RECEBEMOS UMA MENSAGEM anônima com uma pergunta que consideramos pertinente, a qual reproduzimos abaixo, seguida da nossa resposta que se traduziu numa reflexão mais profunda:
“Eu tenho uma pergunta: porque Deus quer que a gente se humilhe? Eu quero ser feliz , quero uma vida boa, de abundancia, de amor. Quero que todo mundo seja feliz e eu também! Porque sempre dizem que a gente tem que se humilhar diante de Deus? Deus fez a gente para sofrer? Por quê?”
No Santo Evangelho encontramos o modelo da súplica essencial do cristão: “Ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador!” (Lc 18 13). Essas palavras, em certo sentido, podem ser consideradas a marca característica da Religião cristã, em contraste com as diversas outras formas de culto e doutrinas que desde os tempos primitivos se espalharam sobre a Terra.
A súplica do Evangelho segundo S. Lucas é ao mesmo tempo uma confissão do pecado e um pedido por misericórdia. Foi introduzida pelo Cristianismo esta noção bem específica de transgressão e perdão, que não existe fora dele. Ao contrário, os outros símbolos de culpa ou contaminação e os ritos de deprecação e expiação são muito semelhantes em todas as religiões pagãs, e são todos muito diferentes do que prescreve a Igreja. É peculiar à nossa Fé que a confissão do pecado celebre a ideia da mais elevada santidade. Ora, confessar-se pecador é humilhar-se, e humilhar-se nada mais é que reconhecer as próprias incapacidades, insuficiência e finitude diante do Poder, da absoluta Suficiência e da Infinitude de Deus. E reconhecê-lo, ao contrário do que possa parecer às mentes materialistas, que se assustam num primeiro momento, traz paz e serenidade duradouras, já que aceitar a Verdade é sempre um gesto de verdadeira libertação.
Vivemos hoje uma era individualista, consumista e hedonista, de homens e mulheres soberbos, extremamente orgulhosos. Em nossos tempos é praticamente inadmissível pensar em humilhação como algo positivo, uma coisa edificante para a alma. É desconcertante para o homem contemporâneo ouvir dizer que deve humilhar-se por qualquer motivo, mesmo se for para alcançar uma realização maior. Essa é uma das principais razões pelas quais a busca pela Verdade vem sendo deixada de lado em nome do pecaminoso respeito humano.
Nosso apostolado recebe frequentes mensagens dizendo que não deveríamos comentar sobre outras religiões, nem mesmo com fins de esclarecimento, porque toda religião levaria no fim a Deus, sendo importante apenas “o amor” e/ou que cada um “seja feliz” do jeito que achar melhor. E diga-se de passagem que fica muito mas difícil explicar que essa concepção está completamente em desacordo com a Igreja e o Evangelho nestes tempos malucos, em que o próprio Papa tantas vezes parece ensinar esse erro fundamental. "Vocês querem ser mais católicos do que o Papa?", dizem alguns, com ironia. Não. Só queremos ser católicos, conforme ensinara a Doutrina Católica, fundamentada no sagrado tripé Escritura, Tradição e Magistério (no conjunto de ensinamentos perenes de todos os Papas, jamais descartando tudo o que foi ensinado em dois mil anos de história para ficar com uma ao algumas citações infelizes de um Papa em específico).
De fato, muitos nos consideram rudes ou radicais quando simplesmente apresentamos a Doutrina da Igreja, porque afinal de contas não somos os donos da verdade e precisamos “respeitar” a opção religiosa de cada um. Na visão de tais pessoas, “respeitar” seria o mesmo que aceitar tudo, fingir que “é tudo a mesma coisa” e que a nossa Fé não passa de apenas mais uma proposta entre muitas outras, sem nenhuma distinção realmente essencial. Escolher uma ou outra religião para seguir, então, seria uma opção meramente subjetiva, assim como é o ato de escolher o time de futebol para o qual se vai torcer ou a cor da roupa que se vai vestir.
