (1 Jo 4, 19). Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro.
Eucaristia e comunhão eclesial
15. A Eucaristia é, pois, constitutiva do ser e do agir da Igreja. Por isso, a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras — corpus Christi — o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo.(34) Bem atestado na tradição, este dado faz crescer em nós a consciência da indissolubilidade entre Cristo e a Igreja. Oferecendo-Se a Si mesmo em sacrifício por nós, o Senhor Jesus preanunciou de modo eficaz no seu dom o mistério da Igreja. É significativo o modo como a Oração Eucarística II, ao invocar o Paráclito, formula a prece pela unidade da Igreja: « ... participando no corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo ». Esta passagem ajuda a compreender como a eficácia (res) do sacramento eucarístico seja a unidade dos fiéis na comunhão eclesial. Assim, a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão.(35)
O servo de Deus João Paulo II, na sua Encíclica Ecclesia de Eucharistia, tinha já chamado a atenção para a relação entre Eucaristia ecommunio: falou do memorial de Cristo como sendo a « suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja ».(36) A unidade da comunhão eclesial revela-se, concretamente, nas comunidades cristãs e renova-se no acto eucarístico que as une e diferencia em Igrejas particulares, « in quibus et ex quibus una et unica Ecclesia catholica exsistit – nas quais e pelas quais existe a Igreja Católica, una e única ».(37) É precisamente a realidade da única Eucaristia celebrada em cada diocese ao redor do respectivo Bispo que nos faz compreender como as próprias Igrejas particulares subsistam in e ex Ecclesia. De facto, « a unicidade e indivisibilidade do corpo eucarístico do Senhor implicam a unicidade do seu corpo místico, que é a Igreja una e indivisível. Do centro eucarístico surge a necessária abertura de cada comunidade celebrante, de cada Igreja particular: ao deixar-se atrair pelos braços abertos do Senhor, consegue-se a inserção no seu corpo, único e indiviso ».(38) Por este motivo, na celebração da Eucaristia, cada fiel encontra-se na sua Igreja, isto é, na Igreja de Cristo. Nesta perspectiva eucarística, adequadamente entendida, a comunhão eclesial revela-se realidade católica por sua natureza.(39) O facto de sublinhar esta raiz eucarística da comunhão eclesial pode contribuir eficazmente também para o diálogo ecuménico com as Igrejas e com as Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Sé de Pedro. Na realidade, a Eucaristia estabelece objectivamente um forte vínculo de unidade entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, que conservaram genuína e integralmente a natureza do mistério da Eucaristia. Ao mesmo tempo, a relevância dada ao carácter eclesial da Eucaristia pode tornar-se elemento privilegiado também no diálogo com as Comunidades nascidas da Reforma.(40)
Eucaristia e Sacramentos
Sacramentalidade da Igreja
16. O Concílio Vaticano II lembrou que « os restantes sacramentos, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo: assim são eles convidados e levados a oferecer, juntamente com Ele, a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas ».(41) Esta relação íntima da Eucaristia com os demais sacramentos e com a existência cristã compreende-se, na sua raiz, quando se contempla o mistério da própria Igreja como sacramento.(42) A este respeito, o referido Concílio afirmou que « a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(43) Ela, enquanto « povo — como diz São Cipriano — reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,(44) é sacramento da comunhão trinitária.
O facto de a Igreja ser « universal sacramento da salvação »(45) mostra que a « economia » sacramental determina, em última análise, o modo como Jesus Cristo único Salvador, por meio do Espírito, alcança a nossa vida na especificidade das suas circunstâncias. A Igreja recebe-se e simultaneamente exprime-se nos sete sacramentos, pelos quais a graça de Deus influencia concretamente a existência dos fiéis para que toda a sua vida, redimida por Cristo, se torne culto agradável a Deus. Nesta perspectiva, desejo sublinhar aqui alguns elementos, assinalados pelos padres sinodais, que podem ajudar a identificar a relação dos diversos sacramentos com o mistério eucarístico.
I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogar-nos — como sugeriram os padres sinodais — se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de facto, é preciso não esquecer jamais que somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na acção pastoral uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48) Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.(49)
A ordem dos sacramentos da iniciação
18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente (50) e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,(51) se comparada com a das crianças.(52) Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de carácter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que háde ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário de iniciação. Receber o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa.
II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos — é certo — que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.(56) Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a confissão frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada ».(64) O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos « quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da confissão e da comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.
III. Eucaristia e Unção dos Enfermos
22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: « Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia » (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt25, 40).
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). De facto, na vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz. Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice do meu sangue » senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara, noutras assembleias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz respeito à identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.(71) De facto, « no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a acção litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10, 14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II (76) e com os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma distribuição mais equitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.(78) Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para o serviço sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente formado e admitido à ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.(80) Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.
Gratidão e esperança
26. Enfim, é necessário ter maior fé e esperança na iniciativa divina. Apesar da escassez de clero que se verifica em algumas regiões, não deve esmorecer jamais a confiança de que Cristo continua a suscitar homens que não hesitam em abandonar qualquer outra ocupação para dedicar-se totalmente à celebração dos mistérios sagrados, à pregação do Evangelho e ao ministério pastoral. Nesta ocasião, desejo dar voz à gratidão da Igreja inteira por todos os bispos e presbíteros que cumprem, com fiel dedicação e empenho, a própria missão. Naturalmente, este agradecimento da Igreja estende-se também aos diáconos, a quem são impostas as mãos « não em ordem ao sacerdócio mas ao ministério ».(81) Como recomendou a assembleia do Sínodo, dirijo um obrigado especial aos presbíteros fidei donum que edificam a comunidade, com competência e generosa dedicação, anunciando-lhe a palavra de Deus e repartindo o pão da vida, sem pouparem as suas energias ao serviço da missão da Igreja.(82) Por fim, é preciso agradecer a Deus pelos numerosos sacerdotes que tiveram de sofrer até ao sacrifício da vida por servir a Cristo. Neles se manifesta, com a eloquência dos factos, o que significa ser sacerdote a fundo; trata-se de comoventes testemunhos que poderão inspirar muitos jovens a seguirem por sua vez a Cristo e gastarem a sua vida pelos outros, encontrando precisamente assim a vida verdadeira.
V. Eucaristia e Matrimónio
Eucaristia, sacramento esponsal
27. A Eucaristia, sacramento da caridade, apresenta uma relação particular com o amor do homem e da mulher unidos em matrimónio. Aprofundar tal relação é uma necessidade do nosso tempo.(83) Várias vezes o Papa João Paulo II teve ocasião de afirmar o carácter esponsal da Eucaristia e a sua relação peculiar com o sacramento do matrimónio: « A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o sacramento do Esposo, da Esposa ».(84) Aliás, « toda a vida cristã tem a marca do amor esponsal entre Cristo e a Igreja. Já o Baptismo, entrada no povo de Deus, é um mistério nupcial; é, por assim dizer, o banho de núpcias que precede o banquete das bodas, a Eucaristia ».(85) Esta corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimónio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa (Ef 5, 31-32). O consentimento recíproco, que o marido e a esposa trocam entre si em Cristo constituindo-os em comunidade de vida e de amor, tem também uma dimensão eucarística; com efeito, na teologia paulina, o amor esponsal é sinal sacramental do amor de Cristo pela sua Igreja, um amor que tem o seu ponto culminante na cruz, expressão das suas « núpcias » com a humanidade e, ao mesmo tempo, origem e centro da Eucaristia. Por isso, a Igreja manifesta uma particular solidariedade espiritual a todos aqueles que fundaram a sua família sobre o sacramento do Matrimónio.(86) A família — igreja doméstica ( 87) — é um âmbito primário da vida da Igreja, especialmente pelo papel decisivo que tem na educação cristã dos filhos.(88) Neste contexto, o Sínodo recomendou também o reconhecimento da missão singular que tem a mulher na família e na sociedade, missão esta que há-de ser protegida, salvaguardada e promovida.(89) A sua dimensão de esposa e mãe constitui uma realidade imprescindível, que nunca deve ser desprezada.
Eucaristia e unidade do Matrimónio
28. É precisamente à luz desta relação intrínseca entre Matrimónio, família e Eucaristia que se podem considerar alguns problemas pastorais. O vínculo fiel, indissolúvel e exclusivo que une Cristo e a Igreja e tem expressão sacramental na Eucaristia, está de harmonia com o dado antropológico primordial segundo o qual o homem deve unir-se de modo definitivo com uma só mulher, e vice-versa (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Nesta linha de pensamento, o Sínodo dos Bispos debruçou-se sobre a prática pastoral que deve ser seguida com as pessoas originárias de culturas onde é praticada a poligamia, que recebem o anúncio do Evangelho: quantos vivem em tal situação e se abrem à fé cristã devem ser ajudados a integrar o seu projecto humano na novidade radical de Cristo; no percurso do catecumenado, Cristo alcança-os na sua condição específica e chama-os à verdade plena do amor passando através das renúncias que são necessárias para chegarem à comunhão eclesial perfeita. A Igreja acompanha-os com uma pastoral imbuída simultaneamente de suavidade e de firmeza,(90) mostrando-lhes sobretudo a luz dos mistérios cristãos que se reflecte sobre a natureza e os afectos humanos.
Eucaristia e indissolubilidade do Matrimónio
29. Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimónio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar.(91) Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimónio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos. Os pastores, por amor da verdade, são obrigados a discernir bem as diferentes situações, para ajudar espiritualmente e de modo adequado os fiéis implicados.(92) O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos.
Nos casos em que surjam legitimamente dúvidas sobre a validade do Matrimónio sacramental contraído, deve fazer-se tudo o que for necessário para verificar o fundamento das mesmas. Há que assegurar, pois, no pleno respeito do direito canónico,(93) a presença no território dos tribunais eclesiásticos, o seu carácter pastoral, a sua actividade correcta e pressurosa; (94) é necessário haver, em cada diocese, um número suficiente de pessoas preparadas para o solícito funcionamento dos tribunais eclesiásticos. Recordo que « é uma obrigação grave tornar a actuação institucional da Igreja nos tribunais cada vez mais acessível aos fiéis ».(95) No entanto, é preciso evitar que a preocupação pastoral seja vista como se estivesse em contraposição com o direito; ao contrário, deve-se partir do pressuposto que o ponto fundamental de encontro entre direito e pastoral é o amor pela verdade: com efeito, esta nunca é abstracta, mas « integra-se no itinerário humano e cristão de cada fiel ».(96) Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objectivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimónio.(97)
Vista a complexidade do contexto cultural em que vive a Igreja em muitos países, o Sínodo recomendou ainda que se tivesse o máximo cuidado pastoral com a formação dos nubentes e a verificação prévia das suas convicções sobre os compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do Matrimónio. Um sério discernimento a tal respeito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois não poderão honrar.(98) Demasiado grande é o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do Matrimónio e da família fundada sobre o mesmo para não nos comprometermos a fundo neste âmbito pastoral específico; Matrimónio e família são instituições cuja verdade deve ser promovida e defendida de qualquer equívoco, porque todo o dano a elas causado é realmente uma ferida que se inflige à convivência humana como tal.
Eucaristia e escatologia
Eucaristia, dom para o homem a caminho
30. Se é certo que os sacramentos são uma realidade que pertence à Igreja peregrina no tempo( 99) rumo à plena manifestação da vitória de Cristo ressuscitado, é igualmente verdade que, sobretudo na liturgia eucarística, nos é dado saborear antecipadamente a consumação escatológica para a qual todo o homem e a criação inteira estão a caminho (Rm 8, 19s). O homem é criado para a felicidade verdadeira e eterna, que só o amor de Deus pode dar; mas a nossa liberdade ferida extraviar-se-ia se não lhe fosse possível experimentar, já desde agora, algo da consumação futura. Aliás, para poder caminhar na direcção justa, o homem necessita de estar orientado para a meta final; esta, na realidade, é o próprio Cristo Senhor, vencedor do pecado e da morte, que Se torna presente para nós de maneira especial na celebração eucarística. Deste modo, embora sejamos ainda « estrangeiros e peregrinos » (1 Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade a caminho.
O banquete escatológico
31. Reflectindo sobre este mistério, podemos dizer que Cristo, com a sua vinda, Se colocou em sintonia com a expectativa presente no povo de Israel, na humanidade inteira e fundamentalmente na própria criação. Com o dom de Si mesmo, inaugurou objectivamente o tempo escatológico. Cristo veio chamar à unidade o povo de Deus que andava disperso (Jo 11, 52), manifestando claramente a intenção de congregar a comunidade da aliança para dar cumprimento às promessas feitas por Deus a nossos pais (Jer 23, 3; 31, 10; Lc 1, 55.70). Com o chamamento dos Doze — número que evoca as doze tribos de Israel — e o mandato que lhes confiou na Última Ceia, antes da sua paixão redentora, de celebrarem o seu memorial, Jesus manifestou que queria transferir, para a comunidade inteira por Ele fundada, a missão de ser, na história, sinal e instrumento da reunificação escatológica que n'Ele teve início. Por isso, em cada celebração eucarística, realiza-se sacramentalmente a unificação escatológica do povo de Deus. Para nós, o banquete eucarístico é uma antecipação real do banquete final, preanunciado pelos profetas (Is 25, 6-9) e descrito no Novo Testamento como « as núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que se hão-de celebrar na comunhão dos santos.(100)
Oração pelos defuntos
32. A celebração eucarística, na qual anunciamos a morte do Senhor e proclamamos a sua ressurreição enquanto aguardamos a sua vinda gloriosa, é penhor da glória futura, quando mesmo os nossos corpos serão glorificados. Ao celebrarmos o memorial da nossa salvação, reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne juntamente com a possibilidade de encontrarmos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé. Nesta linha, queria, juntamente com os padres sinodais, lembrar a todos os fiéis a importância da oração de sufrágio, particularmente a celebração de Missas, pelos defuntos para que, purificados, possam chegar à visão beatífica de Deus.(101) Sempre que descobrimos de novo a dimensão escatológica presente na Eucaristia, celebrada e adorada, somos apoiados no nosso caminho e confortados na esperança da glória (Rm 5, 2; Tt 2, 13).
A Eucaristia e a Virgem Maria
33. Da relação entre a Eucaristia e os restantes sacramentos juntamente com o significado escatológico dos santos mistérios, irrompe o perfil da vida cristã, chamada a ser em cada instante culto espiritual, oferta de si mesma agradável a Deus. E, se é verdade que nos encontramos todos ainda a caminho rumo à plena consumação da nossa esperança, isto não impede de podermos já agora reconhecer, com gratidão, que tudo aquilo que Deus nos deu, se realizou perfeitamente na Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa: a sua assunção ao céu em corpo e alma é, para nós, sinal de segura esperança, enquanto nos aponta a nós, peregrinos no tempo, aquela meta escatológica que o sacramento da Eucaristia desde já nos faz saborear.
Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental com que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana. Desde a anunciação ao Pentecostes, Maria de Nazaré aparece como uma pessoa cuja liberdade está completamente disponível à vontade de Deus; a sua Imaculada Conceição revela-se propriamente na docilidade incondicional à palavra divina. A fé obediente é a forma que a sua vida assume em cada instante perante a acção de Deus: Virgem à escuta, Ela vive em plena sintonia com a vontade divina; conserva no seu coração as palavras que lhe chegam da parte de Deus e, dispondo-as à maneira de um mosaico, aprende a compreendê-las mais a fundo (Lc 2, 19.51); Maria é a grande Crente que, cheia de confiança, Se coloca nas mãos de Deus, abandonando-Se à sua vontade.(102) Um tal mistério vai crescendo de intensidade até chegar ao pleno envolvimento d'Ela na missão redentora de Jesus; como afirmou o Concílio Vaticano II, « assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz. Junto desta esteve, não sem desígnio de Deus (Jo 19, 25), padecendo acerbamente com o seu Filho único, e associando-Se com coração de mãe ao seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d'Ela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-A por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher, eis aí o teu filho (Jo 19, 26-27) ».(103) Desde a anunciação até à cruz, Maria é Aquela que acolhe a Palavra que n'Ela Se fez carne e foi até emudecer no silêncio da morte. É Ela, enfim, que recebe nos seus braços o corpo imolado, já exânime, d'Aquele que verdadeiramente amou os Seus « até ao fim » (Jo 13, 1).
Por isso, sempre que na liturgia eucarística nos abeiramos do corpo e do sangue de Cristo, dirigimo-nos também a Ela que, por toda a Igreja, acolheu o sacrifício de Cristo, aderindo plenamente ao mesmo. Justamente afirmaram os padres sinodais que « Maria inaugura a participação da Igreja no sacrifício do Redentor ».(104) Ela é a Imaculada que acolhe incondicionalmente o dom de Deus, e desta forma fica associada à obra da salvação. Maria de Nazaré, ícone da Igreja nascente, é o modelo para cada um de nós saber como é chamado a acolher a doação que Jesus fez de Si mesmo na Eucaristia.
II PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO CELEBRADO
« Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão
que vem do céu; meu Pai é que vos dá
o verdadeiro pão que vem do céu » (Jo 6, 32)
Norma da oração e norma de fé
34. O Sínodo dos Bispos reflectiu demoradamente sobre a relação intrínseca entre fé eucarística e celebração, pondo em evidência a ligação entre a norma da oração (lex orandi) e a norma de fé (lex credendi) e sublinhando o primado da acção litúrgica. É necessário viver a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de que « a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente em relação com a acção litúrgica da Igreja »:(105) neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si próprio no mistério pascal.
Beleza e liturgia
35. A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De facto, a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). Na liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a Si e chama à comunhão. Em Jesus, como costumava dizer São Boaventura, contemplamos a beleza e o esplendor das origens.(106) Referimo-nos aqui a este atributo da beleza, vista não enquanto mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor.(107) Já na criação, Deus Se deixa entrever na beleza e harmonia do universo (Sab 13, 5;Rm 1, 19-20). Depois, no Antigo Testamento, encontramos sinais grandiosos do esplendor da força de Deus, que Se manifesta com a sua glória através dos prodígios realizados no meio do povo eleito (Ex 14; 16, 10; 24, 12-18; Nm 14, 20-23). No Novo Testamento, realiza-se definitivamente esta epifania de beleza na revelação de Deus em Jesus Cristo: (108) Ele é a manifestação plena da glória divina. Na glorificação do Filho, resplandece e comunica-se a glória do Pai (Jo 1, 14; 8, 54; 12, 28; 17, 1). Mas, esta beleza não é uma simples harmonia de formas; « o mais belo dos filhos do homem » (Sal 45/44, 3) misteriosamente é também um indivíduo « sem distinção nem beleza que atraia o nosso olhar » (Is 53, 2). Jesus Cristo mostra-nos como a verdade do amor sabe transfigurar inclusive o mistério sombrio da morte na luz radiante da ressurreição. Aqui o esplendor da glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal.
A beleza da liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra. O memorial do sacrifício redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se diante deles (Mc 9, 2). Concluindo, a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há-de tornar conscientes da atenção que se deve prestar à acção litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza.
A celebração eucarística,
obra de Cristo inteiro
Cristo inteiro: cabeça e corpo
36. A beleza intrínseca da liturgia tem, como sujeito próprio, Cristo ressuscitado e glorificado no Espírito Santo, que inclui a Igreja na sua acção.(109) Nesta perspectiva, é muito sugestivo recordar as palavras de Santo Agostinho que descrevem, de modo eficaz, esta dinâmica de fé própria da Eucaristia; referindo-se precisamente ao mistério eucarístico, o grande santo de Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a Si mesmo: « O pão que vedes sobre o altar, santificado com a palavra de Deus, é o corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós mesmos sois Aquele que recebestes ».(110) Assim, « tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo ».(111) Nisto podemos contemplar a acção misteriosa de Deus, que inclui a unidade profunda entre nós e o Senhor Jesus: « De facto, não se pode crer que Cristo esteja na cabeça sem estar também no corpo, pois Ele está todo inteiro na cabeça e no corpo (Christus totus in capite et in corpore) ».(112)
Eucaristia e Cristo ressuscitado
37. Visto que a liturgia eucarística é essencialmente acção de Deus (actio Dei) que nos envolve em Jesus por meio do Espírito, o seu fundamento não está à mercê do nosso arbítrio e não pode suportar a chantagem das modas passageiras. Vale aqui também, sem dúvida, a advertência de São Paulo: « Ninguém pode pôr outro fundamento diferente do que foi posto, isto é, Jesus Cristo » (1 Cor 3, 11). O Apóstolo das Gentes certifica-nos ainda, referindo-se à Eucaristia, que não nos comunica uma doutrina pessoal, mas aquilo que, por sua vez, tinha recebido (1 Cor 11, 23); de facto, a celebração da Eucaristia implica a Tradição viva. A Igreja celebra o sacrifício eucarístico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experiência do Ressuscitado e da efusão do Espírito Santo. Por este motivo, a comunidade cristã, desde os seus primórdios, reúne-se para a fracção do pão (fractio panis) no dia do Senhor. O dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, o domingo, é também o primeiro dia da semana, aquele em que a tradição do Antigo Testamento contemplava o início da criação. O dia da criação tornou-se agora o dia da « nova criação », o dia da nossa libertação, no qual fazemos memória de Cristo morto e ressuscitado.(113)
Arte da celebração
38. Durante os trabalhos sinodais, foi várias vezes recomendada a necessidade de superar toda e qualquer separação entre a arte da celebração (ars celebrandi, isto é, a arte de celebrar rectamente) e a participação plena, activa e frutuosa de todos os fiéis: com efeito, o primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação activa (actuosa participatio).(114) Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa (1 Pd 2, 4-5.9).(115)
O bispo, liturgista por excelência
39. Se é verdade que todo o povo de Deus participa na liturgia eucarística, uma função imprescindível, relativamente à correcta ars celebrandi, compete todavia àqueles que receberam o sacramento da Ordem. Bispos, sacerdotes e diáconos, cada qual segundo o próprio grau, devem considerar a celebração como o seu dever principal.(116) Antes de mais ninguém, o bispo diocesano: de facto, como « primeiro dispensador dos mistérios de Deus na Igreja particular que lhe está confiada, ele é o guia, o promotor e o guardião de toda a vida litúrgica ».(117) Tudo isto é decisivo para a vida da Igreja particular, não só porque a comunhão com o bispo é condição para que seja legítima uma celebração no respectivo território, mas também porque ele mesmo é o liturgista por excelência da sua Igreja.(118) Compete-lhe salvaguardar a concorde unidade das celebrações na sua diocese; por isso, deve ser « preocupação do bispo fazer com que os presbíteros, os diáconos e os fiéis compreendam cada vez melhor o sentido autêntico dos ritos e dos textos litúrgicos, levando-os deste modo a uma activa e frutuosa celebração da Eucaristia ».(119) De modo particular, exorto a fazer tudo o que for necessário a fim de que as celebrações litúrgicas realizadas pelo bispo na catedral se desenrolem no respeito cabal da arte da celebração, para que possam ser consideradas como modelo por todas as igrejas espalhadas no território.(120)
O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais
40. Ao ressaltar a importância da arte da celebração, consequentemente põe-se em evidência o valor das normas litúrgicas.(121) Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a utilização das formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a harmonia do rito, das vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração eucarística é frutuosa quando os sacerdotes e os responsáveis da pastoral litúrgica se esforçam por dar a conhecer os livros litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as riquezas estupendas daInstrução Geral do Missal Romano e da Instrução das Leituras da Missa. Talvez se dê por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e devido apreço, mas frequentemente não é assim; na realidade, trata-se de textos onde estão contidas riquezas que guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de Deus ao longo dos dois milénios da sua história. Igualmente importante para uma correcta arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do carácter de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse dom inefável.
Arte ao serviço da celebração
41. A profunda ligação entre a beleza e a liturgia deve levar-nos a considerar atentamente todas as expressões artísticas colocadas ao serviço da celebração.(122) Uma componente importante da arte sacra é, sem dúvida, a arquitectura das igrejas,(123) nas quais há-de sobressair a coerência entre os elementos próprios do presbitério: altar, crucifixo, sacrário, ambão, cadeira. A este respeito, tenha-se presente que a finalidade da arquitectura sacra é oferecer à Igreja que celebra os mistérios de fé, especialmente a Eucaristia, o espaço mais idóneo para uma condigna realização da sua acção litúrgica; (124) de facto, a natureza do templo cristão define-se precisamente pela acção litúrgica, a qual implica a reunião dos fiéis (ecclesia), que são as pedras vivas do templo (1 Pd 2, 5).
O mesmo princípio vale para toda a arte sacra em geral, especialmente para a pintura e a escultura, devendo a iconografia religiosa ser orientada para a mistagogia sacramental. Um conhecimento profundo das formas que a arte sacra conseguiu produzir, ao longo dos séculos, pode ser de grande ajuda para quem tenha a responsabilidade de chamar arquitectos e artistas para comissionar-lhes obras de arte destinadas à acção litúrgica; por isso, é indispensável que, na formação dos seminaristas e dos sacerdotes, se inclua, entre as disciplinas importantes, a História da Arte com especial referimento aos edifícios de culto à luz das normas litúrgicas. Enfim, é necessário que, em tudo quanto tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza; dever-se-á ter respeito e cuidado também pelos paramentos, as alfaias, os vasos sagrados, para que, interligados de forma orgânica e ordenada, alimentem o enlevo pelo mistério de Deus, manifestem a unidade da fé e reforcem a devoção.(125)
O canto litúrgico
42. Na arte da celebração, ocupa lugar de destaque o canto litúrgico.(126) Com razão afirma Santo Agostinho, num famoso sermão: « O homem novo conhece o cântico novo. O cântico é uma manifestação de alegria e, se considerarmos melhor, um sinal de amor ».(127) O povo de Deus, reunido para a celebração, canta os louvores de Deus. Na sua história bimilenária, a Igreja criou, e continua a criar, música e cânticos que constituem um património de fé e amor que não se deve perder. Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico como outro; a propósito, é necessário evitar a improvisação genérica ou a introdução de géneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia. Enquanto elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; (128) consequentemente, tudo — no texto, na melodia, na execução — deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos.(129) Enfim, embora tendo em conta as distintas orientações e as diferentes e amplamente louváveis tradições, desejo — como foi pedido pelos padres sinodais — que se valorize adequadamente o canto gregoriano,(130) como canto próprio da liturgia romana.(131)
A estrutura da celebração eucarística
43. Depois de ter recordado os elementos fundamentais da arte da celebração relevados durante os trabalhos sinodais, desejo chamar a atenção mais especificamente para algumas partes da estrutura da celebração eucarística, que necessitam de um cuidado particular no nosso tempo, a fim de permanecermos fiéis à intenção profunda da renovação litúrgica que o Concílio Vaticano II quis em continuidade com toda a grande tradição eclesial.
Unidade intrínseca da acção litúrgica
44. Antes de mais, é necessário reflectir sobre a unidade intrínseca do rito da Santa Missa, evitando, tanto nas catequeses como na modalidade de celebração, que se dê ensejo a uma visão justaposta das duas partes do rito: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística — para além dos ritos iniciais e conclusivo — « estão entre si tão estreitamente ligadas que constituem um único acto de culto ».(132) De facto, existe uma ligação intrínseca entre a palavra de Deus e a parte eucarística: ao ouvirmos a palavra de Deus, nasce ou reforça-se a fé (Rm 10, 17), enquanto, na parte eucarística, o Verbo feito carne dá-Se a nós como alimento espiritual; (133) assim, « a partir das duas mesas, a da palavra de Deus e a do corpo de Cristo, a Igreja recebe e oferece aos fiéis o pão de vida ».(134) Por isso, deve ter-se constantemente presente que a palavra de Deus, lida e anunciada na liturgia pela Igreja, conduz à Eucaristia como a seu fim conatural.
A liturgia da palavra
45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da palavra seja sempre devidamente preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias, com a proclamação da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueçamos de que, « quando na igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio Deus que fala ao seu povo, é Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho ».(135) Se as circunstâncias o recomendarem, pode-se pensar numas breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a tomar renovada consciência do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne (Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele está presente na acção litúrgica. Neste horizonte sacramental da revelação cristã,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de Deus permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; também aqui se mostra em toda a sua verdade a conhecida asserção: « A ignorância da Escritura é ignorância de Cristo ».(137)
Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes no Leccionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da palavra e da leitura orante (lectio divina). Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração confirmadas pela tradição: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e ainda as celebrações das Vigílias. A oração dos salmos, as leituras bíblicas e as da grande tradição apresentadas no Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do acontecimento de Cristo e da economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a compreensão e a participação na celebração eucarística.(138)
A homilia
46. Pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, esta « constitui parte integrante da acção litúrgica »,(139) cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da palavra de Deus na vida dos fiéis. Por isso, os ministros ordenados devem « preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura ».(140) Evitem-se homilias genéricas ou abstractas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequética e exortativa da homilia. Considera-se que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está autorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro « pilares » do Catecismo da Igreja Católica e no recente Compêndio: a profissão da fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã.(143)
Apresentação das oferendas
47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a apresentação das oferendas. Não se trata simplesmente duma espécie de « intervalo » entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, o que faria, sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto de duas partes interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um significado muito grande: no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a criação é assumida por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao Pai.(144) Nesta perspectiva, levamos ao altar também todo o sofrimento e tribulação do mundo, na certeza de que tudo é precioso aos olhos de Deus. Este gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas complicações para ser vivido no seu significado autêntico: o mesmo permite valorizar a participação primeira que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à perfeição, e dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, através da celebração eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de Cristo.
