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O Nascimento de Jesus em Belém




AS PRIMEIRAS TESTEMUNHAS do grande Acontecimento são pastores que estão em vigília. Muito se refletiu sobre o significado que possa ter o fato de os primeiros a receber a Mensagem terem sido precisamente pastores. Parece-me que não seja necessária demasiada perspicácia para superar tal questão: Jesus nasceu fora da cidade, num ambiente circundado por todos os lados de pastagens, para onde os pastores traziam seus rebanhos. Por isso, era normal que os primeiros chamados para ver o Menino na manjedoura fossem os pastores que estavam mais perto do Acontecimento.

Naturalmente, pode-se desenvolver reflexões diversas a respeito: talvez os pastores vivessem não só externamente, mas também interiormente, mais perto do Acontecimento do que os habitantes da cidade, que dormiam tranquilos. Também intimamente não estavam longe daquele Deus que se fez Menino. Coincide com isso o fato de pertencerem aos pobres, às almas simples, pelas quais Jesus havia de bendizer o Pai, porque é sobretudo a elas que está reservado o acesso ao Mistério de Deus (cf. Lc 10,21-22). Os pastores representam os pobres de Israel, os pobres em geral: os destinatários privilegiados do Amor de Deus.

Um novo realce foi aduzido mais tarde, principalmente pela tradição monástica: os monges eram pessoas que velavam. Queriam permanecer acordados neste mundo, o que pode ser visto como analogia à necessidade que todo cristão tem de estar interiormente vigilante, ser sensível à chamada de Deus através dos sinais de sua Presença.



Pode-se pensar na narrativa da escolha de Davi como rei. Deus rejeitara Saul; Samuel foi enviado a Belém para ter com José, para ungir como rei um de seus filhos que o SENHOR lhe havia de indicar. Dois filhos que se apresentam diante dele; nenhum é o escolhido. Falta ainda o mais novo, mas está apascentando o rebanho, explica Jessé ao profeta. Samuel manda-o chamar da pastagem e, por indicação de Deus, unge o jovem Davi "na presença dos seus irmãos" (cf. 1Sm 16,1-13). Davi vem do meio das ovelhas que apascenta, e é constituído pastor de Israel (cf. 2Sm 5,2). O profeta Miqueias fixa o olhar num futuro distante e anuncia que de Belém sairia aqu'Ele que haveria de apascentar um dia o povo de Israel (cf.Mq 5,1-2; Mt 2,6). Jesus nasceu entre os pastores; Ele é o grande Pastor dos homens (cf. 1Pd 2,25; Hb 13,20).

Voltemos ao texto da narração do Natal. O Anjo do Senhor aparece aos pastores e a Glória do SENHOR envolve-os de Luz. "E ficaram tomados de grande temor" (Lc 2,9). Mas o Anjo dissipa o medo neles e anuncia-lhes "uma grande alegria, que será para todo o povo: nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi" (Lc 2,10-11). Como sinal, é-lhes dito que haviam de encontrar um Menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura.

"De repente, juntou-se ao Anjo uma multidão do Exército Celeste, a louvar a Deus e dizendo: 'Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens que Ele ama' (Lc 1,12-14). O evangelista afirma que os anjos "dizem", isto é falam. Mas, desde o início, para os cristãos era claro que esse falar dos anjos é um cântico, no qual todo o esplendor da grande Alegria por eles anunciada se torna sensivelmente presente. E assim, a partir daquele momento, nunca mais cessou o cântico de louvor dos anjos; continua, através dos séculos, com formas sempre novas e, na celebração do Natal de Jesus, ressoa sempre de novo. Bem compreensível é que o povo simples dos crentes tenha depois ouvido cantar também os pastores e, na Noite Santa, se junte às suas melodias, desde então até o fim dos tempos, exprimindo a todos com o canto da grande Alegria.

Mas, segundo a narração de S. Lucas, o que é que cantaram os anjos? Eles unem a Glória de Deus nas alturas com a paz dos homens na Terra. A Igreja retomou essas palavras e, com elas, compôs um hino inteiro. Nos detalhes, porém, é controversa a tradução das palavras do Anjo.

O texto em latim, que nos é familiar, até há pouco era traduzido assim: "Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade"; mas essa tradução é rejeitada pelos exegetas modernos, – e com boas razões, – enquanto unilateralmente moralizante. A Glória de Deus não é algo que os homens possam produzir. A Glória de Deus existe; Deus é glorioso e isto é verdadeiramente um motivo de alegria: existe a verdade, existe o bem, existe a beleza. Estas realidades existem, – em Deus, – de forma indestrutível.