Esquecem-se de que somos um apostolado cristão católico e que para nós, católicos, a Verdade existe objetivamente e deve ser proclamada "do alto dos telhados” (Mt 10, 27b). Para alguns, entretanto, a preocupação em não melindrar as convicções do outro (mesmo aquelas flagrantemente equivocadas) deveria ter prioridade sobre a missão que nos foi confiada por Cristo, de proclamar o Evangelho a toda criatura (Mt 16,15).
Claro e evidente que não pretendemos "obrigar" ninguém a crer no que cremos, nem converter quem quer que seja "na marra". Deus mesmo, em primeiro lugar, concede a cada um o direito de escolher o caminho a seguir. Nosso objetivo é simplesmente "apresentar as razões da nossa esperança" (1Pd 3, 15) e a Fé dos cristãos como ela é, tendo claro que a adesão é uma opção que cabe a cada um. Ainda assim, hoje muitos entendem que procurar fazer isto já é um ato de "desrespeito”, um "radicalismo” e/ou uma demonstração de "intolerância” de nossa parte.
Cristo lava os pés aos discípulos, por Tintoretto (1518-1594)
O que o orgulho não pode admitir
Nestes nossos dias "politicamente corretos”, alguém dizer que gosta do azul já é dar motivo para aqueles que preferem o amarelo se sentirem "ofendidos”. A principal razão desse curioso fenômeno social está no pecado da soberba ou orgulho, que impera nas almas. O homem têm se visto como muito importante, muito nobre, grandioso, majestático. Sua vontade e seus caprichos são agora soberanos, postos em primeiro lugar, e isso vem se refletindo até no sentimento religioso: as novas seitas ditas “cristãs”, com a sua "'teologia' da prosperidade" colocam o homem no centro e Deus como seu servidor. Um conhecido “bispo (sic) evangélico” diz abertamente, em suas pregações, que Deus “é obrigado” a atender os pedidos dos “justificados” (se alguém duvida, a sua própria igreja-empresa posta vídeos com este conteúdo no Youtube).
Por outro lado, no rol dos sete pecados capitais (saiba mais), o mais grave dos mais graves pecados é exatamente o da soberba ou orgulho, afinal é nesta categoria que se enquadra o próprio Pecado Original.
• Adão e Eva aceitaram o fruto proibido – querendo igualar-se a Deus – pela tentação do orgulho;
• O orgulho foi capaz de transformar um gloriosíssimo anjo de luz no príncipe das trevas e o incitador dos demônios que incessantemente nos tentam e procuram nos arrastar para o Inferno;
• O orgulho é o pior de todos os pecados porque é um vício que pode se confundir com grandes virtudes: pode ser confundido com honra, brio, virilidade, "personalidade forte", senso de dignidade... E quanto melhor um pecado se disfarça, pior o estrago que pode provocar;
• É o orgulho o pior de todos os pecados, porque nos impede de cumprir o maior dos Mandamentos: não pode amar a Deus acima de todas as coisas quem ocupa todo o seu tempo em se amar a si mesmo e tem como prioridade máxima satisfazer os próprios desejos; também não pode amar o próximo como a si mesmo quem vê o outro como adversário ou concorrente, com o qual compete incessantemente para alcançar admiração, glórias ou riquezas.
O grande G. K. Chesterton disse: “Se eu tivesse apenas um sermão para pregar, seria um sermão contra a soberba”. Os maiores e mais exemplares heróis da Fé foram únicos justamente porque sempre valorizaram, em seus corações, a memória constante de que por si mesmos eles eram, podiam e mereciam nada; que não passavam de transgressores resgatados pela Misericórdia divina. Aquilo que para os Santos do Céu é razão de gratidão sem fim, também é, para os Santos que estão no mundo, o motivo da sua constante humilhação. Qualquer que seja o seu avanço na vida espiritual, nunca deixam de se ajoelhar e de bater no peito, dizendo: "Senhor, tende piedade de mim, que sou pecador!".
