Tomás de Aquino é indubitavelmente o máximo teólogo da Igreja. Como teólogo foi sempre considerado, e por isso recebeu os títulos de Doutor Angélico, Doutor Comum, Doutor Universal. Embora a sua eminência teológica, esta não ofusca a sua excelência filosófica. Muitas vezes a ímpar sabedoria filosófica do Aquinense é esquecida, citado que é em geral como teólogo. A sua original e superior grandeza filosófica é, por vezes, desconhecida. As XXIV Teses Tomistas foram consignadas justamente para revelarem os postulados da autêntica filosofia de S. Tomás. Há realmente uma original e verdadeira filosofia de S. Tomás – o Tomismo, e não será legítimo denominá-la “filosofia aristotélico-tomista”. É inegável, como afirmam Maritain e Gilson, que a filosofia ensinada por S. Tomás lhe é própria[1]. Não se pode deixar de reconhecer que S. Tomás seguiu as trilhas de Aristóteles, mas ele reformulou de tal modo os ensinamentos do Estagirita, que arquitetou uma outra filosofia.
Basta considerar como revolveu a filosofia peripatética, introduzindo nela os conceitos de criação das coisas por Deus, da temporalidade da matéria-prima, do próprio ser, levando a suas últimas conseqüências aquilo que o Filósofo apenas esboçara. Aliás, nenhum filósofo deixa de se fundamentar em outro filósofo ou em outros, ao apresentar as suas próprias aquisições. Isto, no entanto, não lhe retira o título de criador ou iniciador de outra filosofia. Ninguém denomina a filosofia de Aristóteles “filosofia platônico-aristotélica”.
Qual a nota fundamental da filosofia de S. Tomás ? É ser ela “realista”. Parte o Tomismo da realidade das coisas, não de idéias imaginadas pelo filósofo que delas conclui todo um sistema coordenado de teses. Origina-se o Tomismo da percepção sensível do mundo, para, após, dela tirar, no plano abstrativo da inteligência, todo um conjunto conseqüente e harmonioso de teses. Bem define a filosofia de S. Tomás o Pontífice Leão XIII, quando escreve na genial Encíclica Aeterni Patris: “O Doutor Angélico buscou as conclusões filosóficas nas razões principais das coisas, que têm grandíssima extensão e conservam em seu seio o germe de quase infinitas verdades, para serem desenvolvidas em tempo oportuno e com abundantíssimo fruto pelos mestres dos tempos posteriores”.[2]
“As razões principais das coisas”, eis o ponto de partida do Tomismo. Das coisas existentes, apreendidas pelos sentidos, conceituadas, após, pela inteligência, sobe S. Tomás até as explicações últimas das mesmas. E é subindo das percepções mais primitivas das coisas que S. Tomás chega à certeza do supremo Criador delas. Vindo das mudanças das coisas, da causalidade existente entre elas, da contingência, das perfeições, e da ordem harmoniosa das mesmas, pelo caminho das cinco vias, é que o Angélico atinge a sublimidade, a suma perfeição, o ato puro, de Deus. Conhece assim a última explicação das coisas que está em Deus. Por isso o realismo tomista é a filosofia do ser e a filosofia da verdade. A verdade é a obsessão de S. Tomás, justamente porque a verdade é a correspondência da mente com as coisas. Em primeiro lugar, as coisas; depois, a mente. Em primeiro lugar, o objeto; depois, o sujeito. Do conúbio sujeito-objeto nasce a harmoniosa construção tomista. Repugna-lhe toda doutrina subjetivista. O realismo tomista tem os pés no chão. Foge dos devaneios, por vezes atraentes, das filosofias que partem da negação da “coisa espiritual” e reduzem as coisas ao mundo corpóreo. Evidentemente, como não pode haver concordância do Tomismo com tais filosofias, não pode haver também concordância com o materialismo.
Embora o Tomismo puro negue todas essas filosofias, contudo, havendo nelas algum elemento de verdade, assume-o S. Tomás. O Tomismo, por isso, é eminentemente crítico. A verdade é de todos, e o Angélico escreve que “toda verdade, dita por quem quer que seja , vem do Espírito Santo “, e diante das diversas opiniões dos filósofos: “não olhes por quem são ditas, mas o que dizem “. O critério supremo do Tomismo é a verdade imparcialmente aceita e proposta. Escreve S. Tomás: “O estudo da filosofia não é para se saber o que os homens pensaram, mas para que se manifeste a verdade” (De Coelo et Mundo, I,22). Naturalmente decorre da filosofia da verdade ser ela “a filosofia do ser”. O ato de ser é o fundamento primeiro das coisas e a última determinação da perfeição das mesmas. A noção do ser é a primeira que afeta a nossa inteligência, e perpassa todos os nossos conhecimentos. O ser é a própria natureza de Deus, isto é, sabemos certa e logicamente que Deus é. Todavia, conhecêmo-lo por analogia, não de modo unívoco. Se o Tomismo admite entes de razão, cuja realidade objetiva está tão somente na inteligência, os seres de razão nada mais são que idéias formuladas pela razão, para que melhor se atinja a realidade existencial das coisas. Somente em Deus o ser atinge a sua suprema perfeição. Deus une todas as perfeições na infinitude de um ser que vem de si mesmo e que desconhece mudanças e sucessão. Deus é o ser de ato puro destituído de qualquer imperfeição ou potência – a perfeita posse e simultânea de todas as perfeições: é o ser eterno (Boécio).
