Frei Almir Guimaraes
1. O tema da fraternidade, do
fraternismo, simplesmente da vida fraterna parece gasto. Por vezes, a leitura
de páginas sobre o tema chegam a nos irritar. São moralizantes, tacanhas e
estreitas. Não se trata de estarmos como que roçando uns nos outros, o tempo
todo, mecanicamente, infantilmente. A fraternidade não se resume a encontros
mais ou menos formais e quentes numa sala de convivência ou mesmo em momentos
da oração. Não se trata de minimizar e desvalorizar tais encontros. Eles são
instrumentos de afervoramento da vida fraterna, sacramentos de alguma coisa
maior do que aquela que existe até o momento. Sim, a fraternidade, efetivamente
é bem mais do que esses encontros previstos e prescritos, controlados e
cobrados. Eles são “muletas” que podem nos levar a fazer a experiência teologal
do fraternismo. Exprimem o que existe e clamam pelo que ainda pode vir.
2. “Como todos os sonhos de Deus, a fraternidade é dom e ao
mesmo tempo tarefa que interpela nossa responsabilidade. Construir
constantemente a fraternidade não é, em primeiro lugar, questão de horários e
estruturas; pressupõe o acolhimento sincero do apelo do Senhor que nos
desinstala de nossas seguranças e nos coloca a caminho para ousar, com lucidez
e audácia, viver aqui e agora a utopia da fraternidade universal em nossa
realidade concreta, junto com os irmãos com os quais nos é dado viver
precisamente este hoje” (“Sois chamados à liberdade, A formação permanente na
Ordem dos Frades Menores”, Roma 2008, p.10). Destaquemos a ideia: viver com os
irmãos este hoje.
3. Mistério da fraternidade! Jean-François Comminardi, OFM,
lembra que a fraternidade nasce do abismo esplendoroso da Trindade: “É isso,
antes de tudo, que Francisco quer dizer quando ele se dá e nos dá o nome de
irmãos. Associados pelo Espirito a Jesus, o Filho que se fez nosso irmão, é que
podemos dizer na verdade e juntos: Pai. Nunca haveremos de nos esquecer desta
afirmação, a mais fundamental de todas: cada vez que nos designamos pessoal e
mutuamente “irmãos” afirmamos e celebramos nosso ngresso na comunhão
trinitária, afirmação maravilhosa, mas também maravilhosamente exigente porque,
como acrescenta Francisco na Carta aos Fiéis, retomando uma palavra de Jesus:
Somos verdadeiramente irmãos (de Jesus) quando fazemos a vontade do Pai que
está nos céus. E Francisco acrescenta: Como é glorioso, santo e sublime ter nos
céus um Pai (…). Como é santo, dileto, aprazível, humilde, pacífico, doce
amável e acima de tudo desejável ter um irmão e filho que expôs a sua vida
pelas suas ovelhas e orou ao Pai dizendo: Pai santo, guarda em teu nome aqueles
que me deste” (Jean-François Cominardi, “Le projet fraternel de François”,
Evangile Aujourd’hui, n. 217, p. 28).
4. Venha em nosso auxílio Éloi Leclerc: “A vida evangélica
não é absolutamente nada disso (busca de uma fraternidade de puros). Não se
trata de sonhar com uma fraternidade ou uma Igreja de pessoas puras, mas
aceitar viver com os irmãos, com todos os irmãos, não somente com os justos,
mas também com os medíocres e os pecadores. Não só com os sadios, mas também
com os doentes e com os estropiados… E no meio de todos trata-se de testemunhar
a imensa paciência de Deus, seu inesgotável perdão e sua graça. Quando se dá
este testemunho, então começa aqui e agora o Reino de Deus: a luz do Evangelho
brilha na obscuridade do mundo (E. Leclerc, “O sol nasce em Assis”, Vozes,
Petrópolis, 2000, p. 71).
5. Fundamental a frase do Testamento que tanto marcou os
franciscanos de ontem e marca os de hoje: “E depois que o Senhor me deu irmãos,
ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que
devia viver segundo a forma do Santo Evangelho’ (n. 14). Nesse momento,
Francisco se encontrou. Outros dizem que mais fundamental foi a escuta do
evangelho da missão. Francisco, insistimos, se encontra com chegam os irmãos.
6. O Senhor nos chamou a viver a forma de vida evangélica,
não solitariamente, mas numa comunidade de irmãos. Não constituímos um grupo de
pessoas que se reúnem para colaborar para o bom êxito de um empreendimento. Não
somos tocadores de obras, por mais nobres e importantes que estas possam ser.