A Oração Eucarística
48. A Oração Eucarística é « o ponto central e culminante de toda a celebração »; (145) merece ser convenientemente ressaltada a sua importância. As diversas Orações Eucarísticas contidas no Missal foram-nos transmitidas pela Tradição viva da Igreja e caracterizam-se por uma riqueza teológica e espiritual inesgotável; os fiéis devem poder ser capazes de apreciá-la. A isto mesmo nos ajuda a Instrução Geral do Missal Romano, quando lembra os elementos fundamentais de cada Oração Eucarística: acção de graças, aclamação, epiclese, narração da instituição, consagração, anamnese, oblação, intercessões e doxologia final.(146) Em particular, a espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas se se contempla a profunda unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito Santo e a narração da instituição,(147) quando « se realiza o sacrifício que o próprio Cristo instituiu na Última Ceia ».(148) De facto, « por meio de invocações especiais, a Igreja implora o poder do Espírito Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, se convertam no corpo e sangue de Cristo, e para que a vítima imaculada, que vai ser recebida na comunhão, opere a salvação daqueles que dela vão participar ».(149)
Saudação da paz
49. A Eucaristia é, por sua natureza, sacramento da paz. Na celebração litúrgica, esta dimensão do mistério eucarístico encontra a sua manifestação específica no rito da saudação da paz. Trata-se, sem dúvida, dum sinal de grande valor (Jo 14, 27). Neste nosso tempo pavorosamente cheio de conflitos, tal gesto adquire — mesmo do ponto de vista da sensibilidade comum — um relevo particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua missão própria a de implorar ao Senhor o dom da paz e da unidade para si mesma e para a família humana inteira. A paz é, sem dúvida, uma aspiração radical que se encontra no coração de cada um; a Igreja dá voz ao pedido de paz e reconciliação que brota do espírito de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o Àquele que « é a nossa paz » (Ef 2, 14) e pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem falido os esforços humanos. A partir de tudo isto, é possível compreender a intensidade com que frequentemente é sentido o rito da paz na celebração litúrgica. A este respeito, porém, durante o Sínodo dos Bispos foi sublinhada a conveniência de moderar este gesto, que pode assumir expressões excessivas, suscitando um pouco de confusão na assembleia precisamente antes da comunhão. É bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais próximo.(150)
Distribuição e recepção da Eucaristia
50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a distribuição e a recepção da sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos ministros ordenados e àqueles que, devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o ministério da distribuição da Eucaristia, que façam o possível para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto às prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados; ( 151) todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes, vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de acção de graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer recolhidos em silêncio.(152)
A propósito, desejo chamar a atenção para um problema pastoral com que frequentemente nos deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstâncias como, por exemplo, nas Missas celebradas por ocasião de matrimónios, funerais ou acontecimentos análogos, encontram-se presentes na celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos não se aproximam do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que estão presentes pessoas de outras confissões cristãs ou até de outras religiões. Circunstâncias semelhantes verificam-se também em igrejas que são meta de turistas, sobretudo nas cidades de grande valor artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da comunhão sacramental e sobre as condições que se requerem para a sua recepção. Em situações onde não se possa garantir a necessária clareza quanto ao significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de substituir a celebração eucarística por uma celebração da palavra de Deus.(153)
A despedida: « Ite, missa est »
51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres sinodais acerca da saudação de despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote despede o povo com as palavras « Ide em paz e o Senhor vos acompanhe », tradução aproximada da fórmula latina: Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo « missa » significava simplesmente « despedida »; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um sentido cada vez mais profundo, tendo o termo « despedir » evoluído para « expedir em missão ». Deste modo, a referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o povo de Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração da liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos, devidamente aprovados, para a oração sobre o povo e a bênção final que explicitem tal ligação.(154)
Participação activa
Autêntica participação
52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase particular sobre a participação activa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus na celebração eucarística.(155) A renovação operada nestes anos proporcionou, sem dúvida, notáveis progressos na direcção desejada pelos padres conciliares; mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer incompreensão precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar claro que não se pretende, com tal palavra, aludir a mera actividade exterior durante a celebração; na realidade, a participação activa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em termos mais substanciais, a partir duma maior consciência do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida quotidiana. Permanece plenamente válida ainda a recomendação da Constituição conciliarSacrosanctum Concilium feita aos fiéis quando os exorta a não assistirem à liturgia eucarística « como estranhos ou espectadores mudos », mas a participarem « na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente ».(156) E o Concílio, desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis « sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo Mediador, progridam na unidade com Deus e entre si ».(157)
Participação e ministério sacerdotal
53. A beleza e a harmonia da acção litúrgica encontram significativa expressão na ordem com que cada um é chamado a participar activamente nela; isto requer o conhecimento das diversas funções hierárquicas implicadas na própria celebração. Pode ser útil lembrar que a participação activa na mesma não coincide, de per si, com o desempenho dum ministério particular; sobretudo, não favorece a causa da participação activa dos fiéis uma confusão gerada pela incapacidade de distinguir, na comunhão eclesial, as diversas funções que cabem a cada um.(158) De modo particular, convém que haja clareza quanto às funções específicas do sacerdote: como atesta a tradição da Igreja, é ele quem insubstituivelmente preside à celebração eucarística inteira, desde a saudação inicial até à bênção final. Em virtude da Ordem sacra recebida, representa Jesus Cristo cabeça da Igreja e, na forma que lhe é própria, também a Igreja.(159) De facto, cada celebração da Eucaristia é conduzida pelo Bispo, « quer pessoalmente, quer pelos presbíteros seus colaboradores »; (160) e é coadjuvado pelo diácono, que tem na celebração algumas funções específicas: preparar o altar e assistir ao sacerdote, proclamar o Evangelho e, eventualmente, fazer a homilia, propor aos fiéis as intenções da Oração Universal, distribuir a Eucaristia aos fiéis.(161) Em relação com estes ministérios dependentes do sacramento da Ordem, aparecem depois outros ministérios para o serviço litúrgico, louvavelmente desempenhados por religiosos e leigos preparados.(162)
Celebração eucarística e inculturação
54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio Vaticano II, várias vezes foi sublinhada a importância da participação activa dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a favorecer, podem ter lugar algumas adaptações apropriadas aos respectivos contextos e às diversas culturas;( 163) o facto de ter havido alguns abusos não turba a clareza deste princípio, que deve ser mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo mistério de Cristo em situações culturais diferentes. De facto, o Senhor Jesus, precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito homem (Gal 4, 4) colocou-se em relação directa não só com as expectativas que se registavam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende alcançar-nos no nosso contexto vital. Por conseguinte é útil, para uma participação mais eficaz dos fiéis nos santos mistérios, a continuação do processo de inculturação inclusivamente quanto à celebração eucarística, tendo em conta as possibilidades de adaptação oferecidas pelaInstrução Geral do Missal Romano,(164) interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, designada Varietates legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,(165) e pelas directrizes expressas pelo Papa João Paulo II nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in Africa, Ecclesia in America, Ecclesia in Asia, Ecclesia in Oceania, Ecclesia in Europa.(166) Com esta finalidade, recomendo às Conferências Episcopais que prossigam com esta obra, favorecendo um justo equilíbrio entre os critérios e directrizes já emanados e as novas adaptações,(167) sempre de acordo com a Sé Apostólica.
Condições pessoais para uma participação activa
55. Ao considerarem o tema da participação activa (actuosa participatio) dos fiéis no rito sagrado, os padres sinodais ressaltaram também as condições pessoais que se requerem em cada um para uma frutuosa participação.(168) Uma delas é, sem dúvida, o espírito de constante conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma participação activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por exemplo, o recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início da liturgia, o jejum e — quando for preciso — a confissão sacramental; um coração reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação. De modo particular é preciso alertar os fiéis que não se pode verificar uma participação activa nos santos mistérios, se ao mesmo tempo não se procura tomar parte activa na vida eclesial em toda a sua amplitude, incluindo o compromisso missionário de levar o amor de Cristo para o meio da sociedade.
Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso também aproximar-se pessoalmente do altar para receber a comunhão; (169) contudo é preciso estar atento para que esta afirmação, justa em si mesma, não induza os fiéis a um certo automatismo levando-os a pensar que, pelo simples facto de se encontrar na igreja durante a liturgia, se tenha o direito ou mesmo — quem sabe — se sinta no dever de aproximar-se da mesa eucarística. Mesmo quando não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece necessária, válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres de vida espiritual.(171)
Participação dos cristãos não católicos
56. Ao tratarmos o tema da participação, temos inevitavelmente de falar dos cristãos que pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. A este respeito, temos de dizer, por um lado, que o vínculo intrínseco existente entre a Eucaristia e a unidade da Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que poderemos celebrar, juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e exprimir assim visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos (Jo 17, 21); mas, por outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do corpo e do sangue de Cristo impede-nos de fazer dele um simples « meio » usado indiscriminadamente para alcançar a referida unidade.(172) De facto, a Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. Ainda mais desprovida de sentido seria uma concelebração verdadeira e própria com ministros de Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa, porém, de ser verdade que, em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos cristãos não católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas condições.(173) Estas aparecem claramente indicadas noCatecismo da Igreja Católica (174) e no seu Compêndio.(175) É dever de cada um ater-se a elas fielmente.
Participação através dos meios de comunicação
57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação, nos últimos decénios a palavra « participação » adquiriu um significado mais amplo do que no passado; com satisfação, todos reconhecemos que estes instrumentos oferecem novas possibilidades inclusivamente quanto à celebração eucarística.(176) Isto requer dos agentes pastorais do sector uma preparação específica e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa Missa transmitida na televisão ganha inevitavelmente um certo carácter de exemplaridade; daí o dever de prestar particular atenção a que a celebração, além de se realizar em lugares dignos e bem preparados, respeite as normas litúrgicas.
Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa pelos meios de comunicação, quem assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o preceito dominical; de facto, a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a reproduz em si mesma.(177) Se é muito louvável que idosos e doentes participem na Santa Missa festiva através das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de quem quisesse, por meio de tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar parte na celebração eucarística na assembleia da Igreja viva.
Participação activa dos doentes
58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde ou idade não podem ir aos lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a comunidade eclesial para a necessidade pastoral de garantir a assistência espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas quer se encontrem no hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua condição; é preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com frequência, a comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo crucificado e ressuscitado, poderão sentir a própria existência inserida plenamente na vida e missão da Igreja, por meio da oferta do seu sofrimento em união com o sacrifício de Nosso Senhor. Uma particular atenção há-de ser reservada aos deficientes: sempre que a sua condição o permita, a comunidade cristã deve facilitar a sua participação na celebração no lugar de culto; a propósito, procure-se remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos arquitectónicos que impeçam o seu acesso aos deficientes. Enfim, seja garantida também a comunhão eucarística, na medida do possível, aos deficientes mentais, baptizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da comunidade que os acompanha.(178)
A solicitude pelos presos
59. A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25, 36), individuou na visita aos presos uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio Senhor no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial, participar na Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e doloroso pode seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a plena recuperação social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembleia sinodal, peço às dioceses para providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente investimento de forças na actividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos.(179)
Os migrantes e a participação na Eucaristia
60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos vários, são obrigadas a deixar a sua terra, o Sínodo manifestou particular gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado pastoral dos migrantes. Neste contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes membros das Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se a dificuldade de não poderem participar na liturgia eucarística segundo o próprio rito a que pertencem; por isso, onde for possível, seja-lhes concedido usufruir da assistência de sacerdotes do seu rito. Em todo o caso, peço aos bispos que acolham estes irmãos na caridade de Cristo. O encontro entre fiéis de rito diverso pode tornar-se também ocasião de mútuo enriquecimento: penso de modo particular no benefício que pode resultar, sobretudo para o clero, do conhecimento das diversas tradições.(180)
As grandes concelebrações
61. A assembleia sinodal deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes celebrações que têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para além dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes.(181) É fácil, por um lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o bispo rodeado do seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais ocasiões podem verificar-se problemas quanto à expressão sensível da unidade do presbitério, especialmente na Oração Eucarística, e quanto à distribuição da sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas grandes concelebrações criem dispersão; providencie-se a isto mesmo por meio de adequados instrumentos de coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que permita aos presbíteros e aos fiéis uma plena e real participação. Entretanto, é preciso ter presente que se trata de concelebrações com índole excepcional e limitadas a situações extraordinárias.
A língua latina
62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor destas grandes liturgias; penso neste momento, em particular, às celebrações que têm lugar durante encontros internacionais, cada vez mais frequentes hoje, e que devem justamente ser valorizadas. A fim de exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo dos Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: (182) exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas (183) da tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto gregoriano. A nível geral, peço que os futuros sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem como para usar textos latinos e entoar o canto gregoriano; nem se transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para saberem, em latim, as orações mais comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas partes da liturgia.(184)
Celebrações eucarísticas em pequenos grupos
63. Bem distinta é a situação criada em algumas circunstâncias pastorais, onde, precisamente para uma participação mais consciente, activa e frutuosa, se favorecem as celebrações em pequenos grupos. Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a estas opções, é necessário especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o conjunto da proposta pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu carácter pedagógico, se fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja particular. A este respeito, o Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que se devem ater: os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade, e não para a dividir; a prova disto mesmo há-de ver-se na prática concreta; estes grupos devem favorecer a participação frutuosa da assembleia inteira e preservar, na medida do possível, a unidade da vida litúrgica de cada uma das famílias.(185)
Celebração interiormente participada
Catequese mistagógica
64. A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado, através do oferecimento a Deus da própria vida em união com o sacrifício de Cristo pela salvação do mundo inteiro. Por este motivo, o Sínodo dos Bispos recomendou que se fomentasse, nos fiéis, profunda concordância das disposições interiores com os gestos e palavras; se ela faltasse, as nossas celebrações, por muito animadas que fossem, arriscar-se-iam a cair no ritualismo. Assim, é preciso promover uma educação da fé eucarística que predisponha os fiéis a viverem pessoalmente o que se celebra. Vista a importância essencial desta participação pessoal e consciente, quais poderiam ser os instrumentos de formação mais adequados? Para isso, os padres sinodais indicaram unanimemente a estrada duma catequese de carácter mistagógico, que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados.(186) Em concreto e antes de mais, há que afirmar que, devido à relação entre a arte da celebração e a participação activa, « a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada »; (187) com efeito, por sua natureza a liturgia possui uma eficácia pedagógica própria para introduzir os fiéis no conhecimento do mistério celebrado. Por isso mesmo, na tradição mais antiga da Igreja, o caminho formativo do cristão — embora sem descurar a inteligência sistemática dos conteúdos da fé — assumia sempre um carácter de experiência, em que era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo anunciado por autênticas testemunhas. Neste sentido, quem introduz nos mistérios é primariamente a testemunha; depois, este encontro aprofunda-se, sem dúvida, na catequese e encontra a sua fonte e ápice na celebração da Eucaristia. Desta estrutura fundamental da experiência cristã parte a exigência de um itinerário mistagógico, no qual se hão-de ter sempre presente três elementos:
a) Trata-se, primeiramente, da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em conformidade com a tradição viva da Igreja; de facto, a celebração da Eucaristia, na sua riqueza infinita, possui contínuas referências à história da salvação. Em Cristo crucificado e ressuscitado, podemos celebrar verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade (Ef 1, 10); desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus, e particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo Testamento.
b) Além disso, a catequese mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época acentuadamente tecnológica como a actual, que corre o risco de perder a capacidade de perceber os sinais e os símbolos. Mais do que informar, a catequese mistagógica deverá despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra, constituem o rito.
c) Enfim, a catequese mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos para a vida cristã em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos e afectos, actividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em evidência a ligação dos mistérios celebrados no rito com a responsabilidade missionária dos fiéis; neste sentido, o fruto maduro da mistagogia é a consciência de que a própria vida vai sendo progressivamente transformada pelos sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de toda a educação cristã é formar o fiel enquanto « homem novo » para uma fé adulta, que o torne capaz de testemunhar no próprio ambiente a esperança cristã que o anima.
Condição necessária para se realizar, no âmbito das nossas comunidades eclesiais, esta tarefa educativa é dispor de formadores adequadamente preparados; mas todo o povo de Deus deve, sem dúvida, sentir-se comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é chamada a ser lugar de introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a propósito, durante o Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior envolvimento das comunidades de vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo próprio carisma, possam dar novo impulso à formação cristã.(188) Temos a certeza de que, também no nosso tempo, o Espírito Santo não poupa a efusão dos seus dons para sustentar a missão apostólica da Igreja, a quem compete difundir a fé e educá-la até à sua maturidade.(189)
A reverência à Eucaristia
65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem sobre os fiéis é seguramente o crescimento neles do sentido do mistério de Deus presente entre nós; podemos verificá-lo através de específicas manifestações de reverência à Eucaristia, nas quais o percurso mistagógico deve introduzir os fiéis.(190) Penso, em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.
Adoração e piedade eucarística
A relação intrínseca entre celebração e adoração
66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando fomos à Basílica de São Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração eucarística. Com aquele momento de oração, quis a assembleia dos bispos não se limitar às palavras na sua chamada de atenção para a importância da relação intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste significativo aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II. Quando a reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não se perceber com suficiente clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento; uma objecção então em voga, por exemplo, partia da ideia que o pão eucarístico nos fora dado não para ser contemplado, mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da experiência de oração da Igreja, aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já Santo Agostinho dissera: « Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; (...) peccemus non adorando – ninguém come esta carne, sem antes a adorar; (...) pecaríamos se não a adorássemos ».(191) De facto, na Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-Se connosco; a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja: (192) receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração d'Aquele que comungamos. Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos um só com Ele e, de algum modo, saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O acto de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria celebração litúrgica. Com efeito, « somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois também a missão social, que está encerrada na Eucaristia e deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam uns dos outros ».(193)
A prática da adoração eucarística
67. Juntamente com a assembleia sinodal, recomendo, pois, vivamente aos pastores da Igreja e ao povo de Deus a prática da adoração eucarística tanto pessoal como comunitária.(194) Para isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a importância deste acto de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo nos centros mais populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se possam reservar propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na formação catequética, particularmente nos itinerários de preparação para a Primeira Comunhão, se iniciem as crianças no sentido e na beleza de demorar-se na companhia de Jesus, cultivando o enlevo pela sua presença na Eucaristia.
Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de vida consagrada, cujos membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à adoração eucarística; deste modo, oferecem a todos o exemplo de pessoas que se deixam plasmar pela presença real do Senhor. Desejo igualmente encorajar as associações de fiéis, nomeadamente as confrarias, que assumem esta prática como seu compromisso especial, tornando-se assim fermento de contemplação para toda a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos indivíduos e da comunidade.
Formas de devoção eucarística
68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com Jesus, presente na Eucaristia, recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão eclesial, alimentando nele a consciência da sua pertença ao corpo de Cristo. Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar pessoalmente tempo para se demorar em oração diante do sacramento do altar, sinto o dever de convidar as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos de adoração comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já existentes de devoção eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões eucarísticas, sobretudo a tradicional procissão na solenidade do Corpo de Deus, na devoção das Quarenta Horas, nos congressos eucarísticos locais, nacionais e internacionais, e noutras iniciativas análogas. Devidamente actualizadas e adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção merecem ser cultivadas ainda hoje.(195)
O lugar do sacrário na igreja
69. Ainda relacionado com a importância da reserva eucarística e da adoração e reverência diante do sacramento do sacrifício de Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a devida colocação do sacrário dentro das nossas igrejas.(196) Com efeito, uma correcta localização do mesmo ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento; por isso, é necessário que o lugar onde são conservadas as espécies eucarísticas seja fácil de individuar por qualquer pessoa que entre na igreja, graças nomeadamente à lâmpada do Santíssimo perenemente acesa. Tendo em vista tal objectivo, é preciso considerar a disposição arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser cuidado sempre também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano.(197) Em todo o caso, o juízo último sobre esta matéria compete ao bispo diocesano.
III PARTE
EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO
« Assim como o Pai, que vive,
Me enviou e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come
viverá por Mim » (Jo 6, 57)
Forma eucarística da vida cristã
O culto espiritual
70. O Senhor Jesus, que para nós Se fez alimento de verdade e amor, falando do dom da sua vida assegura-nos: « Quem comer deste pão viverá eternamente » (Jo 6, 51). Mas, esta « vida eterna » começa em nós, já agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na nossa vida: « Aquele que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Estas palavras de Jesus permitem-nos compreender que o mistério « acreditado » e « celebrado » possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã. De facto, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o carácter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-Lo dizer: « Sou o pão dos fortes; cresce e comer-Me-ás. Não Me transformarás em ti como ao alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em Mim ».(198) Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele. Cristo alimenta-nos, unindo-nos a Si; « atrai-nos para dentro de Si ».(199)
A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como fonte e ápice da existência eclesial, enquanto exprime a origem e simultaneamente a realização do culto novo e definitivo, o culto espiritual (logiké latreía).(200) As palavras que encontramos sobre isto, naCarta de São Paulo aos Romanos, são a formulação mais sintética do modo como a Eucaristia transforma toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: « Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que Lhe deveis prestar » (12, 1). Nesta exortação, aparece a imagem do novo culto como oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo sobre a oferta dos nossos corpos sublinha o concretismo humano dum culto de forma alguma desencarnado. E, a propósito, o santo de Hipona lembra-nos que « este é o sacrifício dos cristãos, ou seja, serem muitos e um só corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério através do sacramento do altar, que os fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que, naquilo que se oferece, ela mesma é oferecida ».(201) De facto, a doutrina católica afirma que a Eucaristia, enquanto sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja e, consequentemente, dos fiéis.(202) Esta insistência sobre o sacrifício — sacrum facere, « tornar sagrado » — exprime aqui toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo (Fil 3, 12).
Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico
71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da existência, transfigurando-a: « Quando comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus » (1 Cor 10, 31). Em cada acto da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a Deus; daqui toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que abraça a realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia torna possível dia após dia a progressiva transfiguração do homem, por graça chamado a ser conforme à imagem do Filho de Deus (Rm 8, 29s). Nada há de autenticamente humano — pensamentos e afectos, palavras e obras — que não encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada particular fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1 Cor 10, 31); e a vida do homem é a visão de Deus.(203)
Viver segundo o domingo
72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida do homem, revelou-se à consciência cristã desde o princípio; prontamente os fiéis compreenderam a influência profunda que a celebração eucarística exercia sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de Antioquia exprimia esta verdade designando os cristãos como « aqueles que chegaram à nova esperança », e apresentava-os como aqueles que vivem « segundo o domingo » (iuxta dominicam viventes).(204) Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em evidência a ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O costume característico que têm os cristãos de reunir-se no primeiro dia depois do sábado para celebrar a ressurreição de Cristo — conforme a narração do mártir São Justino(205) — é também o dado que define a forma da vida renovada pelo encontro com Cristo. Mas, a expressão de Santo Inácio — « viver segundo o domingo » — sublinha também o valor paradigmático que este dia santo tem para os restantes dias da semana. De facto, o domingo não se distingue com base na simples suspensão das actividades habituais, como se fosse uma espécie de parêntesis dentro do ritmo normal dos dias; os cristãos sempre sentiram este dia como o primeiro da semana, porque nele se faz memória da novidade radical trazida por Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a forma eucarística própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver constantemente: « viver segundo o domingo » significa viver consciente da libertação trazida por Cristo e realizar a própria existência como oferta de si mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste plenamente a todos os homens através duma conduta intimamente renovada.
Viver o preceito dominical
73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia deposita no cristão, os padres sinodais reafirmaram a importância que tem, para todos os fiéis, o preceito dominical como fonte de liberdade autêntica, a fim de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que celebraram no « dia do Senhor ». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de sentir desejo de participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória pascal. A participação na assembleia litúrgica dominical, ao lado de todos os irmãos e irmãs com os quais se forma um só corpo em Cristo Jesus, é exigida pela consciência cristã e simultaneamente educa a consciência cristã. Perder o sentido do domingo como dia do Senhor que deve ser santificado é sintoma duma perda do sentido autêntico da liberdade cristã, a liberdade dos filhos de Deus.(206) Continuam a ser preciosas as observações feitas a este respeito pelo meu venerado predecessor João Paulo II, na Carta Apostólica Dies Domini,(207) quando trata das diversas dimensões que o domingo tem para os cristãos: é dies Domini, em referimento à obra da criação; dies Christi, enquanto dia da nova criação e do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede; dies Ecclesiæ, como dia em que a comunidade cristã se reúne para a celebração; dies hominis, porque dia de alegria, repouso e caridade fraterna.
Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo o fiel, no próprio ambiente onde vive, se pode fazer arauto e guardião do sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota o sentido cristão da existência e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o trabalho, a vida e a morte. Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais organizem, a partir da celebração eucarística dominical, manifestações próprias da comunidade cristã: encontros de amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e adultos na fé, peregrinações, obras de caridade e momentos variados de oração. Por causa destes valores tão importantes — embora justamente a tarde de sábado a partir das primeiras Vésperas já pertença ao domingo, sendo permitido cumprir nela o preceito dominical — é necessário recordar que é o domingo em si mesmo que merece ser santificado, para que não acabe por ficar um dia « vazio de Deus ».(208)
O sentido do repouso e do trabalho
74. É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser penalizado por isso. De facto, os cristãos — não sem relação com o significado do sábado na tradição hebraica — viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. É fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão. Como já tive ocasião de afirmar, « o trabalho reveste uma importância primária para a realização do homem e o progresso da sociedade; por isso torna-se necessário que aquele seja sempre organizado e realizado no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida ».(209) É no dia consagrado a Deus que o homem compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.(210)
Assembleias dominicais na ausência de sacerdote
75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical para a vida do cristão, coloca-se espontaneamente o problema das comunidades cristãs onde falta o sacerdote e, consequentemente, não é possível celebrar a Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito, convém reconhecer que nos encontramos perante situações muito diversificadas entre si. Antes de mais, o Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde está garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de sacrifício.(211) Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível, devido à grande distância, a participação na Eucaristia dominical, é importante que as comunidades cristãs se reúnam igualmente para louvar o Senhor e fazer memória do dia a Ele dedicado. Mas, isso deverá verificar-se a partir duma conveniente instrução sobre a diferença entre a Santa Missa e as assembleias dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da Igreja há-de exprimir-se, neste caso, vigiando que a liturgia da palavra — organizada sob a guia dum diácono ou dum responsável da comunidade a quem foi regularmente confiado este ministério pela autoridade competente — se realize segundo um ritual específico elaborado pelas Conferências Episcopais e para tal fim aprovado por elas.(212) Lembro que compete aos Ordinários conceder a faculdade de distribuir a comunhão nessas liturgias, ponderando atentamente a conveniência da escolha a fazer. Além disso, tudo deve ser feito de forma que tais assembleias não criem confusão quanto ao papel central do sacerdote e à dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da função dos leigos, a quem justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das comunidades cristãs, jamais deve ofuscar o ministério insubstituível dos sacerdotes na vida da Igreja.(213) Por isso, vigie-se atentamente sobre as assembleias à espera de sacerdote para que não dêem lugar a visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a tradição da Igreja; devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu Coração. A propósito, vale a pena recordar aquilo que escreveu o Papa João Paulo II na Carta aos Sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979, recordando o caso comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas de sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário, colocavam sobre o altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações da liturgia eucarística até ao « momento que corresponderia à transubstanciação » e aí se detinham em silêncio, dando testemunho de quão « ardentemente desejavam ouvir aquelas palavras que só os lábios dum sacerdote podiam eficazmente pronunciar ».(214) Precisamente nesta perspectiva, considerando o bem incomparável que deriva da celebração do sacrifício eucarístico, peço a todos os sacerdotes uma efectiva e concreta disponibilidade para visitarem, com a maior assiduidade possível, as comunidades que estão confiadas ao seu cuidado pastoral, a fim de não ficarem demasiado tempo sem o sacramento da caridade.
Uma forma eucarística da existência cristã,
a pertença eclesial
76. A importância do domingo como dia da Igreja (dies Ecclesiæ) traz-nos à mente a relação intrínseca entre a vitória de Jesus sobre o mal e a morte e a nossa pertença ao seu corpo eclesial; no dia do Senhor, com efeito, todo o cristão reencontra também a dimensão comunitária da sua existência redimida. Participar na acção litúrgica, comungar o corpo e o sangue de Cristo significa, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais íntima e profunda a própria pertença Àquele que morreu por nós (1 Cor 6, 19s; 7, 23). Verdadeiramente quem se nutre de Cristo, vive por Ele. Compreende-se o sentido profundo da comunhão dos santos (communio sanctorum), relacionando-a com o mistério eucarístico. A comunhão tem sempre e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos e irmãs. Estas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom eucarístico. « Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a comunhão entre nós não for vivida, também a comunhão com o Deus-Trindade não é viva nem verdadeira ».(215) Chamados, pois, a ser membros de Cristo e consequentemente membros uns dos outros (1 Cor 12, 27), constituímos uma realidade ontologicamente fundada no Baptismo e alimentada pela Eucaristia, realidade essa que exige ter expressão sensível na vida das nossas comunidades.
A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel pode fazer experiência concreta da sua pertença ao corpo de Cristo. As associações, os movimentos eclesiais e novas comunidades — com a vivacidade dos carismas que lhes foram concedidos pelo Espírito Santo para o nosso tempo — bem como os institutos de vida consagrada têm a missão de oferecer a sua contribuição específica para favorecer nos fiéis a percepção desta sua pertença ao Senhor (Rm 14, 8). O fenómeno da secularização, que apresenta — não por acaso — traços fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas que se isolam por escasso sentido de pertença. Desde os seus inícios, sempre o cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações continuamente vivificadas pela escuta da palavra e pela celebração eucarística e animadas pelo Espírito Santo.
Espiritualidade e cultura eucarística
77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que « os fiéis cristãos precisam duma compreensão mais profunda das relações entre a Eucaristia e a vida quotidiana. A espiritualidade eucarística não é apenas participação na Missa e devoção ao Santíssimo Sacramento; mas abraça a vida inteira ».(216) Um tal realce assume actualmente particular significado para todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da existência, como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens; a falência desta maneira de viver « como se Deus não existisse » está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstracta, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida « segundo o Espírito » (Rm 8, 4s; cf. Gal 5, 16.25). É significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma de viver e pensar: « Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito » (12, 2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a ligação entre o verdadeiro culto espiritual e a necessidade duma nova maneira de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois « assim já não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina » (Ef 4, 14).
Eucaristia e evangelização das culturas
78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério eucarístico nos põe em diálogo com as várias culturas, mas de certa forma também as desafia.(217) É preciso reconhecer o carácter intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de Jesus Cristo e a efusão do Espírito Santo são acontecimentos que podem encontrar-se de forma duradoura com qualquer realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente. Em consequência disto mesmo, temos a obrigação de promover convictamente a evangelização das culturas, na certeza de que o próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais; num processo importante como este, podem revelar-se de grande significado as palavras de São Paulo quando, na sua I Carta aos Tessalonicenses, convida a « avaliar tudo e conservar o que for bom » (5, 21).
Eucaristia e fiéis leigos
79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos formam uma « raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores d'Aquele que os chamou das trevas à sua luz admirável » (1 Pd 2, 9). A Eucaristia, enquanto mistério a ser vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade cristã. Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já nos foi dado no Baptismo, pelo qual todos somos chamados à santidade,(218) então isso deve transparecer e manifestar-se precisamente nas situações ou estados de vida em que cada cristão se encontra; tornamo-nos dia após dia culto agradável a Deus, vivendo a própria vida como vocação. O próprio sacramento da Eucaristia, a partir da convocação litúrgica, compromete-nos na realidade quotidiana a fim de que tudo seja feito para glória de Deus.
E, dado que o mundo é « o campo » (Mt 13, 38) onde Deus coloca os seus filhos como boa semente, os cristãos leigos, em virtude do Baptismo e da Confirmação e corroborados pela Eucaristia, são chamados a viver a novidade radical trazida por Cristo precisamente no meio das condições normais da vida; (219) devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade inteira.(220) Dirijo um particular encorajamento às famílias a haurirem inspiração e força deste sacramento: o amor entre o homem e a mulher, o acolhimento da vida, a missão educadora aparecem como âmbitos privilegiados onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de transformar e encher de significado a existência.(221) Os pastores nunca deixem de apoiar, educar e encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no meio deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo 3, 16).
Eucaristia e espiritualidade sacerdotal
80. A forma eucarística da existência cristã manifesta-se, sem dúvida, de modo particular no estado de vida sacerdotal. A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a semente desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o bispo pronuncia na liturgia da ordenação: « Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor ».(222) Para conferir à sua existência uma forma eucarística cada vez mais perfeita, o sacerdote deve reservar, já no período de formação e depois nos anos sucessivos, amplo espaço para a vida espiritual.(223) É chamado a ser continuamente um autêntico perscrutador de Deus, embora ao mesmo tempo permaneça solidário com as preocupações dos homens. Uma vida espiritual intensa permitir-lhe-á entrar mais profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a deixar-se possuir pelo amor de Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias mesmo difíceis e obscuras. Para isso, juntamente com os padres do Sínodo, recomendo aos sacerdotes « a celebração diária da Santa Missa, mesmo quando não houver participação de fiéis ».(224) Tal recomendação é ditada, ante de mais, pelo valor objectivamente infinito de cada celebração eucarística; e é motivada ainda pela sua singular eficácia espiritual, porque, se vivida com atenção e fé, a Santa Missa é formadora no sentido mais profundo do termo, enquanto promove a configuração a Cristo e reforça o sacerdote na sua vocação.
81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas vocações eclesiais, refulge de modo particular « o testemunho profético de mulheres e homens consagrados que encontram, na celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto ».(225) Embora realizem muitos serviços no campo da formação humana e do cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os consagrados e consagradas sabem que a finalidade principal da sua vida é « a contemplação das coisas divinas e a união assídua com Deus »;( 226 a contribuição essencial que a Igreja espera da vida consagrada destina-se muito mais ao ser do que ao fazer. Neste contexto, queria evocar a importância do testemunho virginal precisamente em relação ao mistério da Eucaristia; com efeito, além da ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico apresenta uma relação intrínseca com a virgindade consagrada, enquanto esta é expressão da dedicação exclusiva da Igreja a Cristo, que ela acolhe como seu Esposo com radical e fecunda fidelidade.227) Na Eucaristia, a virgindade consagrada encontra inspiração e nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso, aufere da Eucaristia conforto e impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho específico que a vida consagrada se torna objectivamente apelo e antecipação daquelas « núpcias do Cordeiro » (Ap 19, 7-9) que constituem a meta de toda a história da salvação; neste sentido, aquela constitui uma evocação eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para poder orientar as suas opções e resoluções de vida.