O Papa Paulo VI com felicidade descreve a filosofia tomista como abrangendo o Ser “quanto no seu valor universal, quanto nas suas condições essenciais”. Ao que João Paulo II acrescenta em belos termos que “esta filosofia poderia ser chamada filosofia da proclamação do ser, o canto em honra daquilo que existe”.
O respeito tributado por S. Tomás a todos os filósofos externa-se nestas palavras, porque contribuem para que a verdade resplandeça: “Os homens mutuamente se auxiliam para a consideração da verdade. De duas maneiras: um auxilia o outro nesta consideração: direta ou indiretamente. Diretamente, são auxiliados por aqueles que encontraram a verdade, porque, como foi dito acima, enquanto cada um dos que a encontraram, as introduz num só contexto que introduz os pósteros em grande conhecimento da verdade. Indiretamente, enquanto os anteriores, errando a respeito da verdade, deram aos posteriores ocasião de se exercitarem, para que, havida por sua diligente discussão, a verdade apareça com clareza” ( In II Met. 1, n° 289 ).
A filosofia do ser e da verdade, a tomista será também a filosofia de Cristo e, por isso, a filosofia da Igreja. Por que a “filosofia de Cristo”? Evidentemente Cristo não se manifestou como filósofo, nem formulou um sistema filosófico. A imagem que nos deixou de si não foi a de um filósofo, mas de um líder religioso. O seu linguajar nada possuía da terminologia de um filósofo. Não se afastou da linguagem popular. Não obstante, a sua mensagem religiosa contém implicitamente a filosofia do senso comum, da afirmação existencial das coisas, do princípio de contradição, dos princípios de causalidade e finalidade. Nela não se encontra o subjetivismo cartesiano, o criticismo kantiano, nem o idealismo hegeliano, nem o existencialismo sartriano e heideggeriano etc. Seria até ridículo tal mensagem da afirmação daquilo que vemos e tocamos não corresponder à realidade objetiva das coisas.
Em profundas e relevantes explanações, o filósofo e teólogo Claude Tresmontant desvenda-nos, na Bíblia, uma implícita e subjacente filosofia metafísica e moral, que constitui o núcleo central do pensamento israelita. Cristo naturalmente não se afastou do pensamento do seu povo. Lê-se num dos magistrais livros de Tresmontant: “O cristianismo comporta – é isto que este trabalho quer pôr em luz – certas implicações e certas teses, uma certa estrutura metafísica que não são quaisquer. Quero dizer que as questões admiravelmente reconhecidas como derivadas do domínio metafísico, relativas ao ser criado e ao ser incriado, ao uno e ao múltiplo, o futuro, a temporalidade, o material e o sensível, a alma e o corpo, o conhecimento, a liberdade, o mal, etc. – o cristianismo acrescenta algumas respostas que lhe são próprias (ainda que comuns com o judaísmo), originais e que o definem, o constituem no plano metafísico. A doutrina cristã do Absoluto deriva por uma parte, e sob certo ângulo da metafísica… Por que a doutrina cristã do Absoluto não entrará com o mesmo titulo que as outras na história das filosofias humanas?(..) A Escritura Sagrada, a teologia bíblica, a teologia cristã contêm na verdade um número de doutrinas, de teses, que por direito decorrem da razão natural. Existe uma filosofia natural no interior da Revelação “.[3]
Tal filosofia natural contida nas Escrituras, peculiar à cultura israelita, é a filosofia de Cristo e conseqüentemente, a de S. Tomás. Confirma-o o Papa Bento XV com estas palavras: “Aprovamos e fazemos nosso tudo que disseram Leão XIII e Pio X sobre a necessidade de seguir a doutrina de S. Tomás. Nem os nossos Predecessores nem nós temos que nos esforçar para recomendar e ordenar outra filosofia, senão a que é segundo Cristo, e por isso exigimos que nossos estudos filosóficos se façam em completo acordo com o método e os princípios da filosofia de S. Tomás, porque nenhuma outra serve para expor, defender vitoriosamente a verdade revelada “‘.[4]
Sendo o Tomismo a filosofia de Cristo, não pode deixar de ser senão a filosofia da Igreja, do Corpo Místico de Cristo. Conseqüentemente nada mais concorde com a autenticidade católica que a adoção da filosofia de S. Tomás. E também evidencia-se como gritante aberração um católico menosprezar, ou desejar conciliar, o Tomismo com o subjetivismo cartesiano, com o criticismo kantiano, com o idealismo hegeliano, etc.