Não somos apenas pessoas educadas umas com as outras. Criamos laços de profunda
comunhão. Somos iguais na diferença, respeitamo-nos profundamente, zelamos para
que o outro cresça e se realize profundamente segundo o coração de Deus:
manifestamos uns aos outros com confiança nossas necessidades. Evitamos cólera,
murmuração, discussões, julgamentos negativos. Sofremos quando um confrade vive
sozinho no quarto dos fundos. Prestamo-nos mutuamente serviços, amamo-nos com
ternura de mãe. “A fraternidade não é somente, nem em primeiro lugar, uma
escola de perfeição ou uma equipe de trabalho apostólico. Ela tem uma
finalidade de ser em si mesma: ser espaço onde os irmãos procuram estabelecer
relações verdadeiramente interpessoais. A finalidade de uma fraternidade
evangélica é que os irmãos se amem uns aos outros. Ela requer manifestação
visível, uma espécie de sacramento da nova situação do homem, a quem o Senhor
concedeu em Jesus Cristo, a possibilidade de amar verdadeiramente todos os
homens. Os laços que unem entre si os irmãos de uma fraternidade evangélica não
são espontâneos como no casal humano. Os irmãos se agrupam para amar-se por
causa do Reino de Deus. Querem desta maneira manifestar de forma concreta a
vocação primeira da Igreja: ser uma comunidade de amor “ (Thaddée Matura, OFM,
“O projeto evangélico de Francisco de Assis”, Vozes/ CEFEPAL, Petrópolis 1979,
p. 80).
7. No documento da formação permanente “Sois chamados à
liberdade”, do Secretariado Geral da Ordem para a Formação e os Estudos (2008)
fala-se do “viver na misericórdia”: “Chamado a alegrar-se com o dom da
fraternidade e a construí-la como um sinal do Reino, o Frade Menor permanece
consciente de seus limites e de seus pecados. Acolhido, amado e perdoado pelo
Pai de misericórdia, aprende a reconhecer e aceitar as fragilidades pessoais e
a perdoar a si mesmo e aos outros. Conhecendo o que o homem é e pode vir a ser,
o Senhor chama, ao mesmo tempo que pede para construir a fraternidade com estes
irmãos assim como são e como podem vir a ser (…). Marcada muitas vezes por
conflitos interpessoais, a fraternidade aparece justamente assim como o lugar
privilegiado para “fazer misericórdia” para que também o negativo se transforme
em ocasião de crescimento: a situação de imperfeição das fraternidades não deve
desencorajar. Interpela-nos o exemplo e a palavra de Francisco. Na Carta a um
Ministro, a difícil situação fraterna é estimada como uma graça não tanto por
aquilo que tem de doloroso (des-graça), quanto por que oferece ao Ministro a
possibilidade de ser misericordioso, expressando desta forma a própria
realidade de ser criado à imagem de Deus. A misericórdia educa a não impor os
tempos e os modos de conversão a todos (“ama-os em tudo isto; e não queiras que
sejam cristãos melhores”), mas a respeitar os diferentes ritmos do itinerário
de cada irmão na fraternidade” (n.12).
8. A vida fraterna se realiza quando deixamos de ser
indivíduos e passamos ser pessoas, ou seja, quando se entra em relação, porque
a pessoa nasce e se desenvolve nos relacionamentos, na consciência do próprio
valor e no valor dos outros, na reciprocidade do dar e receber, no ter cuidados
e no confiar-se, na partilha e na gratidão. A identidade pessoal se adquire nos
relacionamentos fraternos.
9. Evidentemente para poder crescer na fé e desenvolver
relações sadias e maduras é preciso ter a coragem de assumir a solidão e viver
a interiorização nas diversas etapas da vida. O frade menor reserva tempos e
lugares para um autêntico retiro espiritual, procurando ter acima de tudo o
Espirito do Senhor e seu santo modo de operar. Nessa solidão habitada não vive
mais para si, mas para aquele que por nos morreu e ressuscitou.
10. A fraternidade franciscana em sua
pequenez e minoridade é tarefa porque queremos atingir metas que vão além do
controlável. Homens com outros irmãos, mas chamados a ser irmãos; frágeis e
fracos como os outros, mas ao mesmo tempo vivendo na Força do Senhor;
enraízados nesta terra, mas chamados à utopia do Reino; vivendo a fraternidade
local mas abertos à grande fraternidade; vivendo sua história simples e ao
mesmo tempo escrevendo uma história de salvação; limitados como tantos pobres,
mas enriquecidos com a presença de uma multidão de irmãos com suas riquezas e
seus dons (cf. Documento Todos somos irmãos, OFM, 2004).
http://www.franciscanos.org.br/?p=71896
Comentários
Postar um comentário