Eucaristia e transformação moral
82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que surgiu no Sínodo: a ligação entre forma eucarística da vida e transformação moral. O Papa João Paulo II afirmara que a vida moral « possui o valor de um ‘‘culto espiritual'' (Rm 12, 1; cf. Fil 3, 3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são os sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida ».(228) Em suma, « no próprio ‘‘culto'', na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária ».(229)
Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade. Aquilo de que estamos a falar aparece claramente no relato evangélico de Zaqueu (Lc 19, 1-10): depois de ter hospedado Jesus na sua casa, o publicano sente-se completamente transformado; decide dar metade dos seus haveres aos pobres e restituir quatro vezes mais a quem roubou. A tensão moral, que nasce do acto de hospedar Jesus na nossa vida, brota da gratidão por se ter experimentado a imerecida proximidade do Senhor.
Coerência eucarística
83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais designaram por coerência eucarística, à qual está objectivamente chamada a nossa existência. Com efeito, o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente isto vale para todos os baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas.(230) Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana.(231) Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29). Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.(232)
Eucaristia, mistério anunciado
Eucaristia e missão
84. Na homilia durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu ministério na Cátedra de Pedro, disse: « Não há nada de mais belo do que ser alcançado, surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele ».(233) Esta afirmação cresce de intensidade, quando pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n'Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: « Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária ».(234) Havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: « Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco » (1 Jo 1, 2-3). Verdadeiramente não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3, 16-17; Rm 8, 32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã.
Eucaristia e testemunho
85. A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor. Tornamonos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro que aparece e Se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-Se por assim dizer ao risco da liberdade do homem. O próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1, 5; 3, 14); veio para dar testemunho da verdade (Jo 18, 37). Nesta ordem de ideias, apraz-me retomar um conceito caro aos primeiros cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje: o testemunho até ao dom de si mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história da Igreja, o apogeu do novo culto espiritual: « Oferecei os vossos corpos » (Rm 12, 1). Pense-se, por exemplo, na narração do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: o seu caso, dramático, é todo ele descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia.(235) Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente o seu martírio: considera-se « trigo de Deus » e, pelo martírio, deseja transformar-se em « pão puro de Cristo ».(236) O cristão, quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a páscoa de Jesus Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam, ainda hoje, à Igreja os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E, mesmo que não nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a Deus postula intimamente esta disponibilidade (237) e encontra a sua realização no feliz e convicto testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente nos diversos sectores onde o Senhor nos chama a anunciá-Lo.
Jesus Cristo, único Salvador
86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia no coração do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente uma ideia ou uma ética n'Ele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia enquanto sacramento da nossa salvação chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de Jesus, único Salvador.(238) Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica, a obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização autêntico sempre implica.
Liberdade de culto
87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a assembleia sinodal, a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.(239) Devemos verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da própria vida. Não são poucas as regiões do mundo onde o simples ir à igreja constitui um testemunho heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão íntima relativa ao sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os membros das outras religiões poderem livremente viver as suas convicções, pessoalmente e em comunidade.
Eucaristia,
mistério oferecido ao mundo
Eucaristia, pão repartido para a vida do mundo
88. « O pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo » (Jo 6, 51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20, 34; Mc 6, 34; Lc 19, 41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que « consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo ».(240) Desta forma, nas pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os « até ao fim » (Jo 13, 1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita n'Ele a fazer-se « pão repartido » para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: « Dai-lhes vós de comer » (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.
As implicações sociais do mistério eucarístico
89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: « a ‘‘mística'' do sacramento tem um carácter social, porque (...) a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus ».(241) A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o Qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2, 14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite comungar dignamente o corpo e o sangue de Cristo (Mt 5, 23-24).(242) Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira paz; (243) desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja « deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar ».(244)
Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: « Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual »;( 245) problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa.
O alimento da verdade e a indigência do homem
90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu (Tg 5, 4). Por exemplo, é impossível calar diante das « imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados — em várias partes do mundo — amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros? ».(246) O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens. De facto, « com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança ».(247)
O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4, 32) e de ajudar os pobres (Rm 15, 26). O peditório que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo.
A doutrina social da Igreja
91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: « O pão nosso de cada dia nos dai hoje », obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da Igreja.(248) Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.
Santificação do mundo e defesa da criação
92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.(249) A própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, « fruto da terra », « da videira » e do « trabalho do homem ». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1, 4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; (250) de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a « nova criação » que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Baptismo (Col 2, 12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do céu, de junto de Deus, « bela como noiva adornada para o seu esposo » (Ap 21, 2).
Utilidade dum Compêndio Eucarístico
93. No termo destas reflexões em que de boa vontade me detive sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicastérios competentes, há-de ser publicado um Compêndio, que recolha textos do Catecismo da Igreja Católica, orações, explicações das Orações Eucarísticas do Missal e tudo o mais que possa demonstrar-se útil para a correcta compreensão, celebração e adoração do sacramento do altar.(251) Espero que este instrumento possa contribuir para que o memorial da páscoa do Senhor se torne cada dia sempre mais fonte e ápice da vida e da missão da Igreja; isto animará cada fiel a fazer da sua própria vida um verdadeiro culto espiritual.
CONCLUSÃO
94. Amados irmãos e irmãs, a Eucaristia está na origem de toda a forma de santidade, sendo cada um de nós chamado à plenitude de vida no Espírito Santo. Quantos santos tornaram autêntica a própria vida, graças à sua piedade eucarística! De Santo Inácio de Antioquia a Santo Agostinho, de Santo Antão Abade a São Bento, de São Francisco de Assis a São Tomás de Aquino, de Santa Clara de Assis a Santa Catarina de Sena, de São Pascoal Bailão a São Pedro Julião Eymard, de Santo Afonso Maria de Ligório ao Beato Carlos de Foucauld, de São João Maria Vianey a Santa Teresa de Lisieux, de São Pio de Pietrelcina à Beata Teresa de Calcutá, do Beato Pedro Jorge Frassati ao Beato Ivan Merz, para mencionar apenas alguns de tantos nomes, a santidade sempre encontrou o seu centro no sacramento da Eucaristia.
Por isso, é necessário que, na Igreja, este mistério santíssimo seja verdadeiramente acreditado, devotamente celebrado e intensamente vivido. A doação que Jesus faz de Si mesmo no sacramento memorial da sua paixão, atesta que o êxito da nossa vida está na participação da vida trinitária, que nos é oferecida n'Ele de forma definitiva e eficaz. A celebração e a adoração da Eucaristia permitem abeirar-nos do amor de Deus e a ele aderir pessoalmente até à união com o bem-amado Senhor. A oferta da nossa vida, a comunhão com a comunidade inteira dos crentes e a solidariedade com todo o homem são aspectos imprescindíveis da logiké latreía, ou seja, do culto espiritual, santo e agradável a Deus (Rm 12, 1), no qual toda a nossa realidade humana concreta é transformada para glória de Deus. Convido, pois, todos os pastores a prestarem a máxima atenção à promoção duma espiritualidade cristã autenticamente eucarística. Os presbíteros, os diáconos e todos aqueles que exercem um ministério eucarístico possam sempre tirar destes mesmos serviços, realizados com solicitude e constante preparação, força e estímulo para o seu caminho pessoal e comunitário de santificação. Exorto todos os leigos, e as famílias em particular, a encontrarem continuamente no sacramento do amor de Cristo a energia de que precisam para transformar a própria vida num sinal autêntico da presença do Senhor ressuscitado. Peço a todos os consagrados e consagradas para manifestarem, com a própria existência eucarística, o esplendor e a beleza de pertencer totalmente ao Senhor.
95. No início do século IV, quando o culto cristão era ainda proibido pelas autoridades imperiais, alguns cristãos do norte de África, que se sentiam obrigados a celebrar o dia do Senhor, desafiaram tal proibição. Foram martirizados enquanto declaravam que não lhes era possível viver sem a Eucaristia, alimento do Senhor: « Sine dominico non possumus – sem o domingo, não podemos viver ».(252) Estes mártires de Abitinas, juntamente com muitos outros santos e beatos que fizeram da Eucaristia o centro da sua vida, intercedam por nós e nos ensinem a fidelidade ao encontro com Cristo ressuscitado! Também nós não podemos viver sem participar no sacramento da nossa salvação e desejamos ser iuxta dominicam viventes, isto é, traduzir na vida o que celebramos no dia do Senhor. Com efeito, este é o dia da nossa libertação definitiva. Então porquê maravilhar-se quando desejamos que cada dia seja vivido segundo a novidade introduzida por Cristo com o mistério da Eucaristia?
96. Que Maria Santíssima, Virgem Imaculada, arca da nova e eterna aliança, nos acompanhe neste caminho ao encontro do Senhor que vem! N'Ela encontramos realizada, na forma mais perfeita, a essência da Igreja. Esta vê em Maria, « Mulher eucarística » — como A designou o servo de Deus João Paulo II (253) —, o seu ícone melhor conseguido e contempla-A como modelo insubstituível de vida eucarística. Por isso, preparando-se para acolher sobre o altar «verum corpus natum de Maria Virgine – o verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria», o sacerdote, em nome da assembleia litúrgica, proclama com as palavras do cânone: « Veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe do nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo ».(254) O seu nome santo é invocado e venerado também nos cânones das tradições orientais cristãs. Por sua vez, os fiéis « recomendam a Maria, Mãe da Igreja, a sua existência e trabalho. Esforçando-se por ter os mesmos sentimentos que Maria, ajudam toda a comunidade a viver em oferta viva, agradável ao Pai ».(255) Ela é a Tota Pulchra, a Toda Formosa, porque n'Ela resplandece o fulgor da glória de Deus. A beleza da liturgia celeste, que deve reflectir-se também nas nossas assembleias, encontra n'Ela um espelho fiel. D'Ela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais para podermos também nós apresentar-nos, segundo a palavra de São Paulo, « imaculados » perante o Senhor, tal como Ele nos quis desde o princípio (Col 1, 22; Ef 1, 4).(256)
97. Por intercessão da bem-aventurada Virgem Maria, o Espírito Santo acenda em nós o mesmo ardor que experimentaram os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) e renove na nossa vida o enlevo eucarístico pelo esplendor e a beleza que refulgem no rito litúrgico, sinal eficaz da própria beleza infinita do mistério santo de Deus. Os referidos discípulos levantaram-se e voltaram a toda a pressa para Jerusalém a fim de partilhar a alegria com os irmãos e irmãs na fé. Com efeito, a verdadeira alegria é reconhecer que o Senhor permanece no nosso meio, companheiro fiel do nosso caminho; a Eucaristia faz-nos descobrir que Cristo, morto e ressuscitado, Se manifesta como nosso contemporâneo no mistério da Igreja, seu corpo. Deste mistério de amor fomos feitos testemunhas. Os votos que reciprocamente formulamos sejam os de irmos cheios de alegria e maravilha ao encontro da santíssima Eucaristia, para experimentar e anunciar aos outros a verdade das palavras com que Jesus Se despediu dos seus discípulos: « Eu estou sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt 28, 20).
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Fevereiro — festa da Cátedra de São Pedro — de 2007, segundo ano de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
Notas
1. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 73, a. 3.
2. Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus, 26, 5: PL 35, 1609.
3. Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé (10 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 255.
4. Cf. Bento XVI, Discurso aos membros do Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (1 de Junho de 2006): L'Osservatore Romano (ed. port. de 8/VI/2006), 237.
5. Cf. Propositio 2.
6. Aludo aqui à necessidade duma hermenêutica da continuidade mesmo no que diz respeito a uma correcta leitura do desenvolvimento litúrgico depois do Concílio Vaticano II: cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 44-45.
7. Tem a data de 7 de Outubro de 2004; veja-se o texto em AAS 97 (2005), 337-352.
8. Cf. Ano da Eucaristia: sugestões e propostas (15 de Outubro de 2004): L'Osservatore Romano (15 de Outubro de 2004), Suplemento.
9. Tem a data de 17 de Abril de 2003; veja-se o texto em AAS 95 (2003), 433-475. Há que recordar também a Instrução da Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004): AAS 96 (2004), 549-601, expressamente desejada por João Paulo II.
10. Recordo apenas os principais: Conc. Ecum. de Trento, Doctrina et canones de ss. Missæ sacrificio: DS 1738-1759; Leão XIII, Carta enc.Miræ caritatis (28 de Maio de 1902): ASS (1903), 115-136; Pio XII, Carta enc. Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 521-595; Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 753-774; João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia(17 de Abril de 2003): AAS 95 (2003), 433-475; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967): AAS 59 (1967), 539-573; Instr. Liturgiam authenticam (28 de Março de 2001): AAS 93 (2001), 685-726.
11. Cf. Propositio 1.
12. N. 14: AAS 98 (2006), 229.
13. Catecismo da Igreja Católica, 1327.
14. Propositio 16.
15. Bento XVI, Homilia na tomada de posse da Cátedra de Roma (7 de Maio de 2005): AAS 97 (2005), 752.
16. Cf. Propositio 4.
17. De Trinitate, VIII, 8, 12: CCL 50, 287.
18. Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 12: AAS 98 (2006), 228.
19. Cf. Propositio 3.
20. Cf. Breviário Romano: Hino do Ofício de Leituras, na solenidade do Corpo de Deus.
21. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 13: AAS 98 (2006), 228.
22. Cf. Bento XVI, Homilia na Esplanada de Marienfeld (21 de Agosto de 2005): AAS 97 (2005), 891-892.
23. Cf. Propositio 3.
24. Cf. Missal Romano: Oração Eucarística IV.
25. Catequese 23, 7: PG 33, 1114s.
26. Cf. Sobre o sacerdócio, 6, 4: PG 48, 681.
27. Ibid., 3, 4: o.c., 48, 642.
28. Propositio 22.
29. Cf. Propositio 42: « Este encontro eucarístico realiza-se no Espírito Santo, que nos transforma e santifica. Ele desperta no discípulo a vontade decidida de anunciar aos outros, com desassombro, tudo o que ouviu e viveu, para conduzi-los, também a eles, ao mesmo encontro com Cristo. Deste modo o discípulo, enviado pela Igreja, abre-se a uma missão sem fronteiras ».
30. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 3. Veja-se, por exemplo, São João Crisóstomo, Catequeses 3, 13-19:SC 50, 174-177.
31. João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 1: AAS 95 (2003), 433.
32. Ibid., 21: o.c., 447.
33. Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 20: AAS 71 (1979), 309-316; Carta enc. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 4: AAS 72 (1980), 119-121.
34. Cf. Propositio 5.
35. Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 80, a. 4.
36. N. 38: AAS 95 (2003), 458.
37. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
38. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844-845.
39. Propositio 5: « O termo ‘‘católico'' exprime a universalidade resultante da unidade que a Eucaristia, celebrada em cada Igreja, fomenta e constrói. Assim, as Igrejas particulares na Igreja universal têm, na Eucaristia, a missão de tornar visível a sua própria unidade e a sua diversidade. Este laço de amor fraterno deixa transparecer a comunhão trinitária. Os concílios e os sínodos exprimem na história este aspecto fraterno da Igreja ».
40. Cf. Ibid., 5.
41. Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 5.
42. Cf. Propositio 14.
43. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 1.
44. De oratione dominica, 23: PL 4, 553.
45. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 48; veja-se também o n. 9.
46. Cf. Propositio 13.
47. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 7.
48. Cf. Ibid., 11; Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 9.13.
49. Cf. João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980), 7: AAS 72 (1980), 124-127; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 5.
50. Cf. Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 710.
51. Cf. Rito da Iniciação Cristã dos Adultos, Introd. ger., nn. 34-36.
52. Cf. Rito do Baptismo das Crianças, Introd., nn. 18-19.
53. Cf. Propositio 15.
54. Cf. Propositio 7; João Paulo II, Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 36: AAS 95 (2003), 457-458.
55. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et pænitentia (2 de Dezembro de 1984), 18: AAS 77 (1985), 224-228.
56. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1385.
57. Pense-se na « Confissão » (Confiteor) ou nas palavras proferidas pelo sacerdote e a assembleia pouco antes de comungarem: « Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo ». Significativamente a liturgia prevê, para o sacerdote, algumas orações muito belas, recebidas da tradição, que lhe recordam a necessidade de ser perdoado, como, por exemplo, a oração feita em silêncio antes de convidar os fiéis para a comunhão sacramental: « ...livrai-me de todos os meus pecados e de todo o mal, por este vosso santíssimo corpo e sangue; conservai-me sempre fiel aos vossos mandamentos e não permitais que eu me separe de Vós ».
58. Cf. São João Damasceno, Sobre a recta fé, 4, 9: PG 94, 1124C; São Gregório de Nazianzo, Discurso 39, 17: PG 36, 356A; Conc. Ecum. de Trento, Doctrina de sacramento pænitentiæ, cap. 2: DS 1672.
59. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et pænitentia (2 de Dezembro de 1984), 30: AAS 77 (1985), 256-257.
60. Cf. Propositio 7.
61. Cf. João Paulo II, Motu proprio Misericordia Dei (7 de Abril de 2002): AAS 94 (2002), 452-459.
62. Lembro, juntamente com os padres sinodais, que as celebrações penitenciais não sacramentais, mencionadas no ritual do sacramento da Reconciliação, podem ser úteis para fomentar o espírito de conversão e de comunhão nas comunidades cristãs, preparando assim os corações para a celebração do sacramento: cf. Propositio 7.
63. Cf. Código de Direito Canónico, cân. 508.
64. Paulo VI, Const. ap. Indulgentiarum doctrina (1 de Janeiro de 1967), Normæ, 1: AAS 59 (1967), 21.
65. Ibid., 9: o.c., 18-19.
66. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1499-1531.
67. Ibid., 1524.
68. Cf. Propositio 44.
69. Cf. II Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Doc. sobre o sacerdócio ministerial Ultimis temporibus (30 de Novembro de 1971): AAS 63 (1971), 898-942.
70. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 42-69: AAS 84 (1992), 729-778.
71. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta acerca de algumas questões relativas ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983): AAS 75 (1983), 1001-1009.
72. Catecismo da Igreja Católica, 1548.
73. Ibid., 1552.
74. Cf. In Iohannis Evangelium Tractatus 123, 5: PL 35, 1967.
75. Cf. Propositio 11.
76. Cf. Decr. sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum ordinis, 16.
77. Cf. João XXIII, Carta enc. Sacerdotii nostri primordia (1 de Agosto de 1959): AAS 51 (1959), 545-579; Paulo VI, Carta enc. Sacerdotalis cœlibatus (24 de Junho de 1967): AAS 59 (1967), 657-697; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 29:AAS 84 (1992), 703-705; Bento XVI, Discurso à Cúria Romana durante a apresentação dos votos natalícios (22 de Dezembro de 2006):L'Osservatore Romano (ed. port. de 30/XII/2006), 658.
78. Cf. Propositio 11.
79. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 6; Código de Direito Canónico, cân. 241-§ 1 e cân. 1029;Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 342-§ 1 e cân. 758; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 11.34.50: AAS 84 (1992), 673-675.712714.746-748; Congr. para o Clero, Directório para o ministério e a vida dos presbíteros (31 de Março de 1994), n. 58; Congr. para a Educação Católica, Instr. sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao Seminário e às Ordens Sacras (4 de Novembro de 2005): AAS 97 (2005), 1007-1013.
80. Cf. Propositio 12; João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 41: AAS 84 (1992), 726-729.
81. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 29.
82. Cf. Propositio 38.
83. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 57: AAS 74 (1982), 149-150.
84. Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 26: AAS 80 (1988), 1715-1716.
85. Catecismo da Igreja Católica, 1617.
86. Cf. Propositio 8.
87. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
88. Cf. Propositio 8.
89. Cf. João Paulo II, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988): AAS 80 (1988), 1653-1729; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo (31 de Maio de 2004): AAS 96 (2004), 671-687.
90. Cf. Propositio 9.
91. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1640.
92. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 84: AAS 74 (1982), 184-186; Congr. para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica acerca da recepção da comunhão eucarística pelos fiéis divorciados re-casados Annus internationalis familiæ (14 de Setembro de 1994): AAS 86 (1994), 974-979.
93. Cf. Pont. Cons. para os Textos Legislativos, Instr. sobre as normas a observar pelos tribunais eclesiásticos nas causas matrimoniaisDignitatis connubii (25 de Janeiro de 2005), Cidade do Vaticano, 2005.
94. Cf. Propositio 40.
95. Bento XVI, Discurso ao Tribunal da Rota Romana por ocasião da inauguração do ano judicial (28 de Janeiro de 2006): AAS 98 (2006), 138.
96. Propositio 40.
97. Cf. Ibid., 40.
98. Cf. Ibid., 40.
99. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 48.
100. Cf. Propositio 3.
101. Apraz-me recordar aqui as palavras cheias de esperança e conforto que encontramos na Oração Eucarística II: « Lembrai-Vos dos nossos irmãos que adormeceram na esperança da ressurreição e de todos aqueles que, na vossa misericórdia, partiram deste mundo. Acolhei-os na luz da vossa presença ».
102. Cf. Bento XVI, Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e solenidade da Imaculada Conceição (8 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 15-16.
103. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 58.
104. Propositio 4.
105. Relatio post disceptationem, 4: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 660.
106. Cf. Sermones 1, 7; 11, 10; 22, 7; 29, 76: Sermones dominicales ad fidem codicum nunc denuo editi (Grottaferrata 1977), pp. 135.209s.292s.337; Bento XVI, Mensagem aos Movimentos Eclesiais e às Novas Comunidades (22 de Maio de 2006): AAS 98 (2006), 463.
107. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.
108. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 2.4.
109. Propositio 33.
110. Sermo 227, 1: PL 38, 1099.
111. Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium Tractatus, 21, 8: PL 35, 1568.
112. Ibid., 28, 1: o.c., 35, 1622.
113. Cf. Propositio 30. Mesmo a Santa Missa que a Igreja celebra durante a semana, na qual os fiéis são convidados a participar, encontra a sua forma própria no dia do Senhor, o dia da ressurreição de Cristo: cf. Propositio 43.
114. Cf. Propositio 2.
115. Cf. Propositio 25.
116. Cf. Propositio 19. E a Propositio 25 especifica: « Uma autêntica acção litúrgica exprime a sacralidade do mistério eucarístico. Esta deveria transparecer nas palavras e acções do sacerdote celebrante, quando intercede junto de Deus Pai quer com os fiéis quer pelos fiéis ».
117. Instrução Geral do Missal Romano, 22; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 41; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 19-25: AAS 96 (2004), 555-557.
118. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja Christus Dominus, 14; Const. sobre a sagrada liturgiaSacrosanctum Concilium, 41.
119. Instrução Geral do Missal Romano, 22.
120. Cf. Ibid., 22.
121. Cf. Propositio 25.
122. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 112-130.
123. Cf. Propositio 27.
124. Cf. Ibid., 27.
125. Em tudo o que diz respeito a estes aspectos, é preciso ater-se fielmente a quanto está indicado na Instrução Geral do Missal Romano, 319-351.
126. Cf. Instrução Geral do Missal Romano, 39-41; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 112-118.
127. Sermo 34, 1: PL 38, 210.
128. Cf. Propositio 25: « Como todas as expressões artísticas, também o canto deve estar intimamente harmonizado com a liturgia, colaborar eficazmente para o seu fim, ou seja, deve exprimir a fé, a oração, o enlevo, o amor por Jesus presente na Eucaristia ».
129. Cf. Propositio 29.
130. Cf. Propositio 36.
131. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 116; Instrução Geral do Missal Romano, 41.
132. Instrução Geral do Missal Romano, 28; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 56; Sagr. Congr. dos Ritos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967), 3: AAS (1967), 540-543.
133. Cf. Propositio 18.
134. Ibid., 18.
135. Instrução Geral do Missal Romano, 29.
136. Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 13: AAS 91 (1999), 15-16.
137. São Jerónimo, Commentariorum in Isaiam, Prol.: PL 24, 17; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum,25.
138. Cf. Propositio 31.
139. Instrução Geral do Missal Romano, 29; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 7.33.52.
140. Propositio 19.
141. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 52.
142. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina revelação Dei Verbum, 21.
143. Com esta finalidade, o Sínodo exortou a elaborar subsídios pastorais, baseados no Leccionário trienal, que ajudem a ligar de maneira intrínseca a proclamação das leituras previstas com a doutrina da fé: cf. Propositio 19.
144. Cf. Propositio 20.
145. Instrução Geral do Missal Romano, 78.
146. Cf. Ibid., 78-79.
147. Cf. Propositio 22.
148. Instrução Geral do Missal Romano, 79d.
149. Ibid., 79c.
150. Tendo em consideração antigos e veneráveis costumes e votos expressos pelos padres sinodais, pedi aos Dicastérios competentes que estudassem a possibilidade de se colocar a saudação da paz noutro momento, por exemplo antes da apresentação das oferendas ao altar. Aliás, tal escolha não deixaria de suscitar uma significativa evocação da advertência feita pelo Senhor a propósito da necessidade de reconciliação antes de qualquer oferta a Deus (Mt 5, 23s): cf. Propositio 23.
151. Cf. Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 80-96: AAS 96 (2004), 574-577.
152. Cf. Propositio 34.
153. Cf. Propositio 35.
154. Cf. Propositio 24.
155. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 14-20.30s.48s; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 36-42: AAS 96 (2004), 561-564.
156. N. 48.
157. Ibid., 48.
158. Cf. Congr. para o Clero e outros Dicastérios da Cúria Romana, Instr. acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes Ecclesiæ de mysterio (15 de Agosto de 1997): AAS 89 (1997), 852-877.
159. Cf. Propositio 33.
160. Instrução Geral do Missal Romano, 92.
161. Cf. Ibid., 94.
162. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 24; Instrução Geral do Missal Romano, nn. 95-111; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instr. Redemptionis sacramentum (25 de Março 2004), 43-47: AAS 96 (2004), 564-566; Propositio 33: « Estes ministérios devem ser introduzidos segundo um mandato específico e segundo as reais exigências da comunidade que celebra. As pessoas encarregadas destes serviços litúrgicos laicais devem ser escolhidas cuidadosamente, bem preparadas e acompanhadas por uma formação permanente. A sua nomeação deve ser temporária. Tais pessoas devem ser conhecidas pela comunidade e desta receberem também um grato reconhecimento ».
163. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 37-42.
164. Cf. nn. 386-399.
165. Veja-se o texto em AAS 87 (1995), 288-314.
166. Cf. Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 55-71: AAS 88 (1996), 34-47; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in America (22 de Janeiro de 1999), 16.40.64.70-72: AAS 91 (1999), 752-753.775-776.799.805-809; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Asia (6 de Novembro de 1999), 21s: AAS 92 (2000), 482-487; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Oceania (22 de Novembro de 2001), 16: AAS 94 (2002), 382-384; Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Europa (28 de Junho de 2003), 58-60: AAS 95 (2003), 685-686.
167. Cf. Propositio 26.
168. Cf. Propositio 35; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 11.
169. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1388; Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium, 55.
170. Cf. Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 34: AAS 95 (2003), 456.
171. Assim, por exemplo, São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III, q. 80, a. 1,2; Santa Teresa de Jesus, Caminho de perfeição, cap. 35. A doutrina foi confirmada autorizadamente pelo Concílio de Trento, Sessão XIII, cân. 8.
172. Cf. João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 8: AAS 87 (1995), 925-926.
173. Cf. Propositio 41; Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 8.15; João Paulo II, Carta enc. Ut unum sint (25 de Maio de 1995), 46: AAS 87 (1995), 948; Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 45-46: AAS 95 (2003), 463-464; Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 125.129-131: AAS 85 (1993), 1087.1088-1089.
174. Cf. nn. 1398-1401.
175. Cf. n. 293.
176. Cf. Pont. Cons. das Comunicações Sociais, Instr. past. sobre as comunicações sociais no XX aniversário da ‘‘Communio et progressio''Ætatis novæ (22 de Fevereiro de 1992): AAS 84 (1992), 447-468.
177. Cf. Propositio 29.
178. Cf. Propositio 44.
179. Cf. Propositio 48.
180. Tal conhecimento pode ser adquirido também no Seminário, durante os anos de formação dos candidatos ao sacerdócio, através de oportunas iniciativas: cf. Propositio 45.
181. Cf. Propositio 37.
182. Cf. Const. sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium36.54.
183. Cf. Propositio 36.
184. Cf. Ibid., 36.
185. Cf. Propositio 32.
186. Cf. Propositio 14.
187. Propositio 19.
188. Cf. Propositio 14.
189. Cf. Bento XVI, Homilia nas primeiras Vésperas de Pentecostes (3 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 509.
190. Propositio 34.
191. Enarrationes in Psalmos 98, 9: CCL 39, 1835; cf. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 44-45.
192. Cf. Propositio 6.
193. Bento XVI, Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 45.
194. Cf. Propositio 6; Congr. para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Directório sobre piedade popular e liturgia (17 de Dezembro de 2001), nn. 164-165; Sagr. Congr. dos Ritos, Instr. Eucharisticum mysterium (25 de Maio de 1967): AAS 57 (1067), 539-573.
195. Cf. Relatio post disceptationem, 11: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 661.
196. Cf. Propositio 28.
197. Cf. n. 314.
198. Confissões 7, 10, 16: PL 32, 742.
199. Bento XVI, Homilia na Esplanada de Marienfeld (21 de Agosto de 2005): AAS 97 (2005), 892; cf. Homilia nas primeiras Vésperas de Pentecostes (3 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 505.
200. Cf. Relatio post disceptationem, 6.47: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 660.663; Propositio 43.
201. De civitate Dei 10, 6: PL 41, 284.
202. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1368.
203. Cf. Santo Ireneu, Contra as heresias 4, 20, 7: PG 7, 1037.
204. Epístola aos Magnésios 9, 1: PG 5, 670.
205. Cf. I Apologia 67, 1-6; 66: PG 6, 430s; 427.
206. Cf. Propositio 30.
207. Cf. AAS 90 (1998), 713-766.
208. Propositio 30.
209. Homilia na solenidade de São José (19 de Março de 2006): AAS 98 (2006), 324.
210. A este respeito observa, oportunamente, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 258: « Para o homem, ligado à necessidade do trabalho, o repouso abre a perspectiva de uma liberdade mais plena, a do Sábado eterno (Heb 4, 9-10). O repouso consente aos homens recordar e reviver as obras de Deus, da criação à redenção, e reconhecerem-se a si próprios como obra do mesmo Deus (Ef 2, 10), dar-Lhe graças pela própria vida e subsistência, a Ele, que é seu autor ».
211. Cf. Propositio 10.
212. Cf. Ibid., 10.
213. Cf. Bento XVI, Discurso aos bispos da Conferência Episcopal do Canadá-Quebec em Visita ad limina Apostolorum (11 de Maio de 2006):L'Osservatore Romano (ed. port. de 20/V/2006), 227.
214. N. 10: AAS 71 (1979), 414-415.
215. Bento XVI, Audiência Geral de 29 de Março de 2006: L'Osservatore Romano (ed. port. de 01/IV/2006), 152.
216. Propositio 39.
217. Cf. Relatio post disceptationem, 30: L'Osservatore Romano (ed. port. de 19/XI/2005), 662.
218. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 39-42.
219. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 14.16: AAS 81 (1989), 409-413.416-418.
220. Cf. Propositio 39.
221. Cf. Ibid., 39.
222. Pontifical Romano – Ordenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos: Rito da Ordenação do Presbítero, n. 150.
223. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 19-33.70-81: AAS 84 (1992), 686-712. 778-800.
224. Propositio 38.
225. Propositio 39; cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 95: AAS 88 (1996), 470-471.
226. Código de Direito Canónico, cân. 663-§ 1.
227. Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 34: AAS 88 (1996), 407-408.
228. Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), 107: AAS 85 (1993), 1216-1217.
229. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 14: AAS 98 (2006), 229.
230. Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ (25 de Março de 1995): AAS 87 (1995), 401-522; Bento XVI, Discurso à Pontifícia Academia para a Vida (27 de Fevereiro de 2006): AAS 98 (2006), 264-265.
231. Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política (24 de Novembro de 2002): AAS 95 (2004), 359-370.
232. Cf. Propositio 46.
233. Homilia (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711.
234. Propositio 42.
235. Cf. O martírio de Policarpo 15, 1: PG 5, 1039.1042.
236. Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Romanos 4, 1: PG 5, 690.
237. Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 42.
238. Cf. Propositio 42; Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000), 13-15: AAS 92 (2000), 754-755.
239. Cf. Propositio 42.
240. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 18: AAS 98 (2006), 232.
241. Ibid., 14: o.c., 228-229.
242. Durante a assembleia sinodal ouvimos, comovidos, testemunhos muito significativos sobre a eficácia deste sacramento na obra de pacificação. A tal respeito, afirma-se na Propositio 49: « Graças às celebrações eucarísticas, povos em conflito puderam reunir-se ao redor da palavra de Deus, ouvir o seu anúncio profético da reconciliação através do perdão gratuito, receber a graça da conversão que permite a comunhão no mesmo pão e no mesmo cálice ».
243. Cf. Propositio 48.
244. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 239.
245. Propositio 48.
246. Bento XVI, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (9 de Janeiro de 2006): AAS 98 (2006), 127.
247. Ibid.: o.c., 127.
248. Cf. Propositio 48. A este respeito, revela-se muito útil o Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
249. Cf. Propositio 43.
250. Cf. Propositio 47.
251. Cf. Propositio 17.
252. Acta ss. Saturnini, Dativi et aliorum plurimorum martyrum in Africa 7, 9, 10: PL 8, 707.709-710.
253. Carta enc. Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 53: AAS 95 (2003), 469.
254. Oração Eucarística I (Cânone Romano).
255. Propositio 50.
256. Cf. Bento XVI, Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e solenidade da Imaculada Conceição (8 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 15.
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CARTA ENCÍCLICA
ECCLESIA DE EUCHARISTIADO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO IIAOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
NA SUA RELAÇÃO COM A IGREJA
ECCLESIA DE EUCHARISTIADO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO IIAOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A EUCARISTIA
NA SUA RELAÇÃO COM A IGREJA
INTRODUÇÃO
1. A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja. É com alegria que ela experimenta, de diversas maneiras, a realização incessante desta promessa: « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28, 20); mas, na sagrada Eucaristia, pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor, goza desta presença com uma intensidade sem par. Desde o Pentecostes, quando a Igreja, povo da nova aliança, iniciou a sua peregrinação para a pátria celeste, este sacramento divino foi ritmando os seus dias, enchendo-os de consoladora esperança.
O Concílio Vaticano II justamente afirmou que o sacrifício eucarístico é « fonte e centro de toda a vida cristã ».(1)Com efeito, « na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo ».(2) Por isso, o olhar da Igreja volta-se continuamente para o seu Senhor, presente no sacramento do Altar, onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.
2. Durante o Grande Jubileu do ano 2000, pude celebrar a Eucaristia no Cenáculo de Jerusalém, onde, segundo a tradição, o próprio Cristo a realizou pela primeira vez. O Cenáculo é o lugar da instituição deste santíssimo sacramento. Foi lá que Jesus tomou nas suas mãos o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: « Tomai, todos, e comei: Isto é o meu Corpo que será entregue por vós » (cf. Mt 26, 26; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24). Depois, tomou nas suas mãos o cálice com vinho e disse-lhes: « Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados » (cf. Mc 14, 24; Lc 22, 20; 1 Cor 11, 25). Dou graças ao Senhor Jesus por me ter permitido repetir no mesmo lugar, obedecendo ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19), as palavras por Ele pronunciadas há dois mil anos.
Teriam os Apóstolos, que tomaram parte na Última Ceia, entendido o significado das palavras saídas dos lábios de Cristo? Talvez não. Aquelas palavras seriam esclarecidas plenamente só no fim do Triduum Sacrum, ou seja, aquele período de tempo que vai da tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do Domingo de Páscoa. Nestes dias, está contido o mysterium paschale; neles está incluído também o mysterium eucharisticum.
3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial. Isto é visível desde as primeiras imagens da Igreja que nos dão os Actos do Apóstolos: « Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às orações » (2, 42). Na « fracção do pão », é evocada a Eucaristia. Dois mil anos depois, continuamos a realizar aquela imagem primordial da Igreja. E, ao fazê-lo na celebração eucarística, os olhos da alma voltam-se para o Tríduo Pascal: para o que se realizou na noite de Quinta-feira Santa, durante a Última Ceia, e nas horas sucessivas. De facto, a instituição da Eucaristia antecipava, sacramentalmente, os acontecimentos que teriam lugar pouco depois, a começar da agonia no Getsémani. Revemos Jesus que sai do Cenáculo, desce com os discípulos, atravessa a torrente do Cedron e chega ao Horto das Oliveiras. Existem ainda hoje naquele lugar algumas oliveiras muito antigas; talvez tenham sido testemunhas do que aconteceu junto delas naquela noite, quando Cristo, em oração, sentiu uma angústia mortal « e o seu suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra » (Lc 22, 44). O sangue que, pouco antes, tinha entregue à Igreja como vinho de salvação no sacramento eucarístico, começava a ser derramado; a sua efusão completar-se-ia depois no Gólgota, tornando-se o instrumento da nossa redenção: « Cristo, vindo como Sumo Sacerdote dos bens futuros [...] entrou uma só vez no Santo dos Santos, não com o sangue dos carneiros ou dos bezerros, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna » (Heb 9, 11-12).
4. A hora da nossa redenção. Embora profundamente turvado, Jesus não foge ao ver chegar a sua « hora »: « E que direi Eu? Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que cheguei a esta hora! » (Jo 12, 27). Quer que os discípulos Lhe façam companhia, mas deve experimentar a solidão e o abandono: « Nem sequer pudestes vigiar uma hora Comigo. Vigiai e orai para não cairdes em tentação » (Mt 26, 40-41). Aos pés da cruz, estará apenas João ao lado de Maria e das piedosas mulheres. A agonia no Getsémani foi o prelúdio da agonia na cruz de Sexta-feira Santa. A hora santa, a hora da redenção do mundo. Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à « hora » de Jesus, a hora da cruz e da glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela participa.
« Foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia ». Estes artigos da profissão de fé ecoam nas seguintes palavras de contemplação e proclamação: Ecce lignum crucis in quo salus mundi pependit. Venite adoremus - « Eis o madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do mundo. Vinde adoremos! » É o convite que a Igreja faz a todos na tarde de Sexta-feira Santa. E, quando voltar novamente a cantar já no tempo pascal, será para proclamar: Surrexit Dominus de sepulcro qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia - « Ressuscitou do sepulcro o Senhor que por nós esteve suspenso no madeiro. Aleluia ».
5. Mysterium fidei! - « Mistério da fé ». Quando o sacerdote pronuncia ou canta estas palavras, os presentes aclamam: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ».
Com estas palavras ou outras semelhantes, a Igreja, ao mesmo tempo que apresenta Cristo no mistério da sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Ecclesia de Eucharistia. Se é com o dom do Espírito Santo, no Pentecostes, que a Igreja nasce e se encaminha pelas estradas do mundo, um momento decisivo da sua formação foi certamente a instituição da Eucaristia no Cenáculo. O seu fundamento e a sua fonte é todo o Triduum Paschale, mas este está de certo modo guardado, antecipado e « concentrado » para sempre no dom eucarístico. Neste, Jesus Cristo entregava à Igreja a actualização perene do mistério pascal. Com ele, instituía uma misteriosa « contemporaneidade » entre aquele Triduum e o arco inteiro dos séculos.
Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo. Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma « capacidade » realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na Ordenação sacerdotal, realiza a consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, do Cenáculo, que pronuncia: « Isto é o meu Corpo que será entregue por vós »; « este é o cálice do meu Sangue, [...] que será derramado por vós ». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes,coloca a sua boca e a sua voz à disposição d'Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que fossem repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam ministerialmente do seu sacerdócio.
6. É este « enlevo » eucarístico que desejo despertar com esta carta encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta apostólica Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o « programa » que propus à Igreja na aurora do terceiro milénio, convidando-a a fazer-se ao largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização. Contemplar Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas presenças mas sobretudo no sacramento vivo do seu corpo e do seu sangue. A Igreja vive de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada. A Eucaristia é mistério de fé e, ao mesmo tempo, « mistério de luz ».(3)Sempre que a Igreja a celebra, os fiéis podem de certo modo reviver a experiência dos dois discípulos de Emaús: « Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-No » (Lc 24, 31).
7. Desde quando iniciei o ministério de Sucessor de Pedro, sempre quis contemplar a Quinta-feira Santa, dia da Eucaristia e do Sacerdócio, com um sinal de particular atenção enviando uma carta a todos os sacerdotes do mundo. Neste vigésimo quinto ano do meu Pontificado, desejo envolver mais plenamente a Igreja inteira nesta reflexão eucarística para agradecer ao Senhor especialmente pelo dom da Eucaristia e do sacerdócio: « Dom e mistério ».(4) Se, ao proclamar o Ano do Rosário, quis pôr este meu vigésimo quinto ano sob o signo da contemplação de Cristo na escola de Maria, não posso deixar passar esta Quinta-feira Santa de 2003 sem me deter diante do « rosto eucarístico » de Jesus, propondo à Igreja, com renovado ardor, a centralidade da Eucaristia. Dela vive a Igreja; nutre-se deste « pão vivo ». Por isso senti a necessidade de exortar a todos a experimentá-lo sempre de novo.
8. Quando penso na Eucaristia e olho para a minha vida de sacerdote, de Bispo, de Sucessor de Pedro, espontaneamente ponho-me a recordar tantos momentos e lugares onde tive a dita de celebrá-la. Recordo a igreja paroquial de Niegowić, onde desempenhei o meu primeiro encargo pastoral, a colegiada de S. Floriano em Cracóvia, a catedral do Wawel, a basílica de S. Pedro e tantas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude celebrar a Santa Missa em capelas situadas em caminhos de montanha, nas margens dos lagos, à beira do mar; celebrei-a em altares construídos nos estádios, nas praças das cidades... Este cenário tão variado das minhas celebrações eucarísticas faz-me experimentar intensamente o seu carácter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo acto de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada. Assim, Ele, o sumo e eterno Sacerdote, entrando com o sangue da sua cruz no santuário eterno, devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida. Fá-lo através do ministério sacerdotal da Igreja, para glória da Santíssima Trindade. Verdadeiramente este é o mysterium fidei que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo.
9. A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério eucarístico, uma atenção que sobressai com autoridade no magistério dos Concílios e dos Sumos Pontífices. Como não admirar as exposições doutrinais dos decretos sobre a Santíssima Eucaristia e sobre o Santo Sacrifício da Missa promulgados pelo Concílio de Trento? Aquelas páginas guiaram a teologia e a catequese nos séculos sucessivos, permanecendo ainda como ponto de referência dogmático para a incessante renovação e crescimento do povo de Deus na sua fé e amor à Eucaristia. Em tempos mais recentes, há que mencionar três encíclicas: a encíclica Miræ caritatis de Leão XIII (28 de Maio de 1902),(5) a encíclica Mediator Dei de Pio XII (20 de Novembro de 1947) (6) e a encíclica Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965).(7)
O Concílio Vaticano II, embora não tenha publicado qualquer documento específico sobre o mistério eucarístico, todavia ilustra os seus vários aspectos no conjunto dos documentos, especialmente na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium e na constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium.
Eu mesmo, nos primeiros anos do meu ministério apostólico na Cátedra de Pedro, tive oportunidade de tratar alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua incidência na vida daquele que é o seu ministro, com a carta apostólica Dominicæ Cenæ (24 de Fevereiro de 1980).(8) Hoje retomo o fio daquele discurso com o coração transbordante de emoção e gratidão, dando eco às palavras do Salmista: « Que darei eu ao Senhor por todos os seus benefícios? Elevarei o cálice da salvação invocando o nome do Senhor » (Sal 116/115, 12-13).
10. A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, activa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente. De facto, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a recta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério.
CAPÍTULO I
MISTÉRIO DA FÉ
11. « O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11, 23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia. Esta tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos séculos.(9) Esta verdade está claramente expressa nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé » feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».
A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom, embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente ».(10)
Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e « realiza-se também a obra da nossa redenção ».(11) Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes. Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável.(12) É esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que mais poderia Jesus ter feito por nós? Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao « extremo » (cf. Jo 13, 1), um amor sem medida.
12. Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor ».(13)
A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos. Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício ».(14) Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá ».(15)
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica.(16) O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio),(17) de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário.
13. Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor, antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp 2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição ».(18)
Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis] oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».(19)
14. A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ».(20) Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios « é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e em nosso favor ».(21)
15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».(22) Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».(23) Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa ».(24)
« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S. Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação. Compreende-se como, ao longo dos séculos, esta verdade tenha estimulado a teologia a árduos esforços de compreensão.
São esforços louváveis, tanto mais úteis e incisivos se capazes de conjugarem o exercício crítico do pensamento com a « vida de fé » da Igreja, individuada especialmente « no carisma da verdade » do Magistério e na « íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais » (25) sobretudo os Santos. Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».(26)
16. A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue « derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Recordemos as suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).
17. Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente ».(27) A Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos, pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons, [...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo ».(28) E, no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito ».(29) Assim, pelo dom do seu corpo e sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido como « selo » no sacramento da Confirmação.
18. A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde, Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».(30)A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ».(31) Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade. De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim dizer, o « segredo » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».(32)
19. A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro » (Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho.
20. Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.(33) Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinópticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34).(34)
Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).
CAPÍTULO II
A EUCARISTIA EDIFICA A IGREJA
21. O Concílio Vaticano II veio recordar que a celebração eucarística está no centro do processo de crescimento da Igreja. De facto, depois de afirmar que « a Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo pelo poder de Deus »,(35) querendo de algum modo responder à questão sobre o modo como cresce, acrescenta: « Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, no qual “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1 Cor 10, 17) ».(36)
Existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da Igreja. Os evangelistas especificam que foram os Doze, os Apóstolos, que estiveram reunidos com Jesus na Última Ceia (cf. Mt 26, 20; Mc 14, 17; Lc 22, 14). Trata-se de um detalhe de notável importância, porque os Apóstolos « foram a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia ».(37) Ao oferecer-lhes o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário. De modo análogo à aliança do Sinai, que foi selada com um sacrifício e a aspersão do sangue,(38) os gestos e as palavras de Jesus na Última Ceia lançavam os alicerces da nova comunidade messiânica, povo da nova aliança.
No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceite o convite de Jesus: « Tomai, comei [...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26.27), entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. Desde então e até ao fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória [...]. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em minha memória » (1 Cor 11, 24-25; cf. Lc 22, 19).
22. A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade connosco: « Chamei-vos amigos » (Jo 15, 14). Mais ainda, nós vivemos por Ele: « O que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: « Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15, 4).
Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se « sacramento » para a humanidade,(39) sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) para a redenção de todos.(40) A missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: « Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fontee simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n'Ele, com o Pai e com o Espírito Santo.(41)
23. Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua unidade de corpo de Cristo. A este efeito unificador que tem a participação no banquete eucarístico, alude S. Paulo quando diz aos coríntios: « O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » (1 Cor 10, 16-17). Concreto e profundo, S. João Crisóstomo comenta: « Com efeito, o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem? No corpo de Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De facto, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo ».(42) A argumentação é linear: a nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com que, n'Ele, sejamos parte também do seu corpo total que é a Igreja. A Eucaristia consolida a incorporação em Cristo operada no Baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1 Cor 12, 13.27).
A acção conjunta e indivisível do Filho e do Espírito Santo, que está na origem da Igreja, tanto da sua constituição como da sua continuidade, opera na Eucaristia. Bem ciente disto, o autor da Liturgia de S. Tiago, na epiclese da anáfora, pede a Deus Pai que envie o Espírito Santo sobre os fiéis e sobre os dons, para que o corpo e o sangue de Cristo « sirvam a todos os que deles participarem [...] de santificação para as almas e os corpos ».(43) A Igreja é fortalecida pelo Paráclito divino através da santificação eucarística dos fiéis.
24. O dom de Cristo e do seu Espírito, que recebemos na comunhão eucarística, realiza plena e sobreabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que é a participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito acima da mera experiência dum banquete humano. Pela comunhão do corpo de Cristo, a Igreja consegue cada vez mais profundamente ser, « em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(44)
Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de unidade do corpo de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo comunidade entre os homens.
25. O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho (45) – resulta da celebração da Eucaristia e destina-se à comunhão, sacramental e espiritual.(46)Compete aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo presente sob as espécies eucarísticas(47)
É bom demorar-se com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo predilecto (cf. Jo 13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se actualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela « arte da oração »,(48) como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio!
Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério,(49) deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto S. Afonso Maria de Ligório, que escrevia: « A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para nós ».(50) A Eucaristia é um tesouro inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da Missa permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar melhor o rosto de Cristo, segundo o espírito que sugeri nas cartas apostólicas Novo millennio ineunte e Rosarium Virginis Mariæ, não pode deixar de desenvolver também este aspecto do culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e sangue do Senhor.
CAPÍTULO III
A APOSTOLICIDADE DA EUCARISTIA E DA IGREJA
26. Se a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia, como antes recordei, consequentemente há entre ambas uma conexão estreitíssima, podendo nós aplicar ao mistério eucarístico os atributos que dizemos da Igreja quando professamos, no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que é « una, santa, católica e apostólica ». Também a Eucaristia é una e católica; e é santa, antes, é o Santíssimo Sacramento. Mas é principalmente sobre a sua apostolicidade que agora queremos concentrar a nossa atenção.
27. Quando o Catecismo da Igreja Católica explica em que sentido a Igreja se diz apostólica, ou seja, fundada sobre os Apóstolos, individua na expressão um tríplice sentido. O primeiro significa que a Igreja « foi e continua a ser construída sobre o “alicerce dos Apóstolos” (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo ».(51) Ora, no caso da Eucaristia, os Apóstolos também estão na sua base: naturalmente o sacramento remonta ao próprio Cristo, mas foi confiado por Jesus aos Apóstolos e depois transmitido por eles e seus sucessores até nós. É em continuidade com a acção dos Apóstolos e obedecendo ao mandato do Senhor que a Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos.
O segundo sentido que o Catecismo indica para a apostolicidade da Igreja é este: ela « guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos ».(52) Também neste sentido a Eucaristia é apostólica, porque é celebrada de acordo com a fé dos Apóstolos. Diversas vezes na história bimilenária do povo da nova aliança, o magistério eclesial especificou a doutrina eucarística, nomeadamente quanto à sua exacta terminologia, precisamente para salvaguardar a fé apostólica neste excelso mistério. Esta fé permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue.
28. Por último, a Igreja é apostólica enquanto « continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o Colégio dos Bispos, assistido pelos presbíteros, em união com o Sucessor de Pedro, Pastor supremo da Igreja ».(53) Para suceder aos Apóstolos na missão pastoral é necessário o sacramento da Ordem, graças a uma série ininterrupta, desde as origens, de Ordenações episcopais válidas.(54) Esta sucessão é essencial, para que exista a Igreja em sentido próprio e pleno.
A Eucaristia apresenta também este sentido da apostolicidade. De facto, como ensina o Concílio Vaticano II, « os fiéis por sua parte concorrem para a oblação da Eucaristia, em virtude do seu sacerdócio real »,(55)mas é o sacerdote ministerial que « realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo ».(56)Por isso se prescreve noMissal Romano que seja unicamente o sacerdote a recitar a oração eucarística, enquanto o povo se lhe associa com fé e em silêncio.(57)
29. A afirmação, várias vezes feita no Concílio Vaticano II, de que « o sacerdote ministerial realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo (in persona Christi) »,(58) estava já bem radicada no magistério pontifício.(59) Como já tive oportunidade de esclarecer noutras ocasiões, a expressão in persona Christi « quer dizer algo mais do que “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. In persona, isto é, na específica e sacramental identificação com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o Autor e o principal Sujeito deste seu próprio sacrifício, no que verdadeiramente não pode ser substituído por ninguém ».(60) Na economia de salvação escolhida por Cristo, o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia.
A assembleia que se reúne para a celebração da Eucaristia necessita absolutamente de um sacerdote ordenado que a ela presida, para poder ser verdadeiramente uma assembleia eucarística. Por outro lado, a comunidade não é capaz de dotar-se por si só do ministro ordenado. Este é um dom que ela recebe através da sucessão episcopal que remonta aos Apóstolos. É o Bispo que constitui, pelo sacramento da Ordem, um novo presbítero, conferindo-lhe o poder de consagrar a Eucaristia. Por isso, « o mistério eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um sacerdote ordenado, como ensinou expressamente o Concílio Ecuménico Lateranense IV ».(61)
30. Tanto esta doutrina da Igreja Católica sobre o ministério sacerdotal na sua relação com a Eucaristia, como a referente ao sacrifício eucarístico foram, nos últimos decénios, objecto de profícuo diálogo no âmbito da acção ecuménica. Devemos dar graças à Santíssima Trindade pelos significativos progressos e aproximações que se verificaram e que nos ajudam a esperar um futuro de plena partilha da fé. Permanece plenamente válida ainda a observação feita pelo Concílio Vaticano II acerca das Comunidades eclesiais surgidas no ocidente depois do século XVI e separadas da Igreja Católica: « Embora falte às Comunidades eclesiais de nós separadas a unidade plena connosco proveniente do Baptismo, e embora creamos que elas não tenham conservado a genuína e íntegra substância do mistério eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem, contudo, quando na santa Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ».(62)
Por isso, os fiéis católicos, embora respeitando as convicções religiosas destes seus irmãos separados, devem abster-se de participar na comunhão distribuída nas suas celebrações, para não dar o seu aval a ambiguidades sobre a natureza da Eucaristia e, consequentemente, faltar à sua obrigação de testemunhar com clareza a verdade. Isso acabaria por atrasar o caminho para a plena unidade visível. De igual modo, não se pode pensar em substituir a Missa do domingo por celebrações ecuménicas da Palavra, encontros de oração comum com cristãos pertencentes às referidas Comunidades eclesiais, ou pela participação no seu serviço litúrgico. Tais celebrações e encontros, em si mesmos louváveis quando em circunstâncias oportunas, preparam para a almejada comunhão plena incluindo a comunhão eucarística, mas não podem substituí-la.
Além disso, o facto de o poder de consagrar a Eucaristia ter sido confiado apenas aos Bispos e aos presbíteros não constitui qualquer rebaixamento para o resto do povo de Deus, já que na comunhão do único corpo de Cristo, que é a Igreja, este dom redunda em benefício de todos.
31. Se a Eucaristia é centro e vértice da vida da Igreja, é-o igualmente do ministério sacerdotal. Por isso, com espírito repleto de gratidão a Jesus Cristo nosso Senhor, volto a afirmar que a Eucaristia « é a principal e central razão de ser do sacramento do Sacerdócio, que nasceu efectivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela ».(63)
Muitas são as actividades pastorais do presbítero. Se depois se pensa às condições sócio-culturais do mundo actual, é fácil ver como grava sobre ele o perigo da dispersão pelo grande número e diversidade de tarefas. O Concílio Vaticano II individuou como vínculo, que dá unidade à sua vida e às suas actividades, a caridade pastoral. Esta – acrescenta o Concílio – « flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero ».(64) Compreende-se, assim, quão importante seja para a sua vida espiritual, e depois para o bem da Igreja e do mundo, que o sacerdote ponha em prática a recomendação conciliar de celebrar diariamente a Eucaristia, « porque, mesmo que não possa ter a presença dos fiéis, é acto de Cristo e da Igreja ».(65) Deste modo, ele será capaz de vencer toda a dispersão ao longo do dia, encontrando no sacrifício eucarístico, verdadeiro centro da sua vida e do seu ministério, a energia espiritual necessária para enfrentar as diversas tarefas pastorais. Assim, os seus dias tornar-se-ão verdadeiramente eucarísticos.
Da centralidade da Eucaristia na vida e no ministério dos sacerdotes deriva também a sua centralidade na pastoral em prol das vocações sacerdotais. Primeiro, porque a oração pelas vocações encontra nela o lugar de maior união com a oração de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote; e, depois, porque a solícita atenção dos sacerdotes pelo ministério eucarístico, juntamente com a promoção da participação consciente, activa e frutuosa dos fiéis na Eucaristia, constituem exemplo eficaz e estímulo para uma resposta generosa dos jovens ao apelo de Deus. Com frequência, Ele serve-Se do exemplo de zelosa caridade pastoral dum sacerdote para semear e fazer crescer no coração do jovem o germe da vocação ao sacerdócio.
32. Tudo isto comprova como é triste e anómala a situação duma comunidade cristã que, embora se apresente quanto a número e variedade de fiéis como uma paróquia, todavia não tem um sacerdote que a guie. De facto, a paróquia é uma comunidade de baptizados que exprime e afirma a sua identidade, sobretudo através da celebração do sacrifício eucarístico; mas isto requer a presença dum presbítero, o único a quem compete oferecer a Eucaristia in persona Christi. Quando uma comunidade está privada do sacerdote, procura-se justamente remediar para que de algum modo continuem as celebrações dominicais; e os religiosos ou os leigos que guiam os seus irmãos e irmãs na oração exercem de modo louvável o sacerdócio comum de todos os fiéis, baseado na graça do Baptismo. Mas tais soluções devem ser consideradas provisórias, enquanto a comunidade espera um sacerdote.
A deficiência sacramental destas celebrações deve, antes de mais nada, levar toda a comunidade a rezar mais fervorosamente ao Senhor para que mande trabalhadores para a sua messe (cf. Mt 9, 38); e estimulá-la a pôr em prática todos os demais elementos constitutivos duma adequada pastoral vocacional, sem ceder à tentação de procurar soluções que passem pela atenuação das qualidades morais e formativas requeridas nos candidatos ao sacerdócio.
33. Quando, devido à escassez de sacerdotes, foi confiada a fiéis não ordenados uma participação no cuidado pastoral duma paróquia, eles tenham presente que, como ensina o Concílio Vaticano II, « nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração eucarística ».(66) Portanto, hão-de pôr todo o cuidado em manter viva na comunidade uma verdadeira « fome » da Eucaristia, que leve a não perder qualquer ocasião de ter a celebração da Missa, valendo-se nomeadamente da presença eventual de um sacerdote não impedido pelo direito da Igreja de celebrá-la.
CAPÍTULO IV
A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL
34. Em 1985, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a « eclesiologia da comunhão » como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio Vaticano II.(67) Enquanto durar a sua peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta « vive e cresce »,(68) e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo comunhão se tornou um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigénito por obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, « mais do que em qualquer outro sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens: nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus une-Se connosco pela união mais perfeita ».(69) Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. Daqui nasceu a prática da « comunhão espiritual » em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia S. Teresa de Jesus: « Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor ».(70)
35. Entretanto a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em Cristo, pela acção do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação.(71) Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.
36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos « participantes da natureza divina » (cf. 2 Ped 1, 4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da caridade. De facto, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na caridade, permanecendo na Igreja com o « corpo » e o « coração »; (72) ou seja, usando palavras de S. Paulo, é necessária « a fé que actua pela caridade » (Gal 5, 6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o corpo e o sangue de Cristo. Um tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a advertência seguinte: « Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice » (1 Cor 11, 28). Com a sua grande eloquência, S. João Crisóstomo assim exortava os fiéis: « Também eu levanto a voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De facto, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos ».(73)
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente: « Aquele que tiver consciência dum pecado grave, deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão ».(74) Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há-de vigorar na Igreja a norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do apóstolo Paulo, ao afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, « se deve fazer antes a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal ».(75)
37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que S. Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: « Suplicamo-vos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus » (2 Cor 5, 20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infracção moral se refere a norma do Código de Direito Canónico relativa à não admissão à comunhão eucarística de quantos « obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto ».(76)
38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível, manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina: « São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos ».(77)
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja, exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de comunhão. De modo especial, sendo ela « como que a perfeição da vida espiritual e o fim para que tendem todos os sacramentos »,(78) requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Baptismo e na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja baptizada ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade, e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14, 6; 18, 37); o sacramento do seu corpo e sangue não consente ficções.
39. Além disso, em virtude do carácter próprio da comunhão eclesial e da relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que « o sacrifício eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é uma celebração apenas dessa comunidade: de facto esta, ao receber a presença eucarística do Senhor, recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa, católica e apostólica ».(79) Daí que uma comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse auto-suficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular.(80) Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia S. Inácio de Antioquia: « Seja tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele encarregou ».(81) De igual modo, visto que « o Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis »,(82) a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico. Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: « Cada celebração eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo mas também com o Papa, com a Ordem episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas cristãs separadas de Roma, assim a reclama objectivamente ».(83)
40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao escrever aos fiéis de Corinto, S. Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do Senhor. E convidava-os, por isso, a reflectirem sobre a verdadeira realidade da Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1 Cor 11, 17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em S. Agostinho quando, depois de recordar a afirmação do Apóstolo « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor 12, 27), observava: « Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis ».(84) E daí concluía: « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação ».(85)
41. Esta eficácia peculiar que tem a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical. Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e dos fiéis, na carta apostólica sobre a santificação do domingo Dies Domini,(86) recordando, para além do mais, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a todos a possibilidade efectiva de cumprirem o preceito.(87) Mais tarde, na carta apostólica Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do terceiro milénio, quis assinalar de modo particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão: « É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade ».(88)
42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objectivas nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua fiel observância torna-se uma expressão efectiva de amor à Eucaristia e à Igreja.
43. Quando se considera a Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecuménico. Todos devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo, muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O Concílio Vaticano II, ao princípio do seu decreto sobre o ecumenismo, considera isto como um dom especial de Deus.(89) Foi uma graça eficaz que fez caminhar pela senda ecuménica tanto a nós, filhos da Igreja Católica, como aos nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna expressão e fonte insuperável.(90) Na celebração do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo um só corpo e um só espírito.(91) Quando apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do Qual provém toda a boa dádiva e todo o dom perfeito (cf. Tg 1, 17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em união com Cristo, Cabeça e Esposo, o Qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu sacrifício redentor.
44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por meio do sacrifício e da comunhão do corpo e sangue do Senhor, comporta a exigência imprescindível duma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico, não é possível concelebrar a liturgia eucarística enquanto não for restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão, atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade. Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas,(92) atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II.(93)
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei, na carta encíclica Ut unum sint, depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: « E todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos dirigimo-nos ao Pai e fazemo-lo cada vez mais com um só coração ».(94)
45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De facto, neste caso tem-se como objectivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis, e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível enquanto não forem plenamente reatados os laços visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direcção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se com os Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja Católica, quando espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem preparados.(95) Tal modo de proceder seria depois ratificado por ambos os Códigos canónicos, nos quais é contemplado também, com os devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.(96)
46. Na encíclica Ut unum sint, manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à salvação das almas, com o devido discernimento: « É motivo de alegria lembrar que os ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos. Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde eles são válidos »(97)
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição duma ou mais verdades de fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio ministerial para serem válidos, deixa o requerente impreparado para uma legítima recepção dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão numa comunidade onde falte o sacramento da Ordem.(98)
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria (99) é prova e simultaneamente garantia de amor por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.
CAPÍTULO V
O DECORO DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos Sinópticos, fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, que João identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos – particularmente em Judas (Mt 26, 8;Mc 14, 4; Jo 12, 4) – uma reacção de protesto contra tal gesto que, em face das necessidades dos pobres, constituía um « desperdício » intolerável. Mas Jesus faz uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os necessitados, aos quais sempre se hão-de dedicar os discípulos – « Pobres, sempre os tereis convosco » (Jo 12, 8; cf. Mt 26, 11;Mc 14, 7) –, Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinópticos, a narração continua com o encargo dado por Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da « grande sala », necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14, 15; Lc 22, 12), e com a descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até ao canto do « Hallel » (cf.Mt 26, 30; Mc 14, 26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu corpo entregue e do seu sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz duma prática, consolidada já na Igreja primitiva, da « fracção do pão ». O certo é que, desde o tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços duma « sensibilidade » litúrgica, modulada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta a remodular-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.