Mesmo o Cristo, o próprio Filho de Deus, quando na natureza humana, ainda que justo e totalmente separado de qualquer pecado – mesmo Ele(!) –, ao herdar a carne de Adão submeteu-se no fim à morte, à punição direta e categórica do Pecado (a qual assumiu por nós e por nossa salvação).
Igualmente, nem o mais favorecido dentre os Santos de Deus jamais se esquece de que nasceu filho de Adão. Ainda que nos voltemos para eles, eles sempre se voltam para Deus, porque não têm poder em si mesmos; E ainda que roguemos pelos favores da própria Mãe santíssima de Deus, sabemos que nem mesmo a Rainha dos Santos, concebida sem Pecado, por si mesma não poderia nos atender; é diante de Deus que também ela intercede em nosso favor e obtém abundantes graças. E mesmo ela, quando na Terra, humilhou-se diante de Deus: "Meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua [pobre] serva" (Lc 1,48). Ela não diz: "Sou a Mãe do próprio Deus, sou grande, sou Rainha, sou poderosa..."; poderia fazê-lo, se quisesse, mas nunca o fez. E se tal fosse sua personalidade, para que assim se portasse, não seria ela a grande Eleita do Céu desde a eternidade.
Nós, fiéis católicos, lembramos e enaltecemos os méritos dos Santos, mas basta estudar as suas biografias para notar que eles mesmos só falaram dos seus defeitos e enalteceram o Poder, a Graça e a Glória divinas. Assim foi Santa Rosa de Viterbo, que, ainda criança, apresentou seu corpo frágil às penitências mais surpreendentes; assim foi São Filipe Neri que, quando alguém o elogiava, gritava: "Vai-te embora, eu sou um diabo e não um Santo!"...
Essa humildade absoluta é o distintivo e o símbolo do soldado de Cristo; se virmos algum pretenso "cristão" julgando-se muito digno, justo e importante, desconfiemos dele. Tal fato é transmitido nas próprias palavras do Senhor, quando diz: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Lc 5,32); é solenemente reconhecido e inculcado por Ele ao decretar: “Todo aquele que se exaltar será humilhado, e todo aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23,12).
O fariseu orgulhoso do Evangelho segundo S. Lucas, na mesma passagem que contém a súplica que apresentamos no começo (Lc 18,10ss), olhava para si mesmo com grande complacência, sentindo-se muito nobre, digno e honrado. Ele acreditava que seus deveres para com Deus eram muito simples e lineares – nada mais que uma coleção de normas e proibições a se observar –, de alcance bastante limitado. Ele fez mau uso das tradições nas quais fora criado, no propósito de convencer-se de que a perfeição consiste apenas em responder às demandas da sociedade. Pensou que fazia tudo o que Deus exige ao satisfazer a opinião pública. Ser "religioso" no sentido farisaico era manter a paz com os outros, tomar a sua parte nos encargos dos pobres, abster-se de vícios vulgares e dar bom exemplo público. Suas esmolas e jejuns não eram feitos em espírito de caridade e santidade, com penitência e humilhação de si mesmo, e sim porque o seu mundo o exigia; mas a penitência implica a consciência do pecado, mas para o fariseu eram culpados apenas os publicanos, e somente estes precisavam ser perdoados. Não havia nada contra homens justos, dignos e equilibrados como ele, que achava que merecia ser honrado por Deus (como ensina o tal empresário chamado de 'bispo' já citado), e que não precisaria nem deveria se humilhar. Por isso agradeceu a Deus por ser um nobre fariseu e não um publicano penitente que se humilha. Mas Nosso Senhor diz que foi o penitente quem voltou para casa justificado, e não o fariseu.