Mais relevante é a diferença na tradução da segunda parte das palavras do Anjo. Aquilo que há pouco tempo era traduzido por "homens de boa vontade", exprime-se agora, na tradução da Conferência Episcopal Alemã, pelas palavras "Menschen seiner Gnade", – "homens da sua Graça". – Na tradução da Conferência Episcopal Italiana, fala-se de "homens que Ele ama". Isto, porém, leva-nos a pôr a questão: Quais são os homens da Graça de Deus? Quais são os que Deus ama? Para a compreensão deste problema, encontramos ajuda no Novo Testamento: na narração do Batismo de Jesus, Lucas conta que, enquanto o Senhor estava em oração, o céu se abriu e veio uma Voz que dizia: "Tu és o meu Filho amado; em Ti pus todo o meu agrado" (Lc 3,22). O homem do agrado de Deus é Jesus , porque vive totalmente voltado para o Pai; vive com os olhos fixos n'Ele e em Comunhão de vontade com Ele. Portanto, as pessoas do agrado de Deus são aquelas que têm o comportamento do Filho; são as pessoas configuradas com Cristo.

Por trás das diferença entre as traduções está, em última análise, a questão sobre a relação entre a Graça de Deus e a liberdade humana. Aqui são possíveis duas posições extremas: num extremo temos a ideia da exclusividade absoluta da ação de Deus, de modo que tudo depende da sua predestinação. No outro extremo, entretanto, aparece uma posição moralizante, segundo a qual, no final das contas, tudo é decidido por meio da boa vontade do homem. A tradução anterior, que falava dos homens "de boa vontade", podia ser mal interpretada.

Todo o testemunho das Sagradas Escrituras não deixa nenhuma dúvida sobre o fato de que nem uma nem outra dessas posições extremas é correta. Graça e liberdade compenetram-se mutuamente, e não podemos encontrar fórmulas claras para exprimir o seu operar uma na outra. A verdade é que não poderíamos amar se primeiro não fôssemos amados por Deus; a Graça de Deus sempre nos precede, abraça e sustenta. Mas é verdade também que o homem é chamado a tomar parte nesse Amor; ele não é um simples instrumento, sem vontade própria, da onipotência de Deus; pode amar em comunhão com o Amor de Deus, como pode também recusar esse Amor. Parece que a tradução literal "do agrado", – seja a que melhor respeita esse mistério, sem o dissolver unilateralmente.

Outro aspecto da mensagem do Anjo: nesta aparecem as categorias de fundo que caracterizam a visão do mundo e a compreensão de si mesmo que tinha o imperador Augusto: sõter (salvador), paz, ecumene, – aqui naturalmente alargadas para além do mediterrâneo e referidas ao Céu e à Terra, – como também a palavra sobre a Boa Nova (Evangélion). Esses paralelismos certamente não são casuais; Lucas quer nos dizer o seguinte: aquilo que o imperador Augusto pretendeu para si realiza-se de modo mais sublime no Menino que nasceu indefeso e sem poder na gruta de Belém e cujos hóspedes foram pobres pastores. A Paz de Jesus é uma Paz que o mundo não pode dar (cf Jo 14,27). Em última análise, a questão aqui é saber o que se entende por redenção, libertação e salvação. Valores temporais e mundanos, que se aplicam unicamente à efêmera existência terrestre? Ou valores inestimáveis por se aplicarem à vida eterna em Deus? Uma coisa é óbvia: Augusto pertence ao passado, enquanto Jesus Cristo é o presente, que consuma e sublima o passado, e o futuro: "é o mesmo ontem, hoje e eternamente" (Hb 13,8).


"Quando os anjos os deixaram (...), os pastores disseram entre si: 'Vamos já a Belém e vejamos o que aconteceu, o que o SENHOR nos deu a conhecer!'. Foram então às pressas e encontraram Maria, José e o Recém-Nascido deitado na manjedoura" (Lc 2,15-16). Os pastores foram apressadamente. De forma análoga, o evangelista narrara que Maria, depois da alusão do Anjo à gravidez de sua parenta Isabel, dirigiu-se "apressadamente" para a cidade de Judá, onde viviam Zacarias e Isabel (cf. Lc 1,39). Os pastores foram apressadamente, com certeza movidos pela curiosidade humana, ou seja, para ver o Prodígio que lhes fora anunciado, mas seguramente sentiam-se também cheios de ardor devido à alegria gerada neles pelo fato de agora ter nascido verdadeiramente o Salvador, o Messias, o Senhor, de quem tudo estava à espera, e eles seriam os primeiros a poderem vê-lo. 

Quantos cristãos se apressam hoje, quando se trata das coisas de Deus? E, no entanto, se há algo que mereça pressa, – talvez o evangelista nos queira dizer tacitamente isto mesmo, – são precisamente as coisas de Deus!

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Fonte:
RATZINGER, Joseph. A Infância de Jesus, 3ª ed. São Paulo: Planeta, 2013 pp. 63-69

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