48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu « desperdiçar », investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros discípulos encarregados de preparar a « grande sala », ela sentiu-se impelida, ao longo dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia num ambiente digno de tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e gestos de Jesus, desenvolvendo a herança ritual do judaísmo, que nasceu a liturgia cristã. Porventura haverá algo que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino continuamente faz de Si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas gerações de crentes o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-Se alimento para todos os fiéis? Se a ideia do « banquete » inspira familiaridade, a Igreja nunca cedeu à tentação de banalizar esta « intimidade » com o seu Esposo, recordando-se que Ele é também o seu Senhor e que, embora « banquete », permanece sempre um banquete sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O Banquete eucarístico é verdadeiramente banquete « sagrado », onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o abismo da santidade de Deus: O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur! - « Ó Sagrado Banquete, em que se recebe Cristo! » O pão que é repartido nos nossos altares, oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é « panis angelorum », pão dos anjos, do qual só é possível abeirar-se com a humildade do centurião do Evangelho: « Senhor, eu não sou digno que entres debaixo do meu tecto » (Mt 8, 8; Lc 6, 6).
49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na « domus » das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a « cultura », especialmente no sector estético.
50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual e estética, empenharam-se, como se fosse uma « competição », os cristãos do Ocidente e do Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria – um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige, como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente « eucarística », na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um « ícone » da Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu mesmo sublinhei na Carta aos Artistas; (100) mas, a arte sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.
51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte sacra e da disciplina litúrgica, está a verificar-se tambémnos continentes onde o cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a propósito da exigência duma sã e necessária « inculturação ». Nas minhas numerosas viagens pastorais, pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a celebração eucarística em contacto com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a encontrar-se. O « tesouro » é demasiado grande e precioso para se correr o risco de o empobrecer ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa Sé. Como escrevia na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Asia, « tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal ».(101)
52. De quanto fica dito, compreende-se a grande responsabilidade que têm sobretudo os sacerdotes na celebração eucarística, à qual presidem in persona Christi, assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa directamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra o « formalismo » levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as « formas » escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Actualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão universal.
CAPÍTULO VI
NA ESCOLA DE MARIA, MULHER « EUCARÍSTICA »
53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia.(102) Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que Ela estava presente no meio dos Apóstolos, quando, « unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam assiduamente à oração » (Act 1, 14), na primeira comunidade que se reuniu depois da Ascensão à espera do Pentecostes. E não podia certamente deixar de estar presente, nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram assíduos à « fracção do pão » (Act 2, 42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a relação de Maria com a Eucaristia indirectamente a partir da sua atitude interior. Maria é mulher « eucarística » na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo.
54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato: « Fazei isto em memória de Mim », ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz para obedecermos a seu Filho sem hesitação: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2, 5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, Ela parece dizer-nos: « Não hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, entregando aos crentes, neste mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida” ».
55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição, coloca-se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n'Ela o que se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o corpo e o sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o amém que cada fiel pronuncia quando recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela concebia « por obra do Espírito Santo » era o « Filho de Deus » (cf. Lc 1, 30-35). Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
« Feliz d'Aquela que acreditou » (Lc 1, 45): Maria antecipou também, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de « sacrário » – o primeiro « sacrário » da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, Se presta à adoração de Isabel, como que « irradiando » a sua luz através dos olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor a que se devem inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?
56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o menino Jesus ao templo de Jerusalém, « para O apresentar ao Senhor » (Lc 2, 22), ouviu o velho Simeão anunciar que aquele Menino seria « sinal de contradição » e que uma « espada » havia de trespassar também a alma d'Ela (cf. Lc 2, 34-35). Assim foi vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o « stabat Mater » aos pés da Cruz. Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de « Eucaristia antecipada », dir-se-ia uma « comunhão espiritual » de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e manifestar-se-á depois, no período pós-pascal, na sua participação na celebração eucarística, presidida pelos Apóstolos, como « memorial » da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria, ao ouvir dos lábios de Pedro, João, Tiago e restantes apóstolos as palavras da Última Ceia: « Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós » (Lc 22, 19). Aquele corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que batera em uníssono com o d'Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da Cruz.
57. « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No « memorial » do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na sua paixão e morte. Por isso, não pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De facto, entrega-Lhe o discípulo predilecto e, nele, entrega cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual modo diz a cada um de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).
Viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber continuamente este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das celebrações eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binómio Maria e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do Ocidente a recordação de Maria na celebração eucarística.
58. Na Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o Magnificat em perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a Eucaristia é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com » Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55), anunciando a maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos « derrubados dos seus tronos » e « exaltados os humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo céu » e aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a « síntese » programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de Maria, seja toda ela um magnificat!
CONCLUSÃO
59. « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto ano de ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando celebrei a minha Missa Nova na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos » e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa « contemporaneidade ». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados aquele Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro homine! ». Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede – é certo – e põe a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os nossos sentidos falham – « visus, tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino Adoro te devote –; mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna » (Jo 6, 68).
60. Na aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta apostólica Novo millennio ineunte, « não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste ».(103) A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia, temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o dom do Espírito Santo, temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como poderíamos dar remédio à nossa indigência?
61. O mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não permite reduções nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão, quer no período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada, e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio é também caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo milénio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção, convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut unum sint » (Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obstáculos que superam a capacidade humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do facto de ele ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na defesa deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque, « neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação ».(104)
62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos, grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia adquire todo o brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos « abrasa ». Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque n'Ela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N'Ela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo céu » e da « nova terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: « Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!
Nos sinais humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e sangue, Cristo caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se na adoração e num amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como é de alegria e de paz:
« Bone Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere... ».
« Bom Pastor, pão da verdade,Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
Aos mortais dando comidaDais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira Santa, do ano 2003, vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.
IOANNES PAULUS II
Notas
(3)Cf. João Paulo II, Carta ap. Rosarium Virginis Mariæ (16 de Outubro de 2002), 21: AAS 95 (2003), 19.
(4)Assim quis intitular um testemunho autobiográfico que escrevi por ocasião das Bodas de Ouro do meu sacerdócio.
(9)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 47: « O nosso Salvador instituiu [...] o sacrifício eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz ».
(12)Cf. Paulo VI, Solene profissão de fé (30 de Junho de 1968), 24: AAS 60 (1968), 442; João Paulo II, Carta ap. Dominicæ Cenæ(24 de Fevereiro de 1980), 12: AAS 72 (1980), 142.
(16)« Trata-se realmente de uma única e mesma vítima, que o próprio Jesus oferece pelo ministério dos sacerdotes, Ele que um dia Se ofereceu a Si mesmo na cruz; somente o modo de oferecer-Se é que é diverso »: Conc. Ecum. de Trento, Sess. XXII,Doctrina de ss. Missæ sacrificio, cap. 2: DS 1743.
(33)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 39.
(34)« Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: « Isto é o meu Corpo », [...] também afirmou: « Vistes-Me com fome e não me destes de comer », e ainda: « Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra »: S. João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509; cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 31: AAS 80 (1988), 553-556.
(38)« Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor concluiu convosco mediante todas estas palavras” » (Ex 24, 8).
(41)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 5. No n. 6 do mesmo decreto, lê-se: « Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia ».
(42)Homilias sobre a I Carta aos Coríntios, 24, 2: PG 61, 200; cf. Didaké, IX, 4: F. X. Funk, I, 22; S. Cipriano, Epistula LXIII, 13: PL4, 384.
(45)Cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess. XIII, Decretum de ss. Eucharistia, cân. 4: DS 1654.
(49)« Durante o dia, os fiéis não deixem de visitar o Santíssimo Sacramento, que se deve conservar nas igrejas, no lugar mais digno e com as honras devidas segundo as leis litúrgicas; cada visita é prova de gratidão, sinal de amor e dever de adoração a Cristo ali presente »: Paulo VI, Carta enc. Mysterium fidei (3 de Setembro de 1965): AAS 57 (1965), 771.
(50)Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Maria Santíssima, Introdução: Obras Ascéticas (Avelino 2000), 295.
(54)Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale (6 de Agosto de 1983), III, 2: AAS 75 (1983), 1005.
(58)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 10 e 28; Decr. sobre o ministério e a vida dos sacerdotes Presbyterorum ordinis, 2.
(59)« O ministro do altar age personificando Cristo cabeça, que oferece em nome de todos os membros »: Pio XII, Carta enc.Mediator Dei (20 de Novembro de 1947): AAS 39 (1947), 556; cf. Pio X, Exort. ap. Hærent animo (4 de Agosto de 1908): Pii X Acta, IV, 16; Pio XI, Carta enc. Ad catholici sacerdotii (20 de Dezembro de 1935): AAS 28 (1936), 20.
(61)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre algumas questões concernentes ao ministro da Eucaristia Sacerdotium ministeriale(6 de Agosto de 1983), III, 4: AAS 75 (1983), 1006; cf. IV Conc. Ecum. de Latrão, Const. sobre a fé católica Firmiter credimus, cap. 1: DS 802.
(65)Ibid., 13; Código de Direito Canónico, cân. 904; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 378.
(71)Cf. Congr. da Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 4: AAS 85 (1993), 839-840.
(74)N. 1385; cf. Código de Direito Canónico, cân. 916; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 711.
(77)Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 14.
(79)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 11: AAS 85 (1993), 844.
(80)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(82)Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 23.
(83)Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão Communionis notio (28 de Maio de 1992), 14: AAS 85 (1993), 847.
(89)Cf. Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 1.
(90)Cf. Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 11.
(91)« Fazei que, participando do único pão e do único cálice, permaneçamos unidos uns aos outros na comunhão do único Espírito Santo »: Anáfora da Liturgia de S. Basílio.
(92)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 908; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 702; Pont. Cons. para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo (25 de Março de 1993), 122-125.129-131: AAS 85 (1993), 1086-1089; Congr. da Doutrina da Fé, Carta Ad exsequendam (18 de Maio de 2001): AAS 93 (2001), 786.
(93)« A comunicação nas coisas sagradas que ofende a unidade da Igreja ou inclui adesão formal ao erro ou perigo de aberração na fé, de escândalo e de indiferentismo, é proibida por lei divina »: Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 26.
(95)Decr. sobre as Igrejas católicas orientais Orientalium Ecclesiarum, 27.
(96)Cf. Código de Direito Canónico, cân. 844-§§ 3 e 4; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 671-§§ 3 e 4.
(98)Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio, 22.
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CARTA ENCÍCLICA
MEDIATOR DEI
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A SAGRADA LITURGIA
INTRODUÇÃO
1. "O mediador entre Deus e os homens", (1) o grande pontífice que penetrou os céus, Jesus filho de Deus,(2) assumindo a obra de misericórdia com a qual enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais, visou sem dúvida a restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o pecado tinha perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro princípio e último fim, a mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo pecado original. E por isso, durante a sua permanência na terra, não só anunciou o início da redenção e declarou inaugurado o reino de Deus, mas ainda cuidou de promover a salvação das almas pelo contínuo exercício da pregação e do sacrifício, até que, na cruz, se ofereceu a Deus qual vítima imaculada para "purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo".(3) Assim, todos os homens, felizmente chamados do caminho que os arrastava à ruína e à perdição, foram ordenados de novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal colaboração na obra da própria santificação, fruto do sangue imaculado do Cordeiro, dessem a Deus a glória que lhe é devida.
2. O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso instituiu um sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação pura, (4) a fim de que todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos do pecado, por dever de consciência servissem espontânea e voluntariamente a Deus.
3. A Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o ofício sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o faz em primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é perpetuamente representado(5) e renovado, com a só diferença no modo de oferecer; em seguida, com os sacramentos, que são instrumentos particulares por meio dos quais os homens participam da vida sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de louvores oferecido a Deus ótimo e máximo(6). "Que jubiloso espetáculo – diz o nosso predecessor de feliz memória Pio XI – oferece ao céu e à terra a Igreja que reza, enquanto continuamente dia e noite, se cantam na terra os salmos escritos por inspiração divina: nenhuma hora do dia transcorre sem a consagração de uma liturgia própria; cada etapa da vida tem seu lugar na ação de graças, nos louvores, preces e aspirações desta comum oração do corpo místico de Cristo, que é a Igreja."(7)
4. Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século passado e nos princípios do presente, houve singular fervor de estudos litúrgicos; já por louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo pela zelosa e assídua diligência de vários mosteiros da ínclita ordem beneditina; assim que não somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas terras de além-mar, se desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil emulação, cujas benéficas conseqüências foram visíveis, quer no campo das disciplinas sagradas, onde os ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental foram mais ampla e profundamente estudados e conhecidos, quer na vida espiritual e íntima de muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do altar foram mais conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos sacramentos maior e mais freqüente; as orações litúrgicas mais suavemente saboreadas e o culto eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e fonte da verdadeira piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência o fato de que todos os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo a cabeça, com o conseqüente dever para o povo cristão de participar, segundo a própria condição, dos ritos litúrgicos.
5. Sem dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para que o povo a ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido litúrgico e que, com zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados ritos brilhem até externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma ordem de idéias, falando, segundo o costume, aos pregadores quaresmais desta nossa excelsa cidade, em 1943, nós os havíamos calorosamente exortado a advertir os seus ouvintes que participassem, com maior empenho, do sacrifício eucarístico; e recentemente fizemos traduzir de novo em latim, do texto original, o livro dos Salmos para que as preces litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja católica, fossem mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais facilmente percebidas.(8)
6. Todavia, enquanto pelos salutares frutos que dele derivam, o apostolado litúrgico nos é de não pequeno conforto, o nosso dever nos impõe seguir com atenção esta "renovação" na maneira pela qual é concebida por alguns, e cuidar diligentemente para que as iniciativas não se tornem excessivas nem insuficientes.
7. Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e freqüentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética.
8. A pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta sagrada disciplina, que deve necessariamente conformar-se ao sapientíssimo ensinamento da Igreja. É, portanto, nosso dever louvar e aprovar tudo o que é bem feito, conter ou reprovar tudo o que se desvia do verdadeiro e justo caminho.
9. Não acreditem, pois, os inertes e os tíbios ter a nossa aprovação porque repreendemos os que erram e contemos os audazes; nem os imprudentes se tenham por louvados quando corrigimos os negligentes e os preguiçosos. Ainda que nesta nossa encíclica tratemos sobretudo da liturgia latina, não é que tenhamos em menor estima as venerandas liturgias da Igreja oriental, cujos ritos, transmitidos por nobres e antigos documentos, nos são igualmente caríssimos; mas visamos antes às condições particulares da Igreja ocidental, que são tais que reclamam a intervenção da nossa autoridade.
10. Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a Deus o reclama; as necessidades dos tempos presentes o exigem. Após uma longa e cruel guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de boa vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à concórdia. Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja, neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente, do qual é necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de que, aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma comunidade fraterna, porquanto, "ainda que muitos, somos um só corpo, participando todos do único pão.(9)
PRIMEIRA PARTE
NATUREZA, ORIGEM, PROGRESSO DA LITURGIA
I. A liturgia é culto público
11. O dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si mesmo e a própria vida para Deus. "A ele, com efeito, devemos principalmente unir-nos como indefectível princípio, ao qual deve ainda constantemente aplicar-se a nossa escolha como ao último fim, que perdemos pecando, mesmo por negligência, e que devemos reconquistar pela fé, crendo nele".(10) Ora, o homem se volta ordinariamente para Deus quando lhe reconhece a suprema majestade e o supremo magistério, quando aceita com submissão as verdades divinamente reveladas, quando lhe observa religiosamente as leis, quando faz convergir para ele toda a sua atividade, quando – para dizer resumidamente – presta, mediante a virtude da religião, o devido culto ao único e verdadeiro Deus.
12. Esse é um dever que obriga antes de tudo os homens individualmente, mas é ainda um dever coletivo de toda a comunidade humana ordenada com recíprocos vínculos sociais, porque também ela depende da suma autoridade de Deus.
13. Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto Deus os elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor da antiga Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar acuradamente as normas que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo culto. Estabeleceu, para isso, vários sacrifícios e designou várias cerimônias com que deviam realizar-se e determinou claramente o que se referia à arca da aliança, ao templo e aos dias festivos; designou a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, indicou e descreveu as vestes para uso dos sagrados ministros e tudo o mais que tinha relação com o culto divino.(11)
14. Esse culto, aliás, não era mais do que a sombra(12) daquele que o sumo sacerdote do Novo Testamento havia de render ao Pai celeste.
15. De fato, apenas "o Verbo se fez carne",(13) manifesta-se ao mundo no seu ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um ato de submissão que durará por todo o tempo de sua vida: "entrando no mundo, diz... eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade...",(14) um ato que será consumado de modo admirável no sacrifício cruento da cruz: "Pelo poder desta vontade fomos santificados por meio da oblação do corpo de Jesus Cristo feita uma só vez para sempre".(15) Toda a sua atividade entre os homens não tem outro escopo. Menino, é apresentando no templo ao Senhor; adolescente, ali volta ainda; em seguida ali vai freqüentemente para instruir o povo e para rezar. Antes de iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com seu conselho e o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como mestre de verdade, "ilumina todo homem"(16) para que os mortais reconheçam convenientemente o Deus imortal, e não "se afastem para sua perdição, mas guardem a fé para salvar a sua alma".(17) Como Pastor, depois, ele governa o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da vida, e dá uma lei a observar, para que ninguém se afaste dele e da reta via que traçou, mas todos vivam santamente sob o seu influxo e a sua ação. Na última ceia, com rito e aparato solene, celebra a nova páscoa e provê a sua continuação mediante a divina instituição da eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a terra, oferece o sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de certo modo, jorrar os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da redenção. Fazendo isso, tem por único fim a glória do Pai e a crescente santificação do homem.
16. Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por ele instituído e prestado durante a sua vida terrena continue ininterrupto. Já que não deixou órfão o gênero humano, mas o assiste sempre com o seu contínuo e valioso patrocínio, fazendo-se nosso advogado no céu junto do Pai,(18) assim o ajuda mediante a sua Igreja, na qual está indefectivelmente presente no correr dos séculos, Igreja que constituiu coluna da verdade(19) e dispensadora de graça, e que, com o sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou eternamente.(20)
17. A Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o empenho e a função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os homens, oferecer a Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim restabelecer entre o Criador e as criaturas aquela união e harmonia que o apóstolo das gentes claramente indica por estas palavras: "Não sois mais hóspedes ou adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, educados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, com o próprio Jesus Cristo por pedra angular, sobre a qual todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um templo santo no Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em morada de Deus, pelo Espírito".(21) Por isso a sociedade fundada pelo divino Redentor não tem outro fim, seja com a sua doutrina e o seu governo, seja com o sacrifício e os sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o ministério que lhe contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e dilatar-se sempre mais – o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas almas dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o templo no qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo. Em toda ação litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino Fundador: Cristo está presente no augusto sacrifício do altar, quer na pessoa do seu ministro, quer por excelência, sob as espécies eucarísticas; está presente nos sacramentos com a virtude que neles transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de santidade; está presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como vem escrito: "Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí estou no meio delas".(22) A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros.
18. A ação litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os primeiros cristãos, com efeito, "eram assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, e à comum fração do pão e à oração".(23) Em toda a parte onde os pastores possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o qual oferecem o sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos adaptados à santificação dos homens e à glorificação de Deus. Entre esse ritos estão, em primeiro lugar, os sacramentos, isto é, as sete principais fontes de salvação; depois, está a celebração do louvor divino, com o qual os féis reunidos obedecem à exortação do Apóstolo: "Instruindo-vos e exortando-vos uns aos outros com toda a sabedoria, cantando a Deus em vosso coração, inspirados pela graça, salmos, hinos e cânticos espirituais";(24) depois, ainda, a leitura da Lei, dos Profetas, do Evangelho e das epístolas apostólicas; e, enfim, a prática com a qual o presidente da assembléia recorda e comenta utilmente os preceitos do divino Mestre, os acontecimentos principais de sua vida, e admoesta todos os presentes com exortações oportunas e exemplos.
19. O culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as necessidades dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimônias e fórmulas, sempre com o mesmo intento: "a fim de que sejamos estimulados por aqueles sinais... conheçamos o progresso realizado e nos sintamos solicitados a desenvolvê-lo com maior vigor; o efeito, de fato, é mais digno, se mais ardente é o afeto que o precede".(25) Assim a alma se eleva a Deus mais e melhor; assim o sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos, não sendo a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio. Como a sua cabeça divina, assim a Igreja assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e exorta-os à santidade, para que, ornados com essa dignidade sobrenatural, possam um dia voltar ao Pai que está nos céus. Ela restaura para a vida celeste os nascidos à vida terrena, dá-lhes a ajuda do Espírito Santo na luta contra o inimigo implacável; chama os cristãos em torno dos altares e, com insistentes convites, exorta-os a celebrar e tomar parte no sacrifício eucarístico, e nutre-os com o pão dos anjos, para que sejam sempre mais firmes; purifica e consola aqueles que o pecado feriu e maculou; consagra com legítimo rito aqueles que, por vocação divina, são chamados ao ministério sacerdotal; revigora com graças e dons divinos o casto conúbio daqueles que são destinados a fundar e constituir a família cristã; depois de ter confortado e restaurado com o viático eucarístico e a sagrada unção as últimas horas da vida terrena, acompanha ao túmulo com suma piedade os despojos dos seus filhos, dispondo-os religiosamente, protegendo-os ao abrigo da cruz, para que possam um dia ressurgir triunfando da morte; abençoa com particular solenidade quantos dedicam a sua vida ao serviço divino na consecução da perfeição religiosa; estende a sua mão caridosa às almas que, nas chamas da purificação, imploram preces e sufrágios, para conduzi-las finalmente à eterna beatitude.
II. A liturgia é culto externo e interno
20. Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que "pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis"; (26) porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e conseqüentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: "se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos.(27)
21. Mas o elemento essencial do culto deve ser o interno. É necessário, com efeito, viver sempre em Cristo, dedicar-se todo a ele, a fim de que nele, com ele e por ele, se dê glória ao Pai. A sagrada liturgia requer que estes dois elementos estejam intimamente ligados; o que ela não se cansa jamais de repetir toda vez que prescreve um ato externo de culto. Assim, por exemplo, a propósito do jejum, nos exorta: "a fim de que se opere de fato em nosso íntimo o que a nossa observância professa externamente".(28) De outro modo, a religião se torna um formalismo sem fundamento e sem conteúdo. Sabeis, veneráveis irmãos, que o divino Mestre considera indignos do templo sagrado e expulsa dele os que crêem honrar a Deus somente com o som de bem construídas palavras e com atitudes teatrais e estão persuadidos de poder prover de modo adequado à sua salvação sem arrancar da alma os vícios inveterados".(29) A Igreja, portanto, quer que todos os fiéis se prostrem aos pés do Redentor para professar-lhe o seu amor e a sua veneração; quer que as multidões, como as crianças que andaram ao encontro de Cristo quando entrava em Jerusalém com alegres aclamações, acompanhem o Rei dos reis e o sumo autor de todos os benefícios, aclamando-o com o canto de glória e de agradecimento; quer que haja orações em seus lábios, ora súplices, ora alegres e agradecidas, com as quais, como os apóstolos junto ao lago de Tiberíades, possam experimentar o auxílio de sua misericórdia e de seu poder; ou como Pedro, no monte Tabor, a Deus se abandonem e a todas as suas coisas nos místicos transportes da contemplação.
22. Não têm, pois, noção exata da sagrada liturgia aqueles que a consideram como parte somente externa e sensível do culto divino ou como cerimonial decorativo; nem se enganam menos aqueles que a consideram como mero conjunto de leis e preceitos com que a hierarquia eclesiástica ordena a realização dos ritos.
23. Deve, portanto, ser bem conhecido de todos que não se pode honrar dignamente a Deus, se a alma não cuida de conseguir a perfeição da vida, e que o culto rendido a Deus pela Igreja em união com a sua Cabeça divina tem a eficácia suprema de santificação.
24. Essa eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes de tudo do valor da ação em si mesma (ex opere operato); se se considera ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com a qual orna de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e de outros ritos instituídos pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação da Igreja (ex opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima união com a sua Cabeça.
25. A esse propósito, veneráveis irmãos, desejamos que volvais a vossa atenção às novas teorias sobre "piedade objetiva" segundo as quais, esforçando-se para pôr em evidência o mistério do corpo místico, a realidade efetiva da graça santificante e a ação divina dos sacramentos e do sacrifício eucarístico, se pretenderia descuidar ou diminuir a "piedade subjetiva" ou pessoal.
26. Nas celebrações litúrgicas e, em particular, no augusto sacrifício do altar, continua-se, sem dúvida, a obra da nossa redenção, cujos frutos nos são aplicados. Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos sacramentos e no seu sacrifício e, por meio deles, purifica continuamente e consagra a Deus o gênero humano. Têm, portanto, uma virtude objetiva, com a qual, de fato, fazem nossas almas participantes da vida divina de Jesus Cristo. Eles, pois, têm não por nossa, mas por divina virtude, a eficácia de reunir a piedade dos membros com a piedade da Cabeça e torná-la, de certo modo, uma ação de toda a comunidade. Desses profundos argumentos alguns concluem que toda a piedade cristã deve concentrar-se no mistério do corpo místico de Cristo, sem nenhuma consideração pessoal e subjetiva, e por isso acreditam que se deva descuidar das outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto público.
27. Todos, no entanto, podem verificar que essas conclusões acerca das duas espécies de piedade, ainda que os princípios acima expostos sejam ótimos, são completamente falsas, insidiosas e perniciosíssimas.
28. É verdade que os sacramentos e o sacrifício do altar têm uma intrínseca virtude enquanto são ações do próprio Cristo que comunica e difunde a graça da Cabeça divina nos membros do corpo místico; mas, para terem a devida eficácia, exigem as boas disposições da nossa alma; como, a propósito da eucaristia, são Paulo admoesta: "cada um examine a si mesmo e coma deste pão e beba do cálice".(30) Por isso mesmo, a Igreja define com brevidade e clareza todos os exercícios com os quais a nossa alma se purifica, especialmente durante a quaresma: "fortalezas da milícia cristã"; (31) são, com efeito, as ações dos membros que, com o auxílio da graça, desejam aderir à sua Cabeça a fim de que "nos seja manifesta – para repetir as palavras de santo Agostinho – na nossa Cabeça a própria fonte da graça".(32) Mas deve-se notar que estes membros são vivos, providos de razão e de vontade própria; por isso é necessário que eles, encostando os lábios à fonte, retirem e assimilem o alimento vital e removam tudo o que lhe pode impedir a eficácia. Devemos, pois, afirmar que a obra da redenção, independente em si mesma da nossa vontade, requer o esforço íntimo da nossa alma para que possamos conseguir a eterna salvação.
29. Se a piedade privada e interna dos particulares se descuidasse do augusto sacrifício do altar e dos sacramentos, e se subtraísse ao influxo salvador que emana da Cabeça nos membros, seria, sem dúvida, reprovável e estéril; mas quando todas as providências e os exercícios de piedade não estritamente litúrgicos fixam o olhar da alma sobre atos humanos unicamente para endereçá-los ao Pai que está nos céus; para estimular salutarmente os homens à penitência e ao temor de Deus e arrancá-los da atração do mundo e dos vícios, para conduzi-los felizmente por árduo caminho ao vértice da santidade, então, não apenas são sumamente louváveis, mas necessários, porque descobrem os perigos da vida espiritual, estimulam-nos à aquisição da virtude e aumentam o fervor com o qual nos devemos dedicar todos ao serviço de Jesus Cristo. A genuína piedade que o Angélico chama "devoção" e que é o ato principal da virtude da religião com o qual os homens se ordenam retamente, se orientam oportunamente para Deus e livremente se consagram ao culto,(33) têm necessidade da meditação das realidades sobrenaturais e das práticas espirituais para que se alimente, estimule e fortifique e nos anime à perfeição. É que a religião cristã devidamente praticada requer, sobretudo, que a vontade se consagre a Deus e influa sobre as outras faculdades da alma. Mas todo ato da vontade pressupõe o exercício da inteligência e, antes que se conceba o desejo e o propósito de dar-se a Deus por meio do sacrifício, é absolutamente necessário o conhecimento dos argumentos e dos motivos que levam à religião, como, por exemplo, o fim último do homem e a grandeza da divina Majestade, o dever de obediência ao Criador, os tesouros inexauríveis do amor com o qual ele nos quis enriquecer, a necessidade da graça para alcançar a meta assinalada, e o caminho particular que a divina Providência nos preparou unindo-nos todos, como membros de um corpo, a Jesus Cristo Cabeça. E já que nem sempre os motivos do amor dominam a alma agitada pelas paixões, é muito oportuno que nos impressione ainda a consideração salutar da divina justiça para levar-nos à humildade cristã, à penitência e à emenda.
30. Todas estas considerações não devem ser uma vazia e abstrata lembrança, mas devem visar efetivamente a submeter os nossos sentidos e as suas faculdades à razão iluminada pela fé, a purificar a alma que se une cada dia mais intimamente a Cristo e sempre mais a ele se conforma e dele recebe a inspiração e a força divina de que tem necessidade; e para que sejam aos homens estímulo sempre mais eficaz ao bem, à fidelidade ao próprio dever, à prática da religião, ao fervoroso exercício da virtude, é necessário ter presente este ensinamento: "Sois de Cristo e Cristo é de Deus".(34) Tudo, pois, seja orgânico e teocêntrico se queremos que tudo seja em verdade endereçado à glória de Deus pela vida e pela virtude que nos vêm da nossa Cabeça divina: "tendo, pois, confiança de entrar no santo dos santos pelo sangue de Cristo, pelo novo e vivo caminho que ele inaugurou para nós através da sua carne, e tendo um grande sacerdote que preside à casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero, com plenitude de fé, alma purificada da consciência de culpa, lavado o corpo com água limpa, apeguemo-nos firmes à profissão da nossa esperança... e sejamos solícitos uns para com os outros, para nos estimularmos à caridade e às boas obras". (35)
31. Disso deriva o harmonioso equilíbrio dos membros do corpo místico de Jesus Cristo. Com o ensino da fé católica, com a exortação à observância dos preceitos cristãos, a Igreja prepara o caminho à sua ação propriamente sacerdotal e santificadora; dispõe-nos a uma contemplação mais íntima da vida do divino Redentor e nos conduz a uma consciência mais profunda dos mistérios da fé para que recebamos o alimento sobrenatural e a força para seguro progresso na vida perfeita por meio de Jesus Cristo. Não somente pelas obras de seus ministros mas ainda pelas obras dos fiéis particulares imbuídos do espírito de Jesus Cristo, a Igreja se esforça em fazer penetrar esse mesmo espírito na vida e na atividade privada, familiar, social, e até econômica e política dos homens, para que todos os que são chamados filhos de Deus possam mais facilmente conseguir o seu próprio fim.
32. Dessa maneira a ação particular e o esforço ascético dirigido à purificação da alma estimulam as energias dos fiéis e os preparam a participar com melhores disposições do augusto sacrifício do altar e a receber os sacramentos com maior fruto, e a celebrar os sagrados ritos, de modo a torná-los mais animados e formados para a oração e para a abnegação cristã para cooperar ativamente nas inspirações e nos convites da graça, para imitar cada dia mais a virtude do Redentor, não somente para vantagem própria mas ainda para a vantagem de todo o corpo da Igreja, no qual todo o bem que se cumpre provém da virtude da Cabeça e redunda em benefício dos membros.
33. Por isso na vida espiritual nenhuma oposição ou repugnância pode haver entre a ação divina que infunde a graça nas almas para continuar a nossa redenção e a operosa colaboração do homem que não deve tornar vão o dom de Deus; (36) entre a eficácia do rito externo dos sacramentos que provém do seu intrínseco valor (ex opere operato), e o mérito de quem os administra ou recebe (opus operantis); entre as orações privadas e as preces públicas; entre a ética e a contemplação; entre a vida ascética e a piedade litúrgica; entre o poder de jurisdição e de legítimo magistério e o poder eminentemente sacerdotal que se exercita no próprio sagrado ministério.