O Tomismo é a filosofia da Igreja, a preferida entre as demais pela Igreja. Contudo, já que “preferência não é exclusividade”, ela permite que um católico siga outra filosofia[5]. Mas outra filosofia que defenda “o genuíno valor do conhecimento humano, os indestrutíveis princípios da metafísica – a saber, de razão suficiente, de causalidade, de finalidade, e que propugna a capacidade de a inteligência atingir a verdade certa e imutável”[6]. Continua o Papa Pio XII, no Documento citado: “Nenhum católico pode pôr em dúvida quanto tudo isso é falso (isto é, a contradição das verdades acima), especialmente tratando-se de sistemas como o imanetismo, o idealismo, o materialismo, seja o histórico ou o dialético, ou ainda como o existencialismo quando professa o ateísmo, ou quando nega o valor do raciocínio no campo da metafísica”.
Três Papas declaram que “A Igreja fez sua a doutrina de S. Tomás”[7].
Concluamos esta longa introdução esclarecendo que S. Tomás não elaborou sozinho a sua filosofia, não a tirou apenas da sua genial inteligência, mas recebeu contribuição dos helênicos Platão e Aristóteles, dos israelitas Avicebron e Maimônides, dos árabes Avicena e Averróis[8], dos Padres da Igreja, sobretudo de Santo Agostinho, da metafísica implícita na Revelação, e com o seu agudíssimo espírito crítico uniu a herança recebida daqueles predecessores às suas contribuições pessoais, e formulou o seu admirável Realismo metafísico que nos legou. A essência deste Realismo está condensada nas XXIV Teses Tomistas.
Pode ainda surgir a pergunta, por terem sido As XXIV Teses formuladas pela Igreja e por ela propostas, se a uma pessoa que confesse outro credo religioso que o católico, lhe serão aceitáveis as XXIV Teses de S. Tomás de Aquino. Evidentemente teremos uma resposta positiva, porque essas teses limitam-se ao campo da filosofia formulada pela razão natural. Ademais, as que se referem à temporalidade do mundo, à imortalidade de alma, á dualidade corpo e alma, à doutrina da criação, embora sejam afirmadas na Revelação, poderão ser descobertas pela própria razão natural. Elas se limitam, como foi afirmado acima, às filosofias que prescindem como tais da teologia e das verdades religiosas, dos mistérios e dogmas da fé.
D. Odilão Moura O.S.B.
[1] Escreve a respeito desta afirmação o filósofo Jacques Maritain: “É um enorme erro – Gilson tem razão quando insiste nisso – dizer-se, como repetem muitos professores, que a filosofia de S. Tomás é a filosofia de Aristóteles. A filosofia de S. Tomás é a de S. Tomás. E seria também grande erro dizer que S. Tomás não deve à filosofia de Aristóteles sua filosofia. S. Tomás não se deteve no ente, foi direto ao ato de ser”. (Maritain. Jacques. O Camponês de Carona – Trad. União Gráfica. Lisboa, p. 164).
Este aspecto da conceituação tomista do ser foi com grande precisão formulado pelo filósofo e bispo argentino D. Derisi. (Cf. Derisi. O.D. Santo Tomas de Aquino y La Filosofia Actual. Ed. Universal. Buenos Ayres, 1975, p. 289.
[2] Leão XIII. Enc. Aeterni Patris (04/08/1879) n° 22 – cf. infra Apêndice I.
[3] Tresmontant. Claude. La Métaphysique du Christianisme et la Naissance de La Philosophie Chrètienne. Ed. du Seuil. Paris, 1961. p.14-15. A mesma doutrina, desenvolvida nas obras deste autor: La Doctrine des Prophetes d’Israel (Ed. du Seuil. Paris, 1958); La Metaphvsique Biblique. (Ed. Gabalda. Paris, 1951).
[4] Bento XV. Discurso na Academia Romana. São Tomás de Aquino, aos 31.12.14.
[5] Cf. Paulo VI. Alocução no VI Congresso Tomista Internacional, 1966
[6] Pio XII. Enc. Humani Generis (16.06.1950) – cf. infra – Apéndice II.
[7] Cf. Pio XI. Enc. Studiorum Ducem (29.06.1923); Bento XV. Enc. Fausto Appetente (28.08.21); Cf. João XXIII. Alocução (16.09.60).
[8] 11- Cf. Silva. Pe. Emilio. “Influencia da Filosofia Arabe na Sintese Tomista”. In: Hora Presente, n° 16, set., 1974, p. 219ss.
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