Também os adeptos das seitas ditas "esotéricas" de hoje se comportam de modo semelhante. Eles não fazem penitência nem se humilham; na verdade jogaram sobre as observâncias do antigo farisaísmo uma roupagem "filosófica", embelezando-as com os requintes de um intelecto cultivado, mas a sua noção de dever moral e religioso ainda se mantém tão superficial quanto a do fariseu orgulhoso. O sentido do pecado, o hábito da auto-humilhação e o desejo de contrição são totalmente ausentes. Estruturaram um código de moral ao qual poderiam obedecer sem grandes dificuldades, para que pudessem se sentir satisfeitos e orgulhosos de si mesmos. Humilhar-se? Absurdo!
Já o cristão sabe que não tem do que se orgulhar quando olha para si. São Pedro, primeiro Papa, quando teve um vislumbre da grandeza e divindade de seu Mestre, gritou, quase fora de si: “Retira-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador!” (Lc 5,8). Foi a mesma sensação de Jó, chamado justo, mas que, embora tivesse servido a Deus por muitos anos e fosse aperfeiçoado na virtude, disse ao Todo-Poderoso: “Meus ouvidos tinham escutado falar de Vós, mas agora meus olhos vos viram. Por isso me arrependo e humilho-me no pó e na cinza!” (Jó 42, 5-6). Assim foi com Isaías, quando teve a visão do Serafim e disse: “Ai de mim! Estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, habito com um povo de lábios impuros e, entretanto, meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6, 5).
Poderíamos citar inúmeros outros exemplos – o ladrão na cruz, Santa Madalena aos pés de Cristo, São Paulo Apóstolo antes do seu martírio... Não é que um não possa ter algo que outro não tem; é que todos nada têm além do que é dado por Deus, e somos todos como nada diante dEle, que é tudo em todos.
Que jamais sejamos levados, por quaisquer afeições humanas, a caminhos que nos permitam conquistas, realizações, honras e vitórias que nos façam esquecer que a nossa verdadeira sabedoria, nobreza e força consistem no conhecimento de Deus, Fonte de todos os bens e Autor da própria Vida. A natureza e o homem são objetos dos nossos estudos, mas Deus é maior que tudo. O dinheiro, os cargos e posições humanas nos são necessários para muitas coisas, inclusive, às vezes, para fazer o bem; mas é fácil nos perdermos em nossas fúteis glórias. É fácil, até mesmo, tornarmo-nos super apegados à nossa própria busca por Deus e santidade, e assim substituirmos por essas coisas a verdadeira Religião, fazendo de nossas práticas supostamente espirituais o combustível do nosso orgulho.
Nossas realizações não nos valerão de nada se não se subordinarem à verdadeira Religião. O conhecimento do Sol, da Lua e das estrelas, das ciências e das artes, dos saberes clássicos ou da História, nada disso nos salvará. E se estudamos muito e nos tornamos sábios, poderemos dar “graças a Deus” porque não somos como os analfabetos e os ignorantes, como fez o fariseu da parábola? Aqueles a quem nesse caso desprezássemos, se tudo o que souberem for pedir a misericórdia de Deus, então saberão tanto ou mais do que nós sobre a ciência mais importante: a que se deve saber para obter o Céu, onde – então sim –, contemplando Deus face a Face seremos e saberemos infinitamente mais do aquilo que todas as nossas letras e toda a nossa ciência poderiam nos dar.
Digamos então, honestamente, junto com o Apóstolo: “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais sou eu o primeiro” (1Tm 1,15). Humilhemo-nos, isto é, reconheçamos a nossa insignificância diante do Poder de Deus, e assim seremos exaltados, porque quem procura os primeiros assentos poderá ser convidado a se levantar e ocupar um lugar mais atrás, mas quem se assentar humildemente entre os últimos lugares poderá ser convidado a vir para a frente, no grande Banquete do Céu (Lc 14, 7-12).
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Ref.:
NEWMAN, John Henry. Sermons Preached on Various Occasions, cap. 2: The Religion of the Pharisee, the Religion of Mankind. London: Longmans Green and Co., 1908.
www.ofielcatolico.com.br
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