34. Por graves motivos a Igreja prescreve aos ministros do altar e aos religiosos, precisamente porque são destinados de modo particular a realizar as funções litúrgicas do sacrifício e do louvor divino, que, nos tempos estabelecidos, atendam à meditação piedosa, ao exame diligente e à emenda da consciência e aos outros exercícios espirituais.(37) Sem dúvida, a prece litúrgica, sendo pública oração da ínclita esposa de Jesus Cristo, tem maior dignidade do que a das orações privadas; mas esta superioridade não quer dizer que entre estes dois gêneros de oração haja contraste ou oposição. Ambas as duas se fundem e se harmonizam porque animadas de um único espírito: "tudo e em todos, Cristo" (38) e tendem ao mesmo fim: até que Cristo seja formado em nós.(39)
III. A liturgia é regulada pela hierarquia eclesiástica
35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante.
A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. (36). Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio:..' ;(40) "quem vos ouve, a mim ouve..."; (41) "percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo".(42)
37. Por isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na Igreja não de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido a indivíduos eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete sacramentos, o qual não somente confere uma graça particular, própria deste estado e deste ofício, mas ainda um caráter indelével que configura os ministros sagrados a Jesus Cristo sacerdote, demonstrando-os capazes de cumprir aqueles atos legítimos de religião com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo as exigências da economia sobrenatural.
38. Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são marcados com caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e somente as suas mãos são consagradas "para que seja abençoado tudo o que abençoam e tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".(43) Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento da vida espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para que possa felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios; deles, enfim, receberá a bênção que consagra a família e por eles o último suspiro da vida mortal será dirigido ao ingresso na beatitude eterna.
39. Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da autoridade da Igreja. Esta é não somente uma conseqüência da natureza mesma do culto cristão, mas é ainda confirmada pelo testemunho da história.
40. Esse direito inconcusso da hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter a sagrada liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso deve conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade do supremo magistério para proteger a integridade da religião revelada por Deus.
41. A esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua justa luz uma coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles que pretenderam que a sagrada liturgia fosse como uma experimentação do dogma, de modo que, se uma destas verdades tivesse, através dos ritos da sagrada liturgia, trazido frutos de piedade e de santidade, a Igreja deveria aprová-la, e repudiá-la em caso contrário. Donde o princípio: "a lei da oração é lei da fé".
42. Não é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: "a Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade".(44) Na sagrada liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
43. Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas "fontes teológicas", não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: "A lei da oração estabeleça a lei da fé".(45) A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que "a lei da fé deve estabelecer a lei da oração". O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras virtudes teológicas: "na... fé, na esperança e na caridade oramos sempre com desejo contínuo"(46).
IV. Progresso e desenvolvimento da liturgia
44. A hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o sempre de novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos féis. Não duvidou, além disto – salva a substância do sacrifício eucarístico e dos sacramentos – em mudar aquilo que não julgava adaptado, em acrescentar o que parecia contribuir melhor para a glória de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para instrução e estímulo salutar do povo cristão.(47)
45. A sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de elementos divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor, não podem, evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao contrário, podem sofrer várias modificações, aprovadas pela hierarquia sagrada, assistida do Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas. Disso se origina a estupenda variedade dos ritos orientais e ocidentais; o desenvolvimento progressivo de hábitos particulares religiosos e práticas de piedade inicialmente apenas acenadas; disso advém que muitas vezes são repristinadas e renovadas pias instituições obliteradas pelo tempo. Tudo isso testemunha a vida da intemerata esposa de Jesus Cristo durante tantos séculos; exprime a linguagem usada por ela para manifestar ao Esposo divino a fé e o amor inexauríveis dela e das gentes que lhe foram confiadas; demonstra a sua sábia pedagogia para estimular e incrementar nos crentes "o sentido de Cristo".
46. Em verdade, não poucas são as causas pelas quais se explica e desenvolve o progresso da sagrada liturgia durante a longa e gloriosa história da Igreja.
Assim, por exemplo, uma formação mais certa e ampla da doutrina católica sobre a encarnação do Verbo de Deus, sobre os sacramentos, sobre o sacrifício eucarístico, e sobre a virgem Maria Mãe de Deus, contribuiu para a adoção de novos ritos, por meio dos quais a luz, mais esplendidamente brilhante na declaração do magistério eclesiástico, veio a refletir melhor e mais claramente nas ações litúrgicas para unir-se com maior facilidade à mente e ao coração do povo cristão
47. O ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração dos sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição e depois o desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob uma só espécie na Igreja latina, contribuíram não pouco para a modificação dos antigos ritos e a gradual adoção de novos e mais condizentes com as disposições disciplinares mudadas.
48. Para essa evolução e para essas mudanças contribuíram notavelmente as iniciativas e as práticas piedosas não estritamente ligadas à sagrada liturgia, nascidas em épocas sucessivas por admirável disposição de Deus e assim difundidas no povo, como, por exemplo, o culto mais amplo e mais fervoroso da divina eucaristia, da acerbíssima paixão do nosso Redentor, do sacratíssimo coração de Jesus, da virgem Mãe de Deus e do seu puríssimo esposo.
48. Entre as circunstâncias exteriores, tiveram a sua parte as peregrinações públicas de devoção aos sepulcros dos mártires, a observância de jejuns particulares instituídos para o mesmo fim, as procissões estacionais de penitência que se celebravam nesta excelsa cidade e às quais, não raro, comparecia o próprio sumo pontífice.
50. Também facilmente se compreende como o progresso das belas artes, especialmente da arquitetura, da pintura e da música tenham influído não pouco sobre a determinação e a diversa conformação dos elementos exteriores da sagrada liturgia.
51. Do mesmo direito seu em matéria litúrgica serviu-se a Igreja para tutelar a santidade do culto contra os abusos temerariamente introduzidos por indivíduos e por Igrejas particulares. Assim aconteceu que nosso predecessor de imortal memória, Sixto V, vendo multiplicar-se os usos e costumes deste gênero durante o século XVI e as iniciativas privadas porem em perigo a integridade da fé e da piedade, com grande vantagem dos hereges e da propaganda do seu erro, instituiu em 1588, para defender os legítimos ritos da Igreja e impedir as infiltrações espúrias, a Congregação dos ritos,(48) órgão a que compete ainda hoje ordenar e prescrever, com cuidado vigilante, tudo o que diz respeito à sagrada liturgia.(49)
V. Tal progresso não pode ser deixado ao arbítrio dos particulares
52. Por isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles que julgar devem ser mudados;(50) os bispos têm o direito e o dever de vigiar diligentemente para que as prescrições dos sagrados cânones relativamente ao culto divino sejam pontualmente observadas.(51) Não é possível deixar ao arbítrio dos particulares, ainda que sejam membros do clero, as coisas santas e venerandas relativas à vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do sacerdócio de Jesus Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima Trindade, ao Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à salvação dos homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste campo ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a própria integridade da fé católica. Certamente, a Igreja é um organismo vivo e, por isso, ainda no que diz respeito à sagrada liturgia, firme a integridade de seu ensinamento, cresce e se desenvolve, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e às exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se, todavia, reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de propósito novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em desuso e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes. Assim, não sem grande pesar, sabemos que isso acontece não somente em coisas de pouca monta, mas ainda de gravíssima importância; não falta, com efeito, quem use a língua vulgar na celebração do sacrifício eucarístico, quem transfira para outros tempos festas fixadas já por razões ponderáveis; quem exclua dos legítimos livros da oração pública os escritos sagrados do Antigo Testamento, reputando-os pouco adaptados e pouco oportunos para os nossos tempos.
53. O uso da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da pura doutrina. Em muitos ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz útil para o povo, mas somente a Sé Apostólica tem o poder de concedê-lo, e por isso, neste campo, nada é lícito fazer sem o seu juízo e a sua aprovação, porque, como havíamos dito, a regulamentação da sagrada liturgia é de sua exclusiva competência.
54. Do mesmo modo se devem julgar os esforços de alguns para revigorar certos antigos ritos e cerimônias. A liturgia da época antiga é, sem dúvida, digna de veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente de sua antiguidade, o melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos tempos posteriores e às novas condições verificadas. Os ritos litúrgicos mais recentes também são respeitáveis, pois que foram estabelecidos por influxo do Espírito Santo que está com a Igreja até à consumação dos séculos, (52) e são meios dos quais se serve a ínclita esposa de Jesus Cristo para estimular e conseguir a santidade dos homens.
55. É certamente coisa sábia e muito louvável retornar com a inteligência e com a alma às fontes da sagrada liturgia, porque o seu estudo, reportando-se às origens, auxilia não pouco a compreender o significado das festas e a penetrar com maior profundidade e agudeza o sentido das cerimônias, mas não é certamente coisa tão sábia e louvável reduzir tudo e de qualquer modo ao antigo. Assim, para dar um exemplo, está fora do caminho quem quer restituir ao altar a antiga forma de mesa; quem quer eliminar dos paramentos litúrgicos a cor negra; quem quer excluir dos templos as imagens e as estátuas sagradas; quem quer suprimir na representação do Redentor crucificado as dores acérrimas por ele sofridas; quem repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando conforme às normas emanadas da santa sé.
56. Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.
57. Este modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e insano arqueologismo suscitado pelo ilegítimo concílio de Pistóia, e se esforça em revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele conciliábulo e os que se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a Igreja – guarda vigilante do "depósito da fé" confïado pelo seu divino Fundador – condenou com todo o direito.(53) De fato, deploráveis propósitos e iniciativas tendem a paralisar a ação santificadora com a qual a sagrada liturgia orienta salutarmente ao Pai celeste os filhos de adoção.
58. Tudo, pois, seja feito em indispensável união com a hierarquia eclesiástica. Ninguém se arrogue o direito de ser lei para si mesmo e de impô-la aos outros por sua vontade. Somente o sumo pontífice, na qualidade de sucessor de Pedro, ao qual o divino Redentor confiou o rebanho universal, (54) e juntamente os bispos, que sob a dependência da Sé Apostólica "o Espírito Santo colocou para reger a Igreja de Deus",(55) têm o direito e o dever de governar o povo cristão. Por isso, veneráveis irmãos, toda vez que defendeis a vossa autoridade – oportunamente, ainda que com severidade salutar não somente cumpris o vosso dever, mas defendeis a própria vontade do Fundador da Igreja.
SEGUNDA PARTE
O CULTO EUCARÍSTICO
I. Natureza do sacrifício eucarístico
59. O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando do ápice da sagrada liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos, deter-nos um pouco, chamando a vossa atenção para esta importantíssima temática.
60. O Cristo Senhor, "sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque" (56) "tendo amado os seus que estavam no mundo",(57) "na última ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos... ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o oferecessem".(58)
61. O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. "Uma... e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta".(59)
62. Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada pessoa é representada pelo seu ministro. Este, pela consagração sacerdotal recebida, assemelha-se ao sumo Sacerdote e tem o poder de agir em virtude e na pessoa do próprio Cristo;(60) por isso, com sua ação sacerdotal, de certo modo, "empresta a Cristo a sua língua, e lhe oferece a sua mão".(61)
63. Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua humana natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente, porém, é o modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele se ofereceu todo a Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima foi realizada por meio de morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao invés, por causa do estado glorioso de sua natureza humana, "a morte não tem mais domínio sobre ele"(62) e, por conseguinte, não é possível a efusão do sangue; mas a divina sabedoria encontrou o modo admirável de tornar manifesto o sacrifício de nosso Redentor com sinais exteriores que são símbolos de morte. Já que, por meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo, têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue; as espécies eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a cruenta separação do corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima.
64. Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a glorificação de Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado pelo zelo da glória divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao céu em odor de suavidade. E porque este cântico não havia de cessar, no sacrifício eucarístico os membros se unem à Cabeça divina e com ela, com os anjos e os arcanjos, cantam a Deus louvores perenes, (63) dando ao Pai onipotente toda honra e glória.(64)
65. O segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor somente, como Filho de predileção do Eterno Pai de quem conhecia o imenso amor, pôde entoar-lhe um digno cântico de ação de graças. A isso visou e isso desejou "rendendo graças"(65) na última ceia, e não cessou de fazê-lo na cruz, não cessa de realizá-lo no augusto sacrifício do altar, cujo significado é justamente a ação de graças ou eucaristia; e porque isso é "verdadeiramente digno e justo e salutar".(66)
66. O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, "propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo".(67) Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda "por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz",(68) pois, quer vivamos, quer morramos, "não nos separamos do único Cristo".(69)
67. O quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e dissipou todos os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à suprema miséria e inanição; da cruz, porém, Cristo, "tendo em alta voz e com lágrimas oferecido orações e súplicas... foi ouvido pela sua piedade",(70) e nos sagrados altares exercita a mesma mediação eficaz; a fim de que sejamos cumulados de toda bênção e graça.
68. Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de Trento afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos.(71)
69. Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação, tornou perfeitos para sempre os santificados.(72) Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. "Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo".(73)
70. Esse resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário que, depois de haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si mesmo, Cristo entre na real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente, a fim de que, com o beneplácito de Deus, se cumpra para todos os indivíduos e para todas as gerações até o fim dos séculos, a sua redenção e salvação, é absolutamente necessário que cada um tenha vital contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos que dele derivam lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo construiu no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e aí não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser purificados e salvos.
71. A fim de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que, falando em geral, Cristo haja reconciliado com o Pai por meio da sua morte cruenta todo o gênero humano, quis todavia que todos se aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos sacramentos e do sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos salutares por ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação assim como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que cada um de nós pode repetir as palavras de são Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim".(74) Como realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus Cristo enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma cooperação da parte dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao invés, se trata de distribuir tal tesouro, não só participa com sua esposa incontaminada desta obra de santificação, mas deseja que tal atividade jorre, de certo modo, por ação dela.(75)
72. O augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes distribuir os méritos derivados da cruz do divino Redentor: "toda vez que se oferece este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção".(76) Isso, porém, longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele faz ressaltar a grandeza, como afirma o concílio de Trento,"(77) e lhe proclama a necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há salvação fora da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo;(78) que Deus quer a continuação deste sacrifício "do surgir ao pôr-do-sol", (79) para que não cesse jamais o hino de glorificação e de ação de graças que os homens devem ao Criador, visto que têm necessidade de seu contínuo auxílio e do sangue do Redentor para redimir os pecados que ofendem a sua justiça.
II. Participação dos fiéis no sacrifício eucarístico
73. É necessário, pois, veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu principal dever e suma dignidade participar do santo sacrifício eucarístico, não com assistência passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e fervor que os ponha em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: "Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou",(80) oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele.
74. É bem verdade que Jesus Cristo é sacerdote, mas não para si mesmo, e sim para nós, apresentando ao Eterno Pai os votos e sentimentos religiosos de todo o gênero humano; Jesus é vítima, mas por nós, substituindo-se ao homem pecador; ora, o dito do Apóstolo: "Alimentai em vós os mesmos sentimentos que existiram em Jesus Cristo" exige de todos os cristãos que reproduzam em si, enquanto está em poder do homem, o mesmo estado de alma que tinha o divino Redentor quando fazia o sacrifício de si mesmo, a humilde submissão do espírito, isto é, a adoração, a honra, o louvor e a ação de graças à majestade suprema de Deus; requer, além disso, que reproduzam em si mesmos as condições da vítima: a abnegação de si conforme os preceitos do evangelho, o voluntário e espontâneo exercício da penitência, a dor e a expiação dos próprios pecados. Exige, em uma palavra, a nossa morte mística na cruz com Cristo, de modo que possamos dizer com Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz".(81)
75. É necessário, veneráveis irmãos, explicar claramente a vosso rebanho como o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais. Há, de fato, em nossos dias, alguns que, avizinhando-se de erros já condenados,(82) ensinam que em o Novo Testamento se conhece apenas um sacerdócio pertencente a todos os batizados, e que o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele havia feito – se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos e só depois é que foi introduzido o sacerdócio hierárquico. Sustentam, por isso, que só o povo goza de verdadeiro poder sacerdotal, enquanto o sacerdote age unicamente por ofício a ele confiado pela comunidade. Afirmam, em conseqüência, que o sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria "concelebração", e que é melhor que os sacerdotes "concelebrem" junto com o povo presente, do que, na ausência destes, ofereçam privadamente o sacrifício.
76. É inútil explicar quanto esses capciosos erros estejam em contraste com as verdades acima demonstradas, quando falamos do lugar que compete ao sacerdote no corpo místico de Jesus. Recordemos apenas que o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo.(83) O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais.
1. Os fiéis oferecem junto com o sacerdote
77. Tudo isso consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso.
Já o declararam abertamente alguns dos nossos predecessores e doutores da Igreja. "Não somente – assim afirmava Inocêncio III, de imortal memória – oferecem os sacerdotes, mas ainda todos os fiéis; pois isto que em particular se cumpre pelo ministério dos sacerdotes, cumpre-se universalmente por voto dos fiéis".(84) E apraz-nos citar ao menos um dos muitos textos de são Roberto Belarmino a esse propósito: "O sacrifício – diz ele – é oferecido principalmente na pessoa de Cristo. Por isso a oblação que segue à consagração atesta que toda a Igreja consente na oblação feita por Cristo e oferece juntamente com ele".(85)
78. Com clareza não menor, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo. De fato, não somente o sagrado ministro, depois da oferta do pão e do vinho, voltado para o povo diz explicitamente: "Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício sejam aceitos junto a Deus-Pai onipotente",(86) mas ainda as orações com as quais é oferecida a vítima divina são, além do mais, ditas no plural, e nelas se indica que também o povo toma parte como ofertante neste augusto sacrifício. Diz-se, por exemplo: "Pelos quais nós te oferecemos, e que te oferecem ainda eles... Por isso te suplicamos, ó Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família... Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada".(87)
79. Nem é de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do "caráter" que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo.
80. Na Igreja católica, a razão humana iluminada pela fé sempre se esforçou por ter a maior consciência possível das coisas divinas; por isso é natural que também o povo cristão pergunte piamente em que sentido se diz no Cânon do sacrifício eucarístico que também ele o oferece. Para satisfazer esse piedoso desejo apraz-nos tratar aqui do assunto com clareza e concisão.
81. Há, acima de tudo, razões muito remotas: freqüentemente acontece que os fiéis, assistindo aos sagrados ritos, unam alternadamente as suas orações às orações do sacerdote; alguma vez; ainda, acontece – isto antigamente se verificava com maior freqüência – que ofereçam ao ministro do altar o pão e o vinho para que se tornem corpo e sangue de Cristo; e, enfim, porque, com as esmolas, fazem com que o sacerdote ofereça por eles a vítima divina.
82. Mas há ainda uma razão mais profunda para que se possa dizer que todos os cristãos e especialmente aqueles que assistem ao altar realizem a oferta.
83. Para não dar ensejo a erros perigosos neste importantíssimo argumento, é necessário precisar com exatidão o significado do termo "oferta". A imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis. Colocando, porém, no altar a vítima divina, o sacerdote a apresenta a Deus Pai como oblação à glória da SS. Trindade e para o bem de todas as almas. Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda porque com essa participação também a oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico. Que os fiéis oferecem o sacrifício por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima. Quando, pois, se diz que o povo oferece juntamente com o sacerdote, não se afirma que os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio sacerdote realizam o rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de Deus para isso designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima, embora com o rito externo do sacerdote. É necessário, com efeito, que o rito externo do sacrifício manifeste, por sua natureza, o culto interno; ora, o sacrifício da nova Lei significa aquele obséquio supremo com o qual o próprio principal ofertante, que é Cristo, e com ele e por ele todos os seus membros místicos, honram devidamente a Deus.
84. Com grande alegria da alma fomos informados de que essa doutrina, especialmente nos últimos tempos, pelo intenso estudo da disciplina litúrgica da parte de muitos, foi posta em sua luz; mas não podemos deixar de deplorar vivamente os exageros e os desvios da verdade, que não concordam com os genuínos preceitos da Igreja.
85. Alguns, com efeito, reprovam de todo as missas que se celebram privadamente e sem a assistência do povo, como se se desviassem da forma primitiva do sacrifício; nem falta quem afirme que os sacerdotes não possam oferecer a divina vítima ao mesmo tempo em muitos altares, porque desse modo dissociam a comunidade e põem em perigo a unidade; também não falta quem chegue ao ponto de crêr necessária a confirmação e a ratificação do sacrifício por parte do povo, para que possa ter sua força e eficácia.
86. Erroneamente, nesse caso, se faz apelo à índole social do sacrifício eucarístico. Toda vez, com efeito, que o sacerdote repete o que fez o divino Redentor na última ceia, o sacrifício é realmente consumado e tem sempre e em qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos.(88) E isso se verifica certamente, quer assistam os fiéis – e desejamos e recomendamos que estejam presentes numerosíssimos e fervorosíssimos – quer não assistam, não sendo de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro.
87. Se, pois, daquilo que foi dito resulta claramente que o santo sacrifício da missa é oferecido validamente em nome de Cristo e da Igreja, nem fica privado dos seus frutos sociais, mesmo quando celebrado sem assistência de nenhum acólito todavia, pela dignidade deste mistério, queremos e insistimos, como sempre quis a madre Igreja, que nenhum sacerdote se aproxime do altar sem ter quem o ajude e lhe responda, como prescreve o cân. 813.
2. Os féis oferecem também a si mesmos como vítimas
88. Para que, pois, a oblação, com a qual neste sacrifício os fiéis oferecem a vítima divina ao Pai celeste, tenha o seu efeito pleno, requer-se ainda outra coisa: é necessário que eles se imolem a si mesmos como vítimas.
89. Essa imolação não se limita somente ao sacrifício litúrgico. Quer, com efeito, o príncipe dos apóstolos que pelo fato mesmo de sermos edifïcados como pedras vivas sobre Cristo, possamos como "sacerdócio santo, oferecer vítimas espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo"; (89) e Paulo apóstolo, sem nenhuma distinção de tempo, exorta os cristãos com as seguintes palavras: "Eu vos conjuro, ó irmãos, que ofereçais os vossos corpos como vítima viva, santa, agradável a Deus, como vosso culto racional."(90) Mas quando, sobretudo, os féis participam da ação litúrgica com tanta piedade e atenção que se pode verdadeiramente dizer deles: "dos quais te é conhecida a fé e a devoção"(91) não é possível que a fé de cada um deles não se torne mais alegremente operante por meio da caridade, nem se revigore e brilhe a piedade e não se consagrem todos à conquista da glória divina, desejando com ardor tornarem-se intimamente semelhantes a Jesus Cristo que sofreu acerbas dores, oferecendo-se ao sumo Sacerdote e por meio dele como hóstia espiritual.
90. Isso ensinam ainda as exortações que o bispo endereça em nome da Igreja aos ministros sagrados no dia da sua ordenação: "Compenetrai-vos daquilo que fazeis, imitai o que tratais, de modo que, ao celebrardes o mistério da morte do Senhor, procureis mortificar os vossos membros de seus vícios e da concupiscência".(92) E quase do mesmo modo nos livros litúrgicos são exortados os cristãos que se aproximam do altar a participarem dos sagrados mistérios: "esteja sobre... este altar o culto da inocência, nele se imole a soberba, nele se apague a ira, se debele a luxúria e toda concupiscência, ofereça-se ao invés de rolas o sacrifício da castidade e em lugar de pombas o sacrifício da inocência".(93) Assistindo, pois, ao altar, devemos transformar a nossa alma de modo que se apague radicalmente todo o pecado que está nela, e com toda diligência se restaure e reforce tudo aquilo que, mediante Cristo, dá a vida sobrenatural: e assim nos tornemos, junto com a hóstia imaculada, uma vítima agradável a Deus Pai.
91. A Igreja se esforça com os preceitos da sagrada liturgia por levar a efeito, da maneira mais perfeita, este santíssimo propósito. A isso visam não somente as leituras, as homílias e as outras exortações dos ministros sagrados, e todo o ciclo dos mistérios que nos são recordados durante o ano, mas também as vestes, os ritos sagrados e seu aparato exterior que tem por fim "fazer pensar na majestade de tão grande sacrifício, excitar a mente dos fnéis, por meio dos sinais visíveis de piedade e de religião, à contemplação das altíssimas" coisas encerradas neste sacrifício".(94)
92. Todos os elementos da liturgia tendem, pois, a reproduzir em nossa alma a imagem do divino Redentor através do mistério da cruz, segundo a palavra do apóstolo das gentes: "Estou cravado com Cristo na cruz e vivo, não mais eu, mas é Cristo que vive em mim".(95) Por isso nos tornamos hóstia junto com Cristo para a maior glória do Pai.
93. A isso, pois, devem dirigir e elevar a sua alma os féis que oferecem a vítima divina no sacrifício eucarístico. Se, com efeito, como escreve santo Agostinho, sobre a mesa do Senhor é posto o nosso mistério, isto é, o próprio Cristo Senhor, (96) enquanto a cabeça é símbolo daquela união em virtude da qual somos o corpo de Cristo(97) e membros do seu corpo;(98) se são Roberto Belarmino ensina, segundo o pensamento do doutor de Hipona, que no sacrifício do altar está significado o sacrifício geral com o qual todo o corpo místico de Cristo, isto é, toda a cidade redimida, é oferecida a Deus por meio de Cristo grão-sacerdote, (99) nada se pode encontrar de mais reto e de mais justo que nos imolarmos ao eterno Pai, nós todos, com nossa Cabeça, que sofreu por nós. No sacramento do altar, segundo o mesmo Agostinho, torna-se patente à Igreja que no sacrifício que oferece, ela mesma é oferecida.(100)
94. Considerem, pois, os fiéis a que dignidade os eleva a sagrada água do batismo; e não se contentem em participar do sacrifício eucarístico com a intenção geral que convém aos membros de Cristo e filhos da Igreja, mas livre e intimamente unidos ao sumo sacerdote e ao seu ministro na terra, segundo o espírito da sagrada liturgia, se unam a ele de modo particular no momento da consagração da hóstia divina, e a ofereçam junto com ele quando são pronunciadas aquelas solenes palavras "por ele, com ele, nele, a ti, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos séculos'';(101) à essas palavras o povo responde: Amém. Nem se esqueçam os cristãos de oferecer-se, com a divina Cabeça crucificada, a si mesmos e as suas preocupações, angústias, dores, misérias e necessidades.
3. Os meios de promover a participação dos fiéis
95. São, pois, dignos de louvor aqueles que, com o fim de tornar mais fácil e frutuosa ao povo cristão a participação no sacrifício eucarístico, se esforçam em colocar oportunamente nas mãos do povo o "Missal romano" de modo que os fiéis, unidos ao sacerdote, orem com ele, com as suas próprias palavras e com os mesmos sentimentos da Igreja; como também os que visam a fazer da liturgia, ainda que externamente, uma ação sagrada, na qual têm parte de fato todos os assistentes. Isso pode acontecer de vários modos: quando todo o povo, segundo as normas rituais, responde disciplinadamente às palavras do sacerdote ou executa cânticos correspondentes às várias partes do sacrifício, ou faz uma e outra coisa, ou, enfim, quando, na missa solene, responde alternadamente às orações dos ministros de Jesus Cristo e se associa ao canto litúrgico.
96. Todavia, essas maneiras de participar do sacrifício são para louvar e aconselhar, quando obedecem escrupulosamente aos preceitos da Igreja e às normas dos sagrados ritos. São ordenadas sobretudo para alimentar e fomentar a piedade dos cristãos e a sua íntima união com Cristo e com o seu ministro visível e a estimular aqueles sentimentos e aquelas disposições interiores com as quais é necessário que a nossa alma se assemelhe ao sumo sacerdote do Novo testamento. Não obstante, se bem que isto demonstre no modo exterior, que o sacrifício por sua natureza, enquanto é realizado pelo mediador de Deus e dos homens (102) deve ser considerado obra de todo o corpo místico de Cristo, não são porém necessárias para constituir-lhe o caráter público e comum. Além disso, a missa "dialogada" não pode substituir a missa solene, a qual, ainda que celebrada na presença apenas dos ministros, goza de uma particular dignidade pela majestade dos ritos e aparato das cerimônias; se bem que o seu esplendor e solenidade muito ganhem se, como o prefere a Igreja, o povo numeroso e devoto a ela assistir.
97. Deve-se ainda observar que estão fora da verdade e do caminho da reta razão os que, arrastados por falsas opiniões, tanto valor atribuem a todas essas circunstâncias que não duvidam asseverar que, omitindo-as, a ação sagrada não pode alcançar o fim prefixado.
98. Não poucos fiéis, com efeito, são incapazes de usar o "Missal Romano" ainda quando escrito em língua vulgar; nem todos são capazes de compreender corretamente, como convém, os ritos e as cerimônias litúrgicas. A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza. Por isso vos exortamos, veneráveis irmãos, a que na vossa diocese ou jurisdição eclesiástica reguleis e ordeneis o modo mais adequado mediante o qual o povo consiga participar da ação litúrgica segundo as normas estabelecidas no "Missal Romano" e segundo os preceitos da Sagrada Congregação dos ritos e do Código de direito canônico. Faça-se, pois, tudo com a necessária ordem e decoro, nem seja permitido a ninguém, ainda que sacerdote, usar os sagrados edifícios para experimentações arbitrárias. A esse propósito desejamos ainda, como já existe para a arte e a música sacra, também se constitua nas dioceses, uma comissão para promover o apostolado litúrgico, a fim de que, sob o vosso vigilante cuidado, tudo se faça diligentemente segundo as prescrições da Sé Apostólica.
99. Nas comunidades religiosas observe-se cuidadosamente tudo o que as próprias constituições estabeleceram nesta matéria, e não se introduzam novidades que não tenham sido primeiro aprovadas pelos superiores. Na realidade, ainda que possam ser várias as circunstâncias exteriores da participação do povo no sacrifício eucarístico e nas outras ações litúrgicas, sempre deve procurar-se com todo o cuidado que as almas dos assistentes se unam ao divino Redentor com os mais estreitos laços possíveis e que a sua vida se enriqueça de santidade sempre maior e cresça todo dia a glória do Pai celeste.
III. A comunhão eucarística
100. O augusto sacrifício do altar conclui-se com a comunhão do divino banquete. Mas, como todos sabem, para haver integridade do sacrifício, somente é exigido que o sacerdote se nutra do alimento celeste e não que o povo – coisa aliás sumamente desejável – participe da santa comunhão.
101. Agrada-nos a esse propósito repetir as considerações de Nosso predecessor Bento XIV sobre as definições do concílio de Trento: "Em primeiro lugar... devemos dizer que a nenhum fiel pode vir à mente que as missas privadas, nas quais apenas o sacerdote comunga, percam por isso o valor do verdadeiro, perfeito e íntegro sacrifício instituído por Cristo Senhor e devam, portanto, ser consideradas ilícitas. Nem os fiéis ignoram – pelo menos podem ser facilmente instruídos – que o sacrossanto concílio de Trento, fundando-se na doutrina guardada na ininterrupta tradição da Igreja, condenou a nova e falsa doutrina de Lutero, contraria a esta"(103). Quem disser que as missas nas quais só o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas, e por isso devam ser abolidas, seja anátema".(104)
102. Afastam-se, pois, do caminho da verdade os que recusam celebrar, se o povo cristão não se aproximar da mesa divina; e ainda mais se afastam os que, para sustentar a absoluta necessidade de que os fiéis se nutram do banquete eucarístico juntamente com o sacerdote, afirmam capciosamente que não se trata somente de um sacrifício, mas de sacrifício e banquete de união fraterna, e fazem da santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração.
103. Deve-se ainda uma vez notar que o sacrifício eucarístico consiste essencialmente na imolação incruenta da vítima divina, imolação que é misticamente manifestada pela separação das sagradas espécies e pela sua oblação feita ao Pai Eterno. A santa comunhão pertence à integridade do sacrifício, e à participação nele por meio da recepção do augusto sacramento; e enquanto é absolutamente necessária ao ministro sacrificador, aos fiéis é vivamente recomendável.
104. Como, porém, a Igreja, enquanto mestra de verdade, se esforça com todo o cuidado por guardar a integridade da fé católica, assim, enquanto mãe solícita de seus filhos exorta-os instantemente a participarem com avidez e freqüência deste máximo benefício da nossa religião.
105. Deseja antes de tudo, que os cristãos – especialmente quando não possam facilmente receber de fato o alimento eucarístico – o recebam ao menos em desejo; de sorte que se unam a ele com fé viva, com ânimo reverentemente humilde e confiante na vontade do Redentor divino e com o amor mais ardente.
106. Mas isso não lhe basta. Já que, como acima dissemos, podemos participar do sacrifício também pela comunhão sacramental, por meio do banquete do pão dos anjos, a madre Igreja, para que mais eficazmente "possamos sentir em nós continuamente o fruto da redenção" (105) repete a todos os seus filhos o convite de Cristo Senhor: "tomai e comei... fazei isto em minha memória".(106) Nesse propósito o concílio de Trento, fazendo eco aos desejos de Jesus Cristo e de sua esposa imaculada, insta por "que em todas as missas os fiéis presentes participem não só espiritualmente, mas ainda sacramentalmente da eucaristia, para que lhes venha mais abundante o fruto deste sacrifício".(107) Aliás, para melhor e mais claramente manifestar-se a participação dos fiéis no sacrifício divino por meio da comunhão eucarística, o nosso imortal predecessor Bento XIV louva a devoção daqueles que, não só desejam nutrir-se do alimento celeste durante a assistência ao sacrifício, mas preferem alimentar-se com hóstias consagradas no mesmo sacrifício, se bem que, como ele declara, participemos verdadeira e realmente do sacrifício, mesmo quando se trate de pão eucarístico devidamente consagrado antes. Assim, com efeito, escreve: "Embora participem do mesmo sacrifício não só aqueles aos quais o sacerdote celebrante dá parte da Vítima por ele oferecida na mesma missa, mas também aqueles aos quais o sacerdote dá a eucaristia que se costuma conservar; nem por isso a Igreja proibiu no passado, ou proíbe atualmente, que o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis desta participação". (108)
107. Queira, pois, Deus que todos, espontanea e livremente, correspondam a esses solícitos convites da Igreja; queira Deus que os fiéis, mesmo todos os dias se o puderem, participem não só espiritualmente do sacrifício divino, mas ainda da comunhão do augusto sacramento, recebendo o corpo de Jesus Cristo, oferecido por todos ao Pai Eterno. Estimulai, veneráveis irmãos, nas almas confïadas aos vossos cuidados, a apaixonada e insaciável fome de Jesus Cristo; vosso ensinamento cerque os altares de crianças e de jovens que ofereçam ao Redentor divino a sua inocência e o seu entusiasmo: aproximem-se freqüentemente os cônjuges para que, nutridos na sagrada mesa e graças a ela, possam educar no espírito e na caridade de Jesus Cristo a prole que lhes foi confiada; sejam convidados os operários para que possam receber o alimento eficaz e indefectível que lhes restaura as forças e prepara às suas fadigas a recompensa eterna no céu; aproximai enfim os homens de todas as classes e "compeli-os a entrar",(109) porque este é o pão da vida do qual todos têm necessidade. A Igreja de Jesus Cristo só dispõe desse pão para saciar as aspirações e os desejos das nossas almas, para uni-las intimamente a Jesus Cristo, afim de, por ele, se tornarem "um só corpo"(110) e confraternizarem quantos se sentam à mesma mesa para tomar o remédio da imortalidade (111) com a fração do pão único.
108. É assaz oportuno, ainda – o que aliás é estabelecido pela liturgia – que o povo compareça à santa comunhão depois que o sacerdote tomou no altar o alimento divino; e, como já dissemos, são para louvar aqueles que, assistindo à missa, recebem as hóstias consagradas no mesmo sacrifício, verificando-se destarte que "quantos, participando deste altar, hajamos recebido o sacrossanto corpo e sangue de teu Filho, sejamos cumulados de toda a graça e bênção celeste".(112)
109. Todavia, não faltam nem são raras as causas pelas quais se deva distribuir o pão eucarístico, antes ou depois do sacrifício, como também que se comungue com hóstias anteriormente consagradas, embora se distribua a comunhão em seguida à do sacerdote. Mesmo nesses casos – como aliás já advertimos antes – o povo participa regularmente do sacrifício eucarístico e pode freqüentemente, com maior facilidade, aproximar-se da mesa de vida eterna. Se a Igreja com maternal condescendência se esforça por vir ao encontro das necessidades espirituais dos seus filhos, estes, contudo, de sua parte, não devem facilmente desdenhar o que a sagrada liturgia aconselha e, sempre que não haja motivo plausível em contrário, devem fazer tudo o que mais claramente manifesta no altar a viva unidade do corpo místico.
110. Finda a sagrada ação, regulada pelas normas litúrgicas particulares, não dispensa a ação de graças de quem saboreou o alimento celeste; é, aliás muito conveniente que, recebido o alimento eucarístico e terminados os ritos públicos, se recolha e, intimamente unido com o divino Mestre, se entretenha com ele tanto quanto as circunstâncias lho permitam, em dulcíssimo e salutar colóquio. Afastam-se, pois, do reto caminho da verdade aqueles que, baseando-se nas palavras mais que no sentido, afirmam e ensinam que, terminada a missa, não se deve prolongar a ação de graças, não só porque o sacrifício do altar é por natureza uma ação de graças mas ainda porque isso pertence à piedade privada, pessoal e não ao bem da comunidade. Pelo contrário, a própria natureza do Sacramento requer do cristão que o recebe, que se locuplete com abundantes frutos de santidade.
111. Certamente a pública assembléia da comunidade está dissolvida, mas é necessário que os indivíduos unidos com Cristo não interrompam na sua alma o cântico de louvor, "agradecendo sempre tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo a Deus e Pai".(113) A isso nos exorta ainda a própria liturgia do sacrifício eucarístico, quando nos manda rezar com estas palavras: "Concede, nós te pedimos, render-te contínuas graças (114) e não cessar jamais de louvar-te".(115) Se se deve, pois, sempre agradecer a Deus e jamais cessar de louvá-lo, quem ousaria repreender e desaprovar a Igreja que aconselha aos seus sacerdotes (116) e aos fiéis entreterem-se ao menos um pouco de tempo depois da comunhão em colóquio com o divino Redentor, e que inseriu nos livros litúrgicos oportunas orações enriquecidas de indulgências com as quais os sagrados ministros se possam convenientemente preparar antes de celebrar e de comungar e, acabada a santa missa, manifestar a Deus a sua ação de graças? A sagrada liturgia, longe de sufocar os íntimos sentimentos particulares dos cristãos, os facilita e estimula a que sejam assimilados a Jesus Cristo e por meio dele dirigidos ao Pai; portanto ela mesma exige que aquele que se aproxima da mesa eucarística agradeça devidamente a Deus. O divino Redentor compraz-se em ouvir as nossas orações, falar conosco de coração aberto e oferecer-nos refúgio no seu Coração ardente.
112. Esses atos próprios dos indivíduos são absolutamente necessários para aproveitar-nos mais abundantemente de todos os sobrenaturais tesouros de que é rica a eucaristia e para transmiti-los aos outros segundo as nossas possibilidades, a fim de que Cristo Senhor consiga em todas as almas a plenitude de sua virtude. Por que, pois, veneráveis irmãos; não louvaremos aqueles que, recebido o alimento eucarístico, ainda depois que se dissolveu oficialmente a assembléia cristã, se demoram em íntima familiaridade com o divino Redentor, não só para tratar docemente com ele, mas ainda para agradecê-lo, louvá-lo e especialmente para pedir-lhe ajuda, e, assim, afastar de sua alma tudo quanto possa diminuir a eficácia do sacramento, ao passo que se aproveita de tudo o que logra favorecer a atualíssima ação de Jesus? Antes, nós os exortamos a fazê-lo, de modo particular, quer traduzindo na prática os propósitos concebidos e exercitando as virtudes cristãs, quer adaptando às próprias necessidades quanto tenham recebido com real liberalidade. Falava deveras segundo os preceitos e espírito da liturgia o autor do áureo livrinho a "Imitação de Cristo", quando aconselhava a quem tivesse comungado: "Recolhe-te em segredo e goza de teu Deus para que possuas aquele que o mundo inteiro não poderá tirar-te".(117)
113. Assim, pois, intimamente unidos a Cristo, procuremos todos mergulhar em sua santíssima alma e unir-nos com ele para participar dos atos de adoração com os quais ele oferece à Trindade Augusta a homenagem mais grata e aceita; aos atos de louvor e de ação de graças que ele oferece ao Pai Eterno e a que faz eco o cântico do céu e da terra: "Bendigam ao Senhor todas as suas obras"; (118) participando dos atos, imploremos a ajuda celeste no momento mais oportuno para pedir e obter socorro em nome de Cristo (119) mas, sobretudo, ofereçamo-nos e imolemo-nos como vítimas clamando: "Faze que sejamos oferta eterna a ti",(120)
114. O divino Redentor repete incessantemente o seu insistente convite: "Permanecei em mim".(121) por meio do sacramento da eucaristia, Cristo fica em nós e nós ficamos em Cristo; e como Cristo, permanecendo em nós, vive e opera, assim é necessário que nós, permanecendo em Cristo, por ele vivamos e operemos.
IV. Adoração da eucaristia
115. Contém o alimento eucarístico, como todos sabem, "verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo"; (122) não é de admirar, pois, se a Igreja, desde as origens adorou o corpo de Cristo sob as espécies eucarísticas, como se vê dos ritos mesmos do augusto sacrifício, com os quais se prescreve aos sagrados ministros que adorem o santíssimo sacramento com genuflexões e inclinações profundas.
116. Os sagrados concílios ensinam que, desde o início de sua vida, foi transmitido à Igreja que se deve honrar "com uma única adoração o Verbo Deus encarnado e a sua própria carne" (123); e santo Agostinho afirma: "Ninguém come esta carne sem tê-la primeiro adorado", acrescentando que não só não pecamos adorando, antes pecamos não adorando.(124)
117. Desses princípios doutrinários nasceu e se foi pouco a pouco desenvolvendo o culto eucarístico da adoração, distinto do santo sacrifício. A conservação das sagradas espécies para os enfermos e para todos os que viessem a encontrar-se em perigo de morte, introduziu o louvável uso de adorar este alimento celeste conservado nas igrejas. Esse culto de adoração tem um válido e sólido motivo. A eucaristia, de fato, é sacrifício e é, também, sacramento; e difere dos outros sacramentos enquanto não só produz a graça, mas ainda contém de modo permanente o próprio autor da graça. Quando, por isso, a Igreja nos manda adorar a Cristo sob os véus eucarísticos e suplicar-lhe os dons sobrenaturais e terrenos de que temos sempre necessidade, manifesta a fé viva com a qual crê presente sob aqueles véus o seu Esposo divino, manifesta-lhe o seu reconhecimento e goza da sua íntima familiaridade.
118. Nesse culto, a Igreja, no decurso dos tempos, introduziu várias formas cada dia certamente mais belas e salutares, como, por exemplo: devotas e mesmo cotidianas visitas ao divino tabernáculo; bênção do santíssimo sacramento; procissões solenes por vilas e cidades, especialmente por ocasião dos congressos eucarísticos, e adoração do augusto sacramento publicamente exposto, as quais algumas vezes duram pouco e outras vezes se prolongam por horas inteiras e até, por quarenta horas; em alguns lugares são estabelecidas durante o ano todo, por turnos, em cada Igreja; em outros lugares se continuam de dia e de noite ao cuidado de comunidades religiosas e nelas freqüentemente tomam parte também os fiéis.
119. Esses exercícios de devoção contribuíram de modo admirável para a fé e a vida sobrenatural da Igreja militante na terra, a qual, assim fazendo, se torna, de certo modo, eco da Igreja triunfante que eternamente canta o hino de louvor a Deus e ao Cordeiro "que foi imolado".(125) Por isso, a Igreja não só aprovou mas fez seus e confirmou com a sua autoridade estes exercícios devotos propagados em toda a parte no correr dos séculos.(126) Eles fluem do espírito da sagrada liturgia; e por isso, desde que sejam cumpridos com o decoro, a fé e a devoção requeridas pelos sagrados ritos e pelas prescrições da Igreja, certamente ajudam muitíssimo a viver a vida litúrgica.
120. Nem se diga que tal culto eucarístico provoca uma errônea confusão entre o Cristo histórico, como dizem, que viveu na terra, o Cristo presente no augusto sacramento do altar, e o Cristo triunfante no céu e dispensador de graças; deve-se, pelo contrário, afirmar que, desse modo, os fiéis testemunham e manifestam solenemente a fé da Igreja, com a qual se crê que um e idêntico é o Verbo de Deus e o Filho de Maria virgem, que sofreu na cruz, que está presente e oculto na eucaristia, e que reina no céu. Assim afirma são João Crisóstomo: "Quando vês a ti; apresentado (o corpo de Cristo) dize a ti mesmo: por este corpo não sou mais terra e pó, não mais escravo, porém livre: por isso, espero alcançar o céu e os bens que aí se encontram, a vida imortal, a herança dos anjos, a companhia de Cristo; este corpo transpassado pelos cravos, dilacerado pelos açoites, não foi presa da morte... Este é aquele corpo que foi ensangüentado, transpassado pela lança, do qual brotaram duas fontes salutares: uma de sangue, outra de água... Este corpo foi-nos dado para o possuir e para o comer, e isso foi conseqüência de intenso amor".(127)
121. De modo particular, ademais, é muito de louvar-se o costume segundo o qual muitos exercícios de piedade entrados no uso do povo cristão, se encerram com o rito da bênção eucarística. Nada melhor nem mais vantajoso que o gesto com o qual o sacerdote, levantando ao céu o pão dos anjos, em presença da multidão cristã ajoelhada, e movendo-o em forma de cruz, invoca o Pai Celeste para que se digne volver benignamente os olhos a seu Filho crucificado por nosso amor, e, graças a ele, que quis ser nosso Redentor e irmão, difunda por sua intervenção, os seus dons celestes sobre os remidos pelo sangue imaculado do Cordeiro.(128)
122. Procurai, pois, veneráveis irmãos, com a vossa habitual e grande diligência, que os templos edificados pela fé e pela piedade das gerações cristãs no decurso dos séculos como um perene hino de glória a Deus onipotente e como digna habitação do nosso Redentor oculto sob as espécies eucarísticas, sejam o mais possível abertos aos sempre mais numerosos fiéis, para que eles, recolhidos aos pés de nosso Salvador, ouçam o seu dulcíssimo convite: "Vinde a mim, vós todos que estais atribulados e oprimidos, e eu vos aliviarei".(129) Os templos sejam em verdade a casa de Deus, na qual quem entra para pedir favores se alegre de tudo conseguir (130) e alcance a consolação celeste.
123. Somente assim poderá acontecer que toda a família humana se pacifique na ordem e, com inteligência e coração concordes, cante o hino da esperança e do amor: "Bom Pastor, pão verdadeiro – ó Jesus, compadece-te de nós – apascenta-nos, guarda-nos, – faze-nos contemplar a felicidade na terra dos vivos".(131)
TERCEIRA PARTE
O OFÍCIO DIVINO E O ANO LITÚRGICO
I. O ofício divino
124. O ideal da vida cristã consiste em se unir cada um intimamente a Deus. Por isso, o culto que a Igreja rende ao Eterno e que se sintetiza no sacrifício eucarístico e no uso dos sacramentos é ordenado e disposto, de modo que, com o ofício divino, se estenda a todas as horas do dia, às semanas, a todo o curso do ano, a todos os tempos e a todas as condições da vida humana.
125. Tendo o divino Mestre recomendado: "É necessário rezar sempre, sem esmorecer",(132) a Igreja, obedecendo fielmente a essa recomendação, não cessa de rezar e exortar-nos com o apóstolo das gentes: "Por seu intermédio (de Jesus) ofereçamos sempre a Deus o sacrifício de louvor".(133)
126. A oração pública e coletiva endereçada a Deus por todos juntos, realizava-se na antiguidade somente em certos dias e outros momentos do dia. Contudo rezava-se não só nas reuniões públicas, mas ainda nas casas particulares e, às vezes, com os vizinhos e amigos. Bem cedo, porém, nas várias partes da cristandade, introduziu-se o uso de reservar à oração tempos particulares, por exemplo, a última hora do dia, quando o sol se esconde e se acende o lampadário; ou à primeira hora, quando termina a noite, isto é, depois do canto do galo e ao surgir do sol. Outros momentos do dia são indicados como mais próprios para a oração pela Sagrada Escritura, pelo costume tradicional hebráico e práticas cotidianas. Segundo os Atos dos Apóstolos, os discípulos de Jesus Cristo reuniam-se para orar na terceira hora, quando "ficaram todos repletos do Espírito Santo" ;(134) o príncipe dos apóstolos, antes de tomar alimento, "subiu à parte superior da casa para rezar por volta da hora sexta";(135) Pedro e João "subiam ao templo para a oração na hora nona"; (136) e Paulo e Silas "louvavam a Deus à meia noite".(137)
127. Essas várias orações especialmente por iniciativa e obra dos monges e dos ascetas, aperfeiçoaram-se cada dia mais, e pouco a pouco foram introduzidas no uso da sagrada liturgia por autoridade da Igreja.
128. O Ofício divino é, pois, a oração do corpo místico de Cristo, dedicada a Deus em nome de todos os cristãos e em seu beneficio, feita pelos sacerdotes, por outros ministros da Igreja e pelos religiosos delegados da própria Igreja para isso.
129. Qual deva ser o caráter e eficácia desse louvor divino, deduz-se das palavras que a Igreja sugere dizer antes de iniciar-se a oração do Ofício, prescrevendo que sejam recitadas "digna, atenta e devotamente".
130. Assumindo a natureza humana, o Verbo de Deus introduziu no exílio terreno o hino que se canta no céu por toda a eternidade. Une a si toda a comunidade humana e a associa no canto deste hino de louvores. Confessemos com humildade que "não sabemos o que devemos convenientemente pedir, mas o próprio Espírito reza por nós com gemidos inenarráveis". (138) E ainda Cristo, por meio do seu Espírito, invoca em nós o Pai. "Deus não poderia fazer aos homens um dom maior... reza (Jesus) por nós como nosso sacerdote; reza em nós como nossa cabeça; é invocado por nós como nosso Deus... reconheçamos, pois, as nossas vozes nele e a sua voz em nós... Rezamos a ele como a Deus, ele reza como servo: lá o Criador, aqui um ser criado, enquanto, sem sofrer mudança, tomou uma natureza mutável, fazendo de nós um só homem com ele: cabeça e corpo".(139)
131. A excelsa dignidade dessa oração da Igreja deve corresponder a intensa devoção da nossa alma e, visto que a voz do orante repete os poemas escritos por inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos louvores e ações de graças: "Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde com a nossa voz". (140) Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus para que nos consagremos, nós e todas as nossas ações, a ele, unidos com Jesus Cristo.
132. Disso depende certamente, em não pequena parte, a eficácia das orações, as quais, se não se dirigem ao próprio Verbo feito homem, concluem com estas palavras: "Por nosso Senhor Jesus Cristo" que, mediador entre nós e Deus, mostra ao Pai celeste os seus estigmas gloriosos, "sempre viva para interceder por nós".(141)
133. Os salmos, como todos sabem, constituem parte principal do Oficio divino. Eles abrangem todo o curso do dia e lhe dão um contato e um ornamento de santidade. Cassiodoro disse belamente a propósito dos salmos distribuídos no Oficio divino do seu tempo: "Eles... com júbilo matutino nos tornam favorável o dia que está para começar, santificam a primeira hora do dia, consagram a terceira hora, alegram a sexta na fração do pão, assinalam, à nona, o fim do jejum, concluem o término do dia e impedem o nosso espírito de obscurecer-se ao avizinhar-se a noite".(142)
134. Eles lembram as verdades reveladas por Deus ao povo eleito, às vezes terríveis, às vezes impregnadas de suavíssima doçura; repetem e acendem a esperança no Libertador prometido que outrora era animada com o canto em torno da lareira doméstica e na própria majestade do templo; põem em maravilhosa luz a profetizada glória de Jesus Cristo e o seu sumo e eterno poder, a sua vinda e o seu aniquilamento neste exílio terreno, a sua dignidade real e o seu poder sacerdotal, as suas benéficas fadigas e o seu sangue derramado pela nossa redenção. Exprimem igualmente a alegria das nossas almas, a tristeza, a esperança, o temor, a correspondência do amor e o abandono a Deus qual mística ascensão para os divinos tabernáculos.
135. "O salmo... é a bênção do povo, o louvor de Deus, o elogio do povo, o aplauso de todos, a linguagem geral, a voz da Igreja, a harmoniosa confissão de fé, o pleno devotamento à autoridade, a alegria da liberdade, o grito de entusiasmo, o eco da alegria."(143)
136. Na antiguidade, a assistência dos fiéis a essas orações do Ofício era maior; mas gradativamente diminuiu como dissemos; e como acabamos de dizer, a sua recitação atualmente é reservada ao clero e aos religiosos. Em rigor de lei, nada é prescrito aos leigos nesta matéria, mas é muito de desejar que eles tomem parte ativa no canto ou na recitação do Oficio de Vésperas nos dias festivos, na própria paróquia. Recomendamos vivamente, veneráveis irmãos, a vós e aos vossos féis que não cesse este piedoso hábito e que, se possível, se ponha em vigor onde tiver desaparecido. Isso acontecerá certamente com frutos salutares se as Vésperas forem cantadas não só digna e decorosamente mas de maneira que nutra suavemente de vários modos a piedade dos fiéis. Seja sagrada a observância dos dias festivos que devem ser dedicados e consagrados a Deus de modo particular; e; sobretudo, do domingo, que os apóstolos, instruídos pelo Espírito Santo, substituíram ao sábado. Se foi ordenado aos judeus: "Trabalhareis durante seis dias; no sétimo dia que é sábado, repouso santo do Senhor, quem trabalhar neste dia será condenado à morte";(144) como não terão a morte espiritual aqueles cristãos que fazem obra servil nos dias festivos e durante o repouso festivo não se dedicam à piedade nem à religião, mas se abandonam demasiadamente aos atrativos deste século? O domingo e os dias festivos devem ser consagrados ao culto divino com o qual se adora a Deus e a alma se nutre do alimento celeste; e se bem que a Igreja prescreva somente que os fiéis devam abster-se do trabalho servil e devam assistir ao sacrifício eucarístico, e não dê nenhum preceito para o culto vespertino, note-se que, além dos preceitos existem também suas insistentes recomendações e desejos, o que ainda mais é exigido pela necessidade que todos têm de tornar propício o Senhor para impetrar benefícios. Contrista-se profundamente nossa alma ao ver como em nossos tempos o povo cristão passa a tarde do dia festivo: enchem-se os lugares de espetáculos públicos e de jogos, enquanto as igrejas são menos freqüentadas do que conviria. Mas é necessário, sem dúvida, que todos vão aos nossos templos para ser instruídos na verdade da fé "católica, para cantar os louvores de Deus, para serem enriquecidos pelo sacerdote com a bênção eucarística e munidos do auxílio celeste contra a adversidade da vida presente. Procurem todos aprender as fórmulas que se cantam nas Vésperas e penetrar-lhes o íntimo sentido; sob o influxo dessas orações experimentarão aquilo que santo Agostinho afirmava de si mesmo: "Quanto chorei entre hinos e cânticos, vivamente comovido pelo canto suave da tua Igreja! Aquelas vozes ressoavam nos meus ouvidos, instilavam a verdade no meu coração, em mim ardiam sentimentos de devoção, e as lágrimas corriam, fazendo-me bem".(145)
II. Ciclo dos mistérios do ano litúrgico
137. Durante todo o correr do ano a celebração do sacrifício eucarístico e o Oficio divino se desenvolvem sobretudo em torno da pessoa de Jesus Cristo e se organizam de modo tão harmonioso e adequado que faz dominar o nosso Salvador nos seus mistérios de humilhação, de redenção e de triunfo.
138. Evocando esses mistérios de Jesus Cristo, a sagrada liturgia visa a fazer deles participar todos os crentes de modo que a divina Cabeça do corpo místico viva na plenitude da sua santidade nos membros. Sejam as almas dos cristãos como altares nos quais se repetem e se reavivam as várias fases do sacrifício que o sumo Sacerdote imola; isto é, as dores e as lágrimas que lavam e expiam os pecados; a oração dirigida a Deus que se eleva até o céu; a própria imolação feita com ânimo pronto, generoso e solícito e, enfim, a íntima união com a qual nos abandonamos, nós e nossas coisas a Deus e nele repousamos "sendo o essencial da religião imitar aquele que adoras". (146)
139. Conforme esses modos e motivos com os quais a liturgia propõe à nossa meditação em tempos fixos a vida de Jesus Cristo, a Igreja nos mostra os exemplos que devemos imitar e os tesouros de santidade que fazemos nossos, porque é necessário crer com a mente aquilo que se canta com a boca, e traduzir na prática dos costumes particulares e públicos o que se crê com a mente.
140. Com efeito, no tempo do advento, excita em nós a consciência dos pecados miseramente cometidos; e nos exorta a fim de que, refreando os desejos com a mortificação voluntária do corpo, nos recolhamos em pia meditação e sejamos impelidos pelo desejo de voltar a Deus que, só ele, pode com a sua graça libertar-nos da mancha dos pecados e dos males que nos afligem.
141. Na ocorrência do Natal do Redentor parece quase reconduzir-nos à gruta de Belém para que aí aprendamos que é absolutamente necessário nascer de novo e reformar-nos radicalmente, o que só é possível quando nos unimos íntima e vitalmente ao Verbo de Deus feito homem e nos tornamos participantes da sua divina natureza à qual fomos elevados.
142. Com a solenidade da Epifania, recordando a vocação das gentes à fé cristã, quer que agradeçamos cada dia ao Senhor por tão grande benefício, desejemos com grande fé o Deus vivo, compreendamos com devoção e profundamente as coisas sobrenaturais e amemos o silêncio e a meditação para poder facilmente compreender e conseguir os dons celestes.
143. Nos dias da Septuagésima e da Quaresma, a Igreja, nossa mãe, multiplica os seus cuidados para que diligencie cada qual por se compenetrar da sua miséria, ativamente se incite à emenda dos costumes, e deteste de modo particular os pecados, suprimindo-os com a oração e a penitência, já que a assídua oração e a penitência dos pecados cometidos nos obtêm o auxílio divino sem o qual é inútil e estéril toda obra nossa. No tempo sagrado em que a liturgia nos propõe as atrozes dores de Jesus Cristo, a Igreja nos convida ao Calvário, a seguir as pegadas sanguinolentas do divino Redentor a fim de que de bom grado carreguemos a cruz com ele, tenhamos em nós os mesmos sentimentos de expiação e de propiciação e juntos morramos todos com ele.
144. Na solenidade pascal, que comemora o triunfo de Cristo, sente-se a nossa alma penetrada de íntima alegria, e devemos oportunamente pensar que também nós, junto com o Redentor, surgiremos, de uma vida fria e inerte para uma vida mais santa e fervorosa, a Deus oferecendo-nos todos, com generosidade e esquecendo-nos desta mísera terra para só aspirar ao céu: "Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas supernas, aspirai às coisas do alto".(147)
145. No tempo de Pentecostes, finalmente, exorta nossa Igreja, com os seus preceitos e a sua obra, a oferecer-nos docilmente à ação do Espírito Santo, o qual quer acender em nossos corações a divina caridade para progredirmos na virtude com maior empenho, e assim nos santificar, como são santos Cristo Senhor e o seu Pai Celeste.
146. Todo o ano litúrgico, assim, pode dizer-se um magnífico hino de louvor que a família cristã dirige ao Pai celeste por meio de Jesus, seu eterno mediador; mas requer de nós ainda um cuidado diligente e bem ordenado para conhecer e louvar sempre mais o nosso Redentor; um esforço intenso e eficaz, um adestramento incansável para imitar os seus mistérios, entrar voluntariamente no caminho de suas dores, e participar, finalmente, de sua glória e eterna beatitude.
147. De quanto foi exposto aparece claramente, veneráveis irmãos, quanto estejam longe do verdadeiro e genuíno conceito da liturgia escritores modernos, que, enganados por uma pretensa disciplina mística mais alta, ousam afirmar que não nos devemos concentrar no Cristo histórico mas no Cristo "pneumático e glorificado"; e não duvidam asseverar que na piedade dos fiéis se tenha verificado certa mudança, pela qual Cristo foi como que destronado com o apegamento de Cristo glorificado que vive e reina nos séculos dos séculos, assentado à direita do Pai, enquanto em seu lugar foi colocado o Cristo da vida terrena. Alguns, por isso, chegam ao ponto de querer tirar das Igrejas as imagens do divino Redentor que sofre na cruz.
148. Mas essas falsas opiniões são de todo contrárias à sagrada doutrina tradicional. "Crê em Cristo nascido na carne – diz santo Agostinho – e chegarás a Cristo nascido de Deus, Deus de Deus".(148) A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: "Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos". (149) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.
149. E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz.(150)
150. Assim o ano litúrgico, que a piedade da Igreja alimenta e acompanha, não é uma fria e inerte representação de fatos que pertencem ao passado, ou uma simples e nua evocação da realidade de outros tempos. É, antes, o próprio Cristo, que vive sempre na sua Igreja e que prossegue o caminho de imensa misericórdia por ele iniciado, piedosamente, nesta vida mortal, quando passou fazendo o bem!(151) com o fim de colocar as almas humanas em contato com os seus mistérios e fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente presentes e operantes, não de modo incerto e nebuloso, de que falam alguns escritores recentes, mas porque, como nos ensina a doutrina católica e segundo a sentença dos doutores da Igreja, são exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte de graça divina pelos méritos e intercessão do Redentor; e porque perduram em nós no seu efeito, sendo cada um deles, de modo consentâneo à própria índole, a causa da nossa salvação. Acresce que a pia Madre Igreja, enquanto propôs à nossa contemplação os mistérios de Cristo, invoca com as suas preces os dons sobrenaturais pelos quais os seus filhos se compenetram do espírito desses mistério por virtude de Cristo. Por influxo e virtude dele podemos, com a colaboração da nossa vontade, assimilar a força vital como ramos da árvore, como membros da cabeça, e progressiva e laboriosamente transformar-nos "segundo a medida da idade plena de Cristo".(152)
III. As festas dos santos
151. No decurso do ano litúrgico relembram-se não só os mistérios de Jesus Cristo, mas ainda as festas dos santos, nas quais, se bem que se trate de uma ordem inferior e subordinada, a Igreja tem sempre a preocupação de propor aos fiéis exemplos de santidade que os levem a adornar-se das mesmas virtudes do Divino Redentor. (152). É necessário, com efeito, que imitemos as virtudes dos santos, nas quais brilha, de modo vário, a própria virtude de Cristo, porque dele foram imitadores, visto que, em alguns fulgiu o zelo do apostolado; em outros se demonstrou a fortaleza dos nossos heróis até a efusão do sangue; em outros brilhou a constante vigilância na espera do Redentor; em outros resplandeceu o candor virginal da alma e a modesta doçura da humildade cristã; em todos arde uma fervidíssima caridade para com Deus e para com o próximo. A liturgia põe diante de nossos olhos todos esses belos ornamentos de santidade, para que salutarmente os olhemos e para que "nós que gozamos dos seus méritos sejamos inflamados pelos seus exemplos". (153) É necessário, pois, conservar "a inocência na simplicidade", a concórdia na caridade, a modéstia na humildade, a diligência no governo, a atenção em ajudar o que sofre, a misericórdia em cuidar dos pobres, a constância em defender a verdade, a justiça na severidade da disciplina, para que não falte em nós nenhuma de todas as virtudes que nos foram propostas para exemplo. Essas são as pegadas que os santos, na sua volta à pátria nos deixaram, para, palmilhando os seus caminhos, podermos segui-los na bem-aventurança... (154) E para salutarmente impressionar também os nossos sentidos, quer a Igreja que em nossos templos estejam expostas as imagens dos santos, sempre, porém, com o mesmo fim, isto é, que "imitemos as virtudes daqueles cujas imagens veneramos".(155)
153. Mas há ainda outro motivo no culto do povo cristão aos santos: o de implorar a sua ajuda, e o de "ser amparados pelo patrocínio daqueles em cujo louvor nos deleitamos". (156) Disso facilmente se deduz o porquê das numerosas fórmulas de oração que a Igreja nas propõe para invocar a proteção dos santos.
154. Entre os santos há um culto proeminente a Maria virgem Mãe de Deus. A sua vida, pela missão comada por Deus, está estreitamente inserida nos mistérios de Jesus Cristo e ninguém, certamente, mais do que ela, seguiu tão de perto e com maior eficácia, as pegadas do Verbo encarnado, ninguém goza de maior graça e poder junto do coração sacratíssimo do Filho de Deus e, através do Filho, junto do Pai celeste ela é mais santa do que os querubins e os serafins e, sem nenhuma comparação, mais gloriosa do que todos os outros santos, porque é "cheia de graça", (157 ) Mãe de Deus, e por nos haver dado, com o seu parto feliz, o Redentor. A ela, que é "mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa" recorramos todos nós "gemendo e chorando neste vale de lágrimas".(158) À sua proteção, entreguemo-nos confiantes, nós e todas as nossas coisas. Ela se tornou nossa mãe quando o divino Redentor cumpria o sacrifício de si mesmo, e por isso, ainda por esse título, somos seus filhos. Ela nos ensina todas as virtudes, dá-nos seu Filho e, com ele, todos os auxílios que nos são necessários, porque Deus "quis que tudo nos viesse por meio de Maria".(159)
155. Por esse caminho litúrgico que nos é, cada ano, aberto de novo, sob a ação santificadora da Igreja, confortados com os auxílios e os exemplos dos santos, sobretudo da imaculada virgem Maria, "aproximemo-nos com sincero coração, com plenitude de fé, purificado o coração da consciência de culpa e lavado o corpo com água pura", (160) do "grande Sacerdote",(161) para viver e sentir com ele e penetrar por seu intermédio "até além do véu" (162) e aí honrar o Pai celeste por toda a eternidade.
156. Tal é a essência e a razão de ser da sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, afim de ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
QUARTA PARTE
DIRETRIZES PASTORAIS
I.. Não se descuidem as outras formas de piedade
157. Para afastar da Igreja os erros e os exageros de que acima falamos e para que possam os fiéis, guiados por mais seguras normas, praticar o apostolado litúrgico com abundantes frutos, achamos oportuno, veneráveis irmãos, acrescentar alguma coisa para a prática da doutrina exposta.
158. Tratando da genuína piedade, afirmamos que entre a liturgia e os outros atos de religião – desde que sejam retamente ordenados e tendam ao justo fim – não pode haver verdadeiro contraste; há, até, alguns exercícios de piedade que a Igreja recomenda grandemente ao clero e aos religiosos.
159. Ora, desejamos que também o povo cristão não fique alheio destes exercícios. Estes são – para falar apenas dos principais – a meditação de assuntos espirituais, o exame de consciência, os retiros espirituais, instituídos para a reflexão mais intensa das verdades eternas, a visita ao santíssimo sacramento e as orações particulares em honra da bem-aventurada virgem Maria, entre as quais excele, como todos sabem, o rosário.(163)
160. A essas múltiplas formas de piedade não pode ser estranha a inspiração e a ação do Espírito Santo; elas, com efeito – se bem que de várias maneiras – visam todas a voltar e dirigir para Deus as nossas almas, porque as purificam dos pecados, as dispõem à conquista da virtude e as estimulam à verdadeira piedade, habituando-as à meditação das verdades eternas, e tornando-as mais capazes da contemplação dos mistérios da natureza humana e divina de Cristo. Além disso, nutrindo intensamente nos fiéis a vida espiritual, preparam-nos para participar das sagradas funções com fruto maior, e evitam o perigo de se reduzirem as orações litúrgicas a um ritualismo vão.
161. Não vos canseis, pois, veneráveis irmãos, no vosso zelo pastoral, recomendando e encorajando esses exercícios de piedade, dos quais brotam sem dúvida para o povo que vos foi confiado frutos salutares. Sobretudo, não permitais – como alguns pretendem, ou com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos – que as Igrejas sejam fechadas durante as horas não destinadas às funções públicas, como já acontece em algumas regiões; que a adoração e a visita ao santíssimo sacramento sejam menosprezadas; que se desaconselhe a confissão dos pecados feita com o fim único de devoção; que se desleixe, especialmente entre a juventude, o culto da virgem Mãe de Deus, que, no dizer dos santos, é sinal de predestinação. São esses frutos envenenados, sumamente nocivos à piedade cristã, que repontam de ramos infectos de uma árvore sã; é necessário, por isso, extirpá-los, para que a seiva da árvore possa nutrir somente frutos agradáveis e ótimos.
162. Visto que as opiniões manifestadas por alguns a propósito da confissão freqüente são de todo alheias ao Espírito de Cristo e de sua esposa imaculada, e verdadeiramente funestas para a vida espiritual, recordamos o que a propósito escrevemos, com pesar, na encíclica "Mystici Corporis"; e insistimos de novo para que proponhais à séria meditação e à docil atuação dos vossos rebanhos e especialmente dos candidatos ao sacerdócio e do jovem clero, quanto ali vos dissemos em graves palavras.
163. Zelai, pois, de modo particular, para que muitíssimos, não só do clero mas ainda do laicato, e especialmente os pertencentes aos sodalícios religiosos e às fileiras da Ação católica, tomem parte nos retiros mensais e nos exercícios espirituais realizados em determinados dias para incrementar a piedade. Como dissemos acima, esses exercícios espirituais são utilíssimos e até necessários, para instilar nas almas a genuína piedade, e para formá-las à santidade, de modo que possam haurir da sagrada liturgia benefícios mais eficazes e abundantes.
164. Quanto aos vários modos sob os quais se costuma praticar esses exercícios, fique bem conhecido e claro a todos, que na Igreja terrena, como na celeste, há "muitas moradas"; (164) e que a ascética não pode ser monopólio de ninguém. Um é o Espírito, o qual, porém, "sopra onde quer";(165) e com diversos dons e por diversas vias dirige as almas por ele iluminadas à consecução da santidade. A sua liberdade e a ação sobrenatural do Espírito Santo nelas seja coisa sacrossanta, que a ninguém é lícito, a nenhum título, perturbar e conculcar.
165. É sabido, entretanto, que os exercícios espirituais de santo Inácio foram plenamente aprovados e insistentemente recomendados pelos nossos predecessores por causa de sua admirável eficácia; e nós, também, pela mesma razão, os aprovamos e recomendamos, como presentemente com prazer o tornamos a fazer.
166. É absolutamente necessário, porém, que a inspiração a seguir e praticar determinados exercícios de piedade, venha do Pai das luzes, do qual provém todo bem, e todo dom perfeito;(166) e disso será índice a eficácia com a qual servirão para que o culto divino seja sempre mais amado e amplamente promovido, e os fiéis sejam solicitados por um mais intenso desejo à participação dos sacramentos e à devida honra e respeito de todas as coisas sagradas. Se eles, ao contrário, se transformassem em obstáculo ou se revelassem em contraste com os princípios e normas do culto divino, então sem dúvida se deveria tê-los como não ordenados por pensamento reto, nem guiados por zelo iluminado.
167. Além disso, há outros exercícios de piedade que, se bem não pertençam a rigor e de direito à sagrada liturgia, se revestem de particular dignidade e importância, de modo que são tidos por insertos no quadro litúrgico, e gozam de repetidas aprovações e louvores desta Sé Apostólica e dos bispos. Entre esses se devem enumerar as orações que se costuma fazer durante o mês de maio em honra da virgem Mãe de Deus, ou durante o mês de junho em honra do sacratíssimo coração de Jesus, os tríduos e novenas, a "Via sacra" e outros semelhantes.
168. Essas piedosas práticas, que exercitam o povo cristão a uma assídua freqüência do sacramento da penitência e a uma devota participação no sacrifício eucarístico e na mesa divina, como também à meditação dos mistérios da nossa Redenção e à imitação dos grandes exemplos dos santos, por isso mesmo contribuem com fruto salutar para a nossa participação no culto litúrgico.
169. Por isso faria obra perniciosa e de todo errônea quem ousasse temerariamente assumir a reforma desses exercícios de piedade, para enquadrá-los apenas nos esquemas litúrgicos. É necessário, todavia, que o espírito da sagrada liturgia e os seus preceitos influam beneficamente neles, para evitar que aí se introduza algo de inepto ou de indigno ao decoro da casa de Deus, ou seja em detrimento das sagradas funções e contrário à sã piedade.
170. Cuidai, pois, veneráveis irmãos, para que essa pura e genuína piedade prospere sob os vossos olhos, e floresça sempre mais. Não vos canseis, sobretudo, de inculcar a cada um que a vida cristã não consiste na multiplicidade e variedade das orações e dos exercícios de piedade, mas acima de tudo em que eles contribuam realmente para o progresso espiritual dos fiéis e ao incremento de toda a Igreja, porquanto o Pai Eterno "nos elegeu nele (Cristo) antes da fundação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença". (167) Devem, pois, tender todas as nossas orações e todas as nossas práticas devotas a dirigir todos os nossos recursos espirituais à realização desse supremo e nobilíssimo fim.
II. Espírito litúrgico e apostolado litúrgico
171. Nós vos exortamos instantemente, veneráveis irmãos, a que, desfeitos os erros e a falsidade, e proibido tudo o que está fora da verdade e da ordem, promovais as iniciativas que dão ao povo um mais profundo conhecimento da sagrada liturgia, de modo que ele possa mais adequada e mais facilmente participar dos ritos divinos, com disposição verdadeiramente cristã.
172. É necessário, antes de tudo, empenhar-vos por que todos obedeçam com a devida reverência e fé aos decretos publicados pelo concílio de Trento, pelos pontífices romanos, pela Congregação dos ritos, e a todas as disposições dos livros litúrgicos naquilo que respeita à ação externa do culto público.
173. Em todas as coisas da liturgia devem brilhar sobretudo estes três ornamentos de que fala o nosso predecessor Pio X: a santidade, que rejeita toda influência profana; a nobreza das imagens e das formas, às quais serve toda arte genuína e superior; a universalidade, enfim, a qual – conservando os legítimos usos e costumes regionais – exprime a unidade católica da Igreja.(168)
174. Desejamos e recomendamos calorosamente, ainda uma vez, o decoro dos sagrados edifícios e altares. Sinta-se cada um animado pela palavra divina: "O zelo de tua casa me devora"(169) e se empenhe segundo as suas forças para que tudo, quer nos sagrados edifícios, quer nas vestes e nas alfaias litúrgicas, ainda que não brilhe por excessiva riqueza e esplendor, seja, todavia, apropriado e limpo, estando tudo consagrado à divina Majestade. Se já reprovamos, acima, o modo não reto de proceder daqueles que, a pretexto de restaurar o antigo, querem excluir dos templos as imagens sagradas temos que é nossa obrigação repreender a piedade não bem formada daqueles que, nas Igrejas e em seus próprios altares, propõem à veneração, sem justo motivo, múltiplos simulacros e efígies; daqueles que expõem relíquias não reconhecidas pela legítima autoridade; daqueles, enfim, que insistem em coisas particulares e de pouca importância, enquanto descuram as principais e necessárias, e, assim, tornam ridícula a religião, e envilecem a gravidade do culto.
175. Lembramos ainda o decreto "sobre novas formas de culto e de devoção a não introduzir",(170) cuja religiosa observância recomendamos à vossa vigilância.
176. Quanto à música, observem-se escrupulosamente as determinadas e claras normas emanadas desta Sé Apostólica. O canto gregoriano que a Igreja romana considera coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles, prescrito como é de modo absoluto em algumas partes da liturgia,(171) não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes. A esse propósito nossos predecessores de imortal memória, Pio X e Pio XI, estabeleceram – e nós de bom grado confirmamos com a nossa autoridade as disposições por eles dadas – que nos seminários e nos Institutos religiosos seja cultivado com estudo e diligência o canto gregoriano, e que, ao menos nas Igrejas mais importantes, sejam restauradas as antigas "Scholae cantorum"; como já foi feito com feliz resultado em não poucos lugares.(172)
177. Além disso, "para que os féis participem mais ativamente do culto divino, seja restaurado o canto gregoriano até no uso popular na parte que respeita ao povo. E urge verdadeiramente que os fiéis assistam às sagradas cerimônias não como espectadores mudos e estranhos, mas penetrados, intimamente, da beleza da liturgia... que alternem, segundo as normas prescritas, sua voz com a voz do sacerdote e dos cantores; se isso graças a Deus se verificar, então não acontecerá mais que o povo responda apenas com um leve e submisso murmúrio às orações comuns ditas em latim e em língua vulgar".(173) A multidão que assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com os seus filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa caridade, certamente não poderá calar, pois "cantar é proprio de quem ama",(174) e como já dizia o provérbio antigo: "Quem canta bem, reza duas vezes". Assim, a Igreja militante, clero e povo juntos, une a sua voz aos cantos da Igreja triunfante e aos coros angélicos, e todos juntos cantam um magnífico e eterno hino de louvor à Santíssima Trindade, como está escrito: "Com os quais te imploramos que sejam ouvidas ainda as nossas vozes".(175)
178. Não se pode, todavia, asseverar que a música e o canto moderno devam ser de todo excluídos do culto católico. Aliás, se nada têm de profano e de inconveniente à santidade do lugar e da ação sagrada, nem derivam de uma procura vã de efeitos extraordinários, certamente devemos abrir-lhes as portas de nossas Igrejas, podendo ambos contribuir não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para a elevação das mentes e, ao mesmo tempo, para a verdadeira devoção.
179. Nós vos exortamos ainda, veneráveis irmãos, a que tomeis cuidado em promover o canto religioso popular e a sua acurada execução feita com a dignidade conveniente, podendo isso estimular e aumentar a fé e a piedade das populações cristãs. Suba ao céu o canto uníssono e possante de nosso povo como o fragor das ondas do mar,(176) expressão canora e vibrante de um só coração e uma só alma, (177) como convém a irmãos e filhos de um mesmo Pai.(180). O que dissemos da música, se aplica às outras artes e especialmente à arquitetura, à escultura e à pintura. Não se devem desprezar e repudiar genericamente e por preconceitos as formas e imagens recentes, mais adaptadas aos novos materiais com os quais são hoje confeccionados; mas, evitando com sábio equilíbrio o excessivo realismo de uma parte e o exagerado simbolismo de outra, e tendo em conta as exigências da comunidade cristã, mais do que o juízo e o gosto pessoal dos artistas, é absolutamente necessário dar livre campo também à arte moderna, se esta serve com a devida reverência e a devida honra aos sagrados edifícios e ritos; de modo que ela possa unir a sua voz ao admirável cântico de glória que os gênios cantaram nos séculos passados a fé católica.
Não podemos deixar, porém, por dever de consciência, de deplorar e reprovar aquelas imagens e formas por alguns recentemente introduzidas, que parecem ser depravação e deformação da verdadeira arte e que, muitas vezes, repugnam abertamente ao decoro, à modéstia e à piedade cristã e ofendem, lamentavelmente, o genuíno sentimento religioso; elas devem ser mantidas absolutamente afastadas e postas fora das nossas igrejas como "em geral tudo que não está em harmonia com a santidade do lugar".(178)
181. Fiéis às normas e decretos dos pontífices, cuidai diligentemente, veneráveis irmãos, de iluminar e dirigir a mente e a alma dos artistas, aos quais será confiado hoje o encargo de restaurar e reconstruir tantas Igrejas destruídas ou arruinadas pela violência da guerra; possam e queiram eles, inspirando-se na religião, encontrar os motivos mais dignos e adaptados às exigências do culto; assim, com efeito, felizmente acontecerá que as artes humanas, como vindas do céu, brilhem com luz serena, promovam sumamente a humana civilização e contribuam para a glória de Deus e a santificação das almas, pois que as artes são, em verdade, como armas para a religião, quando servem "como nobilíssimas servas do culto divino".(179)
182. Mas há ainda uma coisa mais importante, veneráveis irmãos, que recomendamos de modo especial à vossa solicitude e ao vosso zelo apostólico. Tudo o que diz respeito ao culto religioso externo tem sua importância, mas urge sobretudo que os cristãos vivam a vida litúrgica e alimentem e fortaleçam seu espírito sobrenatural.
183. Providenciai, pois, alacremente, porque o jovem clero seja formado na inteligência das cerimônias sagradas, na compreensão de sua beleza e majestade, e aprenda diligentemente as rubricas, em harmonia com a sua formação ascética, teológica, jurídica e pastoral. E isso não somente por razões de cultura, não apenas para que o seminarista possa um dia cumprir os ritos da religião com a ordem, o decoro e a dignidade necessárias, mas sobretudo para que seja educado em íntima união com Cristo sacerdote e se torne um santo ministro de santidade.
184. Velai ainda de todo o modo para que, com os meios e subsídios que a vossa prudência julgar mais aptos, sejam o clero e o povo uma só mente e uma só alma; e, assim, o povo cristão participe ativamente da liturgia que se tornará em verdade a ação sagrada, pela qual o sacerdote que atende ao cuidado das almas em sua paróquia, unido com a assembléia do povo, renda ao Senhor o culto devido.
185. Para obter isso, será certamente útil que, piedosos meninos, bem instruídos sejam escolhidos entre todas as classes de fiéis, para que, com desinteresse e boa vontade, sirvam devota e assiduamente ao altar – encargo que deveria ser tido em grande consideração pelos pais, ainda que de alta condição social e cultura. Se esses jovens forem instruídos com o necessário cuidado e sob a vigilância de um sacerdote para que cumpram este seu ofício com reverência e constância, e em horas determinadas, tornar-se-á fácil o brotar entre eles de novas vocações sacerdotais; e não se queixará o clero de não encontrar – como infelizmente acontece por vezes até em regiões catolicíssimas – alguém que na celebração do augusto sacrifício lhe responda e o sirva.
186. Procurai, sobretudo, obter, com o vosso diligentíssimo zelo, que todos os fiéis assistam ao sacrifício eucarístico e dele recebam os mais abundantes frutos de salvação; exortai-os portanto assiduamente a dele participarem com devoção por todos aqueles modos legítimos dos quais falamos acima. O augusto sacrifício do altar é o ato fundamental do culto divino; é necessário, por isso, que ele seja a fonte, o centro da piedade cristã. Considerai que não tereis jamais suficientemente satisfeito ao vosso zelo apostólico senão quando virdes os vossos filhos aproximarem-se em grande número do celestial banquete que é "sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade". (180)
187. Para que, pois, o povo cristão possa conseguir esses dons sobrenaturais, sempre com maior abundância, instrui-o com zelo por meio de pregações oportunas e, especialmente, com discursos e ciclos de conferências, com semanas de estudo e com outras manifestações semelhantes, a respeito dos tesouros de piedade contidos na sagrada liturgia. Para esse fim estarão certamente à vossa disposição os membros da Ação católica, sempre prontos a colaborar com a hierarquia em promover o reino de Jesus Cristo.
188. É absolutamente necessário, porém, que em tudo isso vigieis atentamente a fim de que, no campo do Senhor, não se introduza o inimigo para semear a cizânia no meio do trigo,(181) para que, em outras palavras, não se infiltrem no vosso rebanho os perniciosos e sutis erros de um falso "misticismo" e de um nocivo "quietismo" – erros por nós já condenados como sabeis(182) – e para que as almas não sejam seduzidas por um perigoso "humanismo", nem se introduza uma falsa doutrina que altera a própria noção da fé, nem, enfim, um excessivo "arqueologismo" em matéria litúrgica. Cuidai com igual diligência por que não se difundam as falsas opiniões daqueles que erradamente crêem e ensinam que a natureza humana de Cristo glorificada esteja realmente e com a sua continua presença nos justificados, ou que uma graça única e idêntica junte Cristo com os membros do seu Corpo.
189. Não vos deixeis desanimar pelas dificuldades que nascem; jamais se desencoraje o vosso zelo pastoral. "Fazei soar a trombeta em Sião, convocai a assembléia, reuni o povo, santificai a Igreja, juntai os velhos, recolhei os meninos e os recém-nascidos" (183) e fazei por todos os meios que se encham em todos os lugares as Igrejas e os altares de cristãos, os quais, como membros vivos unidos à sua Cabeça divina, sejam revigorados pelas graças dos sacramentos, celebrem o augusto sacrifício com ele e por ele e dêem ao Eterno Pai os louvores devidos.
EPÍLOGO
190. Todas essas coisas, veneráveis irmãos, pretendíamos escrever-vos e o fazemos a fim de que os nossos e os vossos filhos compreendam melhor e mais estimem o preciosíssimo tesouro contido na sagrada liturgia – isto é, o sacrifício eucarístico que representa e renova o sacrifício da cruz, os sacramentos, rios de graça e de vida divina, e o hino de louvor que o céu e a terra elevam cada dia a Deus.
191. Seja-nos lícito esperar que estas nossas exortações excitem os tíbios e os recalcitrantes não somente a um estudo mais intenso e iluminado da liturgia, mas ainda a traduzir na prática da vida o seu espírito sobrenatural, como diz o apóstolo: "Não queirais extinguir o Espírito".(184)
192. Àqueles que um zelo excessivo leva muitas vezes a dizer e a fazer coisas que nos pesa não poder aprovar, repetimos a advertência de são Paulo: "Ponde tudo à prova; ficai com o que é bom";(185) e os admoestamos com ânimo paterno a consentirem haurir o seu modo de pensar e de agir da doutrina cristã, conforme os preceitos da imaculada esposa de Jesus Cristo e mãe dos santos.
193. A todos, enfim, lembramos a necessidade de uma generosa e fel obediência aos pastores, aos quais compete o direito e incumbe o dever de regular toda a vida da Igreja, sobretudo a espiritual. "Obedecei aos vossos superiores e sede-lhes dóceis. Eles, com efeito, velam sobre as vossas almas, e disso prestarão contas. Assim poderão fazê-lo com alegria e não gemendo".(186)
194. O Deus que adoramos, e que "não é Deus de discórdia mas de paz"(187), conceda, benigno a todos nós, participar neste exílio terreno, com uma só mente e um só coração, na sagrada liturgia, a qual seja como que preparação e prenúncio daquela celeste liturgia, com a qual, segundo confiamos, em companhia da excelsa Mãe de Deus e dulcíssima mãe nossa, cantaremos: "Àquele que se senta no trono e ao Cordeiro: louvor, honra e gloria por todos os séculos".(188)
Com essa exultante esperança a vós todos e a cada um, veneráveis irmãos e aos rebanhos confiados à vossa vigilância, como penhor dos dons celestes, e atestado da nossa particular benevolência, concedemos com grandíssimo afeto a bênção apostólica.
Dado em Castel Gandolfo, junto de Roma, no dia 20 de novembro do ano de 1947, IX do nosso pontificado.
PIO PP. XII
Notas
1. Tm 2, 5.
2. Cf. Hb 4,14.
3. Cf. Hb 9,14.
4. Cf. Ml 1,11.
5. Cf. Conc. Trid., sess. XXII, c.l.
6. Cf. Ibid., c.2.
7. Carta. Encicl, Caritate Christi de 3 de maio do ano 1932.
8. Cf. Carta. Ap., Motu Proprio In cotidianis precibus do dia 24 de março do ano 1945.
9. 1 Cor 10,17
10. S. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 81, a. 1.
11. Cf. Levítico.
12. Cf. Hb 10,1.
13. Jo 1,14.
14. Hb 10,5-7.
15. Hb 10,10.
16. Jo 1,9.
17. Hb 10,39.
18. Cf. 1 Jo 2, 1.
19. Cf. 1 Tm 3,15.
20. Cf. Bonif. IX, Ab origine mundi, do dia 7 de Outubro do ano 1391; Callist. III, Summus Pontifex, de 1 de janeiro do ano 1456; Pius II, Triumphans Pastor, de 22 de abril de 1459; Innoc. XI, Triumphans Pastor, de 3 de outubro do ano 1678.
21. Ef 2,19-22.
22. Mt 18,20.
23. At 2,42.
24. Cl 3,16.
25. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.
.26. Missal Rom., Prefácio da Nativ.
27. I. Card. Bona, De divina psalmodia, c 19, § 3,1.
28. Missal Rom., Secreta da féria V depois do II Dom. de Quaresma.
29. Cf. Mc 7,6 e Is 29,13.
30. 1 Cor 11, 28.
31. Missal Rom., Féria IV de Cinzas: oração depois da imposição das cinzas.
32. De praedestinatione sanctorum, 31.
33. Cf. s. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 82, a, 1.
34. Cf. 1 Cor 3,23.
35. Hb 10,19-24.
36. Cf. 2 Cor 6,1.
37.Cf. CIC, cân 125,126, 565, 571, 595,1367.
38. Col 3,11.
39. Cf. Gl 4,19.
40. Jo 20,21.
41. Lc 10, 16
42. Mc 16,15-16.
43. Pont. Rom., De ordinatione presbyteri, in manuum unctione.
44. Enchiridion, c. 3.
45. De gratia Dei "Indiculus"; Dz 246.
46. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.
47. Cf. Const. Divini cultus, de 20 de dezembro do ano 1928.
48. Const. Immensa, do dia 22 de janeiro de 1588.
49. Cf. CIC, cân. 253.
50. Cf. CIC, cân.1257.
51. Cf. CIC, cân.1261.
52. Cf. Mt 28,20.
53. Cf. Pio VI, Const. Auctorem fidei, do dia 28 de agosto de 1794, nn. XXXI, XXXIV, XXXIX, LXII, LXVI, LXIX-LXXIV
54. Cf. Jo 21,15-17.
55. At 20,28,
56. Sl 109,4.
57. Jo 13,1.
58. Conc. Trid., Sess. XXII. c, 1.
59. Ibidem, c. 2.
60. Cf. s. Tomás, Summa Theol., III, q. 22, a. 4.
61. João Cris. In Joan. Hom., 86,4.
62. Rm 6,9.
63. Cf . Missal Rom., Prefácio.
64. Cf. Ibidem, Cânon.
65. Mc 14,23.
66. Missal Rom., Prefácio.
67. 1 Jo 2,2 .
68. Missal Rom., Cânon.
69. S. Agostinho, De Trinit., 1. XIII, c.19.
70. Hb 5, 7.
71. Cf. Sess. XXII, c.1.
72. Cf. Hb 10,14.
73. S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16.
74. Gl 2,19-20.
75. Carta. Encicl. Mystici Corporis, do dia 29 de junho de 1943.
76. Missal Rom., Secreta do Dom. IX depois de Pentec.
77. Cf. Sess. XXII. c. 2 e cân. 4.
78. Cf. Gl 6,14.
79. Ml 1,11.
80. Fl 2,5.
81.Gl 2,19.
82. Cf. Conc. Trid. Sess., XXIII, c. 4.
83. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa, II, c 4.
84. De Sacro Altaris Mysterio, III, 6.
85. De Missa, I. cap. 27.
86. Missal Rom., Ordinário da Missa.
87. Ibidem, Cânon da Missa.
88. Missal Rom., Cânon da Missa.
92. Pontif. Rom., De Ordinatione presbyteri.
93. Ibidem, De altaris consecrat., Praefatio.
94. Cf. Conc. Trid. Sess. XXII, c. 5.
95. Gl ,19-20.
96. Cf. Serm. 272.
97. Cf. l Cor 12,27.
98. Cf. Ef 5,30.
99. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa , II, c. 8
100. De Civ. Dei, 1. X. c. 6.
101. Missal Rom., Cânon da Missa.
102. Cf. 1 Tm 2,5.
103. Carta Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 1.
104. Conc. Trid. Sess. XXII, cân. 8.
105. Missal Rom., Coleta da Festa Corp. Christi.
106. 1 Cor 11,24.
107. Sess. XXII, c. 6.
108. Carta. Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 3.
109. Cf. Lc 14,23.
110. Cor 10,17.
111. Cf. S. Inácio. Mártir, Ad. Ephes., 20.
112. Missal Rom., Cânon da Missa.
113. Ef 5,20.
114. Missal Rom., Postcommunio do Domingo da Oitava da Ascensão.
115. Ibidem, Postcommunio do Domingo I depois de Pentec.
116. CIC, cân. 810
117. Lib . IV, cap.l2.
118. Dn 3,57.
119. Cf. Jo 16,23.
120. Missal Rom., Secreta da Missa da SS. Trindade.
121. Jo 15,4.
122. Conc. Trid., Sess. XIII, can. 1.
123. Conc. Constant. II, Anath. de trib. Capit., cân. 9 collat. Con. Efes. Anath. Cyrill, cân. 8. Cf. Conc. Trid. Sess. XIII, cân. 6; Pio VI, Const. Auctorem fidei n. LXI.
124. Cf. Enarr. in, Ps. 98, 9.
125. Ap 5,12; 7,10.
126. Cf. Conc. Trid., Sess., XIII, c. 5 e cân. 6.
127. In ad Cor., XXIV, 4.
128. Cf. 1 Pd 1,19.
129. Mt 11,28.
130. Cf. Missal Rom., Coll. da Missa da Dedic. de uma Igreja.
131. Missal Rom., Seq. Lauda Sion na festa do Corpus Christi.
132. Lc 18, 1.
133. Hb 13,15.
134. Cf. At 2,1-15.
135. At 10,9.
136. At 3,1.
137. At 16,25
138. Rm 8,26.
139. S. Agostinho, Enarr. in Ps. 85, n. 1.
140. S. Bento, Regula Monachorum, c. XIX.
141. Hb 7,25.
142. Explicatio in Psalterium, Prefácio; PL 70,10.
143. S. Ambrósio, Enarrat. in Ps. l, n. 9.
144. Ex 31,15.
145. Confess. I. IX, c. 6.
146. S. Agostinho, De Civ. Dei, 1. VIII, cap.l7.
147. Col 3,1-2.
148. S. Agostinho, Enarr. in Ps.123, 2.
149. Hb 13,8.
150. S. Tomás, Summa Theol. III, q. 49 e q. 62, a. 5.
151. Cf. At 10, 38.
152. Ef 4,13.
153. Missal Rom., Coleta da III Missa pro plur. Martyr. extra T.P
154. S. Beda Vener., Hom. LXX na solenidade de todos os santos.
155. Missal Rom., Coleta da Missa de s. João Damasceno.
156. S. Bernardo, Sereno II in festo omnium Sanct.
157. Luc.1, 28.
158. "Salve Regina".
159. S. Bernardo, In Nativ. B.M.V., 7.
160. Hb 10,22.
161. Hb 10,21.
162. Hb 6, 19
163. Cf. CIC, cân.125.
164. Cf. Jo 14,2.
165. Jo 3,8.
166. Cf. Tg 1,17.
167. Ef 1,4.
168. Cf. Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini; de 22 de nov de 1903.
169. Sl 68,10; Jo 2,17.
170. Congr. S. Oficio: Decretum de 26 de maio de 1937.
171. Cf. Pio X, Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini.
172. Cf. Pio X, loc. cit.; Pio XI, Const. Divini cultus, II, V.
173. Pio XI, Const. Divini cultus, IX.
174. S. Agostinho, Serm. 336, n. 1.
175. Missal Rom., Prefácio.
176. Cf. s. Ambrosio, Hexameron, III, 5, 23.
177. Cf. At 4,32.
178. CIC, can.1178.
179. Pio XI, Const. Divini Cultus.
180. Cf. s. Agostinho, Tract. XXVI in Joan., 13.
181. Cf. Cf. Mt 13,24-25.
182. Carta. Encicl. Mystici Corporis.
183. Jl 2,5-16.
184. 1 Ts 5,19.
185. 1 Ts 5,21.
186. Hb 13,17.
187. 1 Cor 14,33.
188. Ap 5,